terça-feira

Capítulo XV

"É Preciso Ver os Anjos"



Sara apanhou o pequeno diário, abriu-o e começou a ler:

Sara, minha querida sobrinha.

Quando estiver lendo este, então saberás que descanso em paz. Não ando muito bem de saúde, sabe? Meu coração anda falhando. Mas não é para falar-lhe sobre isso que estou lhe escrevendo, e sim para falar sobre um juramento que fiz à sua mãe, nossa querida Ingrid, no seu leito de morte. Juramento este, que estou prestes a quebrar em seu favor; e não sinto nenhum remorso por isso.
                  
Descobri que tinha que fazê-lo naquela noite, quando falamos ao telefone. Você ligou aqui no convento e pareceu-me tão animada com seu novo emprego, está lembrada? Pois bem. Naquele dia, eu descobri como fomos ingênuas, eu e sua mãe, em achar que tínhamos o direito em decidir o que era, ou não, melhor para você. Deus, às vezes, aponta nossos erros de maneira surpreendente e nos dá uma chance de correção.
               
Hoje, ciente dos desígnios de Deus, deixo-te como herança este diário onde relato toda sua história, convicta de que estou fazendo o que é correto, não à luz da justiça dos homens, a qual nunca dei muita importância, mas sim, à luz da justiça de Deus.
                 
Só lhe peço que depois de lê-lo, não permita que brote em seu coração, a semente da magoa e do rancor, pois só assim, sentirás como é doce o sabor do perdão.
                  
Saudações e o meu carinho a você e a todos os seus, que não os conheço, mas que os amo tanto. E que Deus venha a estar convosco por todos os caminhos que haveis de seguir.

Agnes.


“Era início de 1947. Sua mãe e eu éramos duas jovens cheia de sonhos e fantasias, como tantas outras moças da nossa idade. Redentor das Pedras era pequena demais para comportar todos aqueles sonhos, então, combinamos que iríamos para São Paulo em busca de trabalho. Ingrid acabara de completar dezoito anos e eu dezessete. Nessa época, já dominávamos razoavelmente o idioma. Seu avô, severo como era, a princípio não quis aceitar, mas depois, vendo-se, ele mesmo, desmerecido em seu trabalho nas minas, decidiu concordar. Ainda me lembro das palavras de mamãe na hora da despedida: “Por pior que possa parecer meninas, lembrem-se sempre que vocês tem para onde voltar
                  
Logo que chegamos, conseguimos emprego numa confecção e um quartinho para morarmos num cortiço próximo ao trabalho, junto com outras moças que vinham de toda parte. Éramos como uma grande família e tudo parecia perfeito até então. Mas não demorou muito e sua mãe, bela como era, chamou a atenção de um rapaz que trabalhava no escritório. Deduzimos que ele devia ocupar um alto cargo, pois andava elegantemente trajado e dirigia um luxuoso automóvel.
                  
Um dia, ele seguiu-nos até o quartinho onde morávamos, e passou a enviar flores à sua mãe todos os dias, sempre acompanhadas de um bilhete pedindo um encontro. Ingrid resistiu por algum tempo, mas depois, acabou cedendo aos encantos daquele belo rapaz e começaram a namorar. Foi uma paixão avassaladora. Ele lhe comprava presentes caros e ia vê-la todos os dias na seção de arremates onde trabalhávamos. Isso resultou em muitos comentários entre as outras moças.
                  
Certo dia, porém, Ingrid recebeu a notícia de que seria transferida para outra fábrica. Achei que ele tinha alguma coisa a ver com isso, e disse isso a ela, mas ela não quis ouvir-me; estava cega de paixão.
                  
Meses depois a verdade viria à tona. Descobrimos tarde demais que ele era casado com a filha do patrão: Ingrid estava grávida! Ela contou a ele e sua reação foi inesperada. Disse-lhe que não podia deixar a esposa, pois não possuía nada, era casado no regime de separação total de bens e não havia meios para assumi-la. Disse-lhe, também, que o melhor que ela tinha a fazer, era voltar para Redentor das Pedras, e no dia seguinte fomos despedidas.
                   
No dia em que deixamos o cortiço, ele nos aguardava na rua em seu automóvel e ofereceu-se para levar-nos até Redentor. Descobriríamos depois que ele não pretendia perder o nosso rastro.

Durante a viagem, declarou a Ingrid suas verdadeiras intenções. Ele queria um acordo: ficaria com o criança caso fosse um menino, pois a esposa era filha única e estéril, e desejava muito um filho, um herdeiro para continuar os negócios da família. Mentiria a ela dizendo que o bebê era filho de algum funcionário que desaparecera, e que a mãe o entregara à adoção. Se fosse uma menina poderia ficar com Ingrid, e, em ambos os casos, não a desampararia, porém, impôs uma condição: o seu silencio para sempre.
                  
