sexta-feira

CAPÍTULO IX



"É Preciso Ver os Anjos"


O ano de 1961 passou voando por Redentor das Pedras. As encomendas começavam a se multiplicar por conta das festas de final de ano. Ingrid havia confeccionado, com muito capricho, um mostruário contendo uma peça de cada modelo, arrumara-as em uma mala e viajara de furgão para outras cidades vizinhas colhendo encomendas. Confeccionou para si, calças compridas e abandonou definitivamente os vestidos com saias amplas e rodadas de cinturas bem marcadas, ao qual estava habituada a usar.

- Ficou bem em você, mas prepare-se para os comentários – alertou Agnes quando a viu.

- Eu não estou nem um pouco preocupada com os comentários. Só estou pensando no meu conforto para subir e descer do furgão nas viagens que tenho feito... E além do mais, as manequins já usam e ninguém diz nada.

Além de confecções infantis, a qual estava habituada, passara a produzir também, para senhoras e cavalheiros. Nos períodos que estava viajando, para que as mulheres não