Sua mãe sentiu-se encurralada, fraca demais para relutar, pois sabia que se tratava de gente poderosa, e a primeira vista resolveu fingir que concordava, mas não pretendia de fato, entregar o menino. Fugiria com ele tão logo se pusesse em pé após o parto".

Pobre mamãe... Como deve ter sofrido...

"Chegando a Redentor, seu avô não quis aceitá-la e Frei Alvino, o bondoso padre da paróquia local, acolheu-a em sua casa. Cuidei para que não lhe faltasse nada às escondida do seu avô, e quando naquele dia do mês de janeiro de 1950 vieram as dores, eu e sua avó estávamos lá para fazer o parto. Nasceu uma linda e saudável menina: você.
                  
Mas quinze minutos depois, as dores voltaram e Ingrid deu a luz novamente, dessa vez um menino".

Um menino?!... Um irmão gêmeo?... Mas então...

"Feliz, mas ao mesmo tempo apreensiva por causa do acordo, ela só desejava recuperar-se e fugir com os filhos. Entretanto, não houve tempo para isso. Logo no dia seguinte, o luxuoso automóvel estacionava em frente à casa paroquial de frei Alvino. Dentro dele, estavam seu pai, João Marcolino de Burdon, e o motorista Feliciano".

Oh, meu Deus, então é isso!... Seu João era meu pai!
                  
"Por uma infeliz coincidência sua mãe estava sozinha àquela hora do dia. Seu pai entrou na casa de surpresa juntamente com o motorista e deparou com os gêmeos. Sua mãe mentiu dizendo tratar-se de duas meninas, mas ele afirmou que havia mudado de idéia e ficaria com uma das meninas. Deu apenas alguns minutos para que ela decidisse qual entregaria. Foi uma cena terrível que se passou ali. Ingrid entrou em desespero e recusava-se a entregar um dos filhos. Então, ele disse que escolheria ele mesmo. Em estado de comoção ela entregou você para sustentar a mentira. Impotente diante da situação, viu-o sair pela porta com você nos braços.
               
À saída da casa, porém, encontrou Frei Alvino que implorou inocentemente para que ele não levasse o menino, pois Ingrid não suportaria se separar de um dos filhos.
                 
Diante dessa revelação, ele voltou e fez a troca dos bebês".                     
                 
Dr. Rômulo!... É ele meu irmão gêmeo... E por pouco não o acuso de assassinato!

"Antes de deixar Redentor, seu pai passou pelo cartório e registrou seu irmão como filho legítimo dele e da esposa. Cerca de um mês depois, Feliciano voltou a Redentor e procurou por sua mãe na casa paroquial. Trouxe com ele as chaves e o endereço de uma casa, aquela de Monte Bonito; Feliciano havia comprado-a para vocês a pedido do seu pai. Disse à sua mãe que a casa era modesta, pois seu pai era casado com separação total de bens e não podia desviar muito dinheiro das empresas. Até então, somente os dois conheciam o endereço. Disse que a casa seria colocada em seu nome, mas isso nunca aconteceu. Algum tempo depois, sua mãe recebeu uma carta de Feliciano dizendo que a casa seria colocada em seu nome quando atingisse a maioridade. Deve ter sido uma manobra para calar a boca de sua mãe.                              
                 
Cerca de nove anos depois, a esposa dele descobriu toda a verdade e o endereço da casa. Ela procurou por vocês em Monte Bonito e expulsou-as sob ameaças de pedir na justiça a sua guarda, também".

D. Emilia...  Aquela mulher... A mulher de luvas e chapéu...

"Com medo de perdê-la também, Ingrid decidiu abandonar tudo e voltar a Redentor. O resto dessa triste história você conhece muito bem.
                  
Contudo, há ainda um fato que levo agora a seu conhecimento: Cerca de dezoito anos atrás, seu pai procurou-me no convento; estava velho e doente. Disse-me que se arrependera de tudo que havia feito e que nunca deixara de amar sua mãe. Disse ainda, que quando a esposa descobriu tudo, ele pediu a separação, pois tencionava pegar o filho, e ambos se juntarem a você e sua mãe, mas ela negou-se a conceder a separação. Ameaçou que mandaria dar cabo de mãe e filha, caso ele insistisse em deixá-la. Então, ele desistiu da separação a fim de protegê-las, pois a julgava capaz de fazer isso".

“Eu o prendi a mim da forma mais cruel que encontrei...”

"Ele implorou-me por seu endereço, queria vê-la ao menos de longe antes que fosse tarde demais para ele. Minha querida, confesso-lhe que não tive coragem de negar-lhe tal pedido. Entreguei-lhe seu endereço como num ato de misericórdia a um homem que já havia pagado pelos seus erros além da justiça. Contudo, coloquei-o sob juramento de que nunca, em circunstância nenhuma, se revelasse como seu pai. Ele cumpriu o juramento, mas, ironicamente, eu mesma, sinto-me agora, anos depois, impelida a quebrar o juramento que fiz a sua mãe.
                  
Bem, minha querida Sara, isso é tudo que tenho a lhe contar. Não espero com isso corrigir ou apagar os erros do passado, sejam de quem sejam. Não importa mais. Apenas o futuro nos interessa, e é somente ele que temos o poder e o dever de mudá-lo. Para melhor.”

Com essas palavras, Agnes encerrou o seu relato. Sara sentiu-se num mundo de sonhos, onde lhe abriam as pesadas cortinas e ela podia ver claramente todo o seu passado. Reviveu cada episódio da sua vida: A mulher misteriosa, as lágrimas da mãe, as conversas às escondidas com tia Agnes, os olhares doce de Seu João, a trágica história dos Burdons... Todas as peças estavam encaixadas agora, nos seus devidos lugares; e todas ligadas diretamente à sua existência.

E Rômulo? Até que ponto teria ele conhecimento do passado? Ela sentiu pânico ao pensar nisso. Se soubesse de tudo, poderia muito bem ser o assassino de D. Emília, afinal, ela não era sua verdadeira mãe.
                  
Sara tratou de afastar esses pensamentos, mesmo porque, já não tinha tanta certeza de que ele era o assassino. Alguma coisa havia mudado em seu íntimo e estava lhe dizendo que ele não seria capaz. Talvez fosse o fato de saber que ele era seu irmão. Quando o viu pela primeira vez, achou que ele lhe lembrava alguém. Agora sabia: lembrava a si mesma.
                  
Não pode ser ele!... Não pode! Tenho que pensar em tudo, relembrar os detalhes... É isso! Os detalhes!
                  
Como num estalo, as coisas se tornaram claras para ela. Deixaria o hotel imediatamente e voltaria para casa. O amanhã não lhe parecia mais incerto, sabia exatamente o que viria pela frente. Nesse momento, o telefone tocou.

-  Alô.
-  “Mamãe, onde esteve o dia todo? Estivemos preocupadas”
-  Eu... estive resolvendo uns assuntos... falaremos sobre isso depois.
-    “Você está bem?”
-  Eu estou ótima. Não lhe pareço bem?
-  “Você não perguntou quem está falando.”
-  Eu sei que é você, Nicole.
-  “Estou lisonjeada” – disse em tom de brincadeira – “Estou te ligando para dizer que Dora está conosco”
                              
Graças à Deus!

-  Não sabe como essa notícia me deixa aliviada... Ainda mais agora que sei quem ela é – disse distraída.
-  “O que quer dizer com isso?”

Ela teria que contar tudo à família, mas não assim por telefone.

-  Nada demais... Apenas que fiquei assustada ainda outro dia quando a vi entrando no carro de um sujeito de péssima aparência.
-  “Era Nátali disfarçada, mamãe”
-  O que??
-  “Isso mesmo que você ouviu: era Nátali disfarçada de traficante. Não ouve outra maneira de abordá-la.”
-  E como sua irmã se meteu nisso?
-  “Eu pedi ajuda a ela depois de muitos fracassos. Você sabe como a Nátali é boa para certas coisas... Não contamos nada a você com receio de que não aprovasse”
-  E não aprovaria mesmo – disse Sara – ...Mas estou contente que tenha dado certo – acrescentou.
-  “Você tinha razão, mamãe. Nátali e eu somos muito diferentes, mas é justamente essas diferenças que nos fazem completas”
-  Estou satisfeita em ouvir isso, querida.  Agora, me fale sobre Dora, ela está bem?
-  “Mais ou menos. Naquele dia, Nátali conseguiu traze-la para o sitio. Conversamos muito e ela decidiu ficar. Disse-nos que ia até sua casa buscar suas coisas e avisar a família e não voltou mais. Hoje encontramo-la perambulando sem rumo nas proximidades do sítio. Parece confusa e só pede por uma coisa: quer falar com você.”
-  Comigo?!...
-  “Sim, e diz que é importante”
-  Tudo bem, eu chego hoje à noite e amanhã irei vê-la.
-  “Tem mais uma coisa: O Alberto ligou e disse que o delegado quer ouvi-la amanhã, sem falta. Você já não depôs?”
-  Não propriamente... amanhã será decisivo. Eu espero pelo menos.


4 comentários:

  1. Prezada Bia!
    Eu achava que elas (D. Emília e Sara) tivessem alguma ligação, mas Sara filha do marido de D. Emília? Que reviravolta! Bom, vejamos o desenlace nos próximos capítulos.
    Abç
    Adh

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  2. Oi Bia!
    Quantas surpresas nesse capítulo!
    Adorando a leitura! Bjusss

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  3. Oi Bia!
    Não vejo a hora de saber quem matou D. Emília...
    Bjão!
    Adh

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  4. Oi Bia!
    Não vejo a hora de saber quem matou D. Emília.
    Bjão,
    Adh

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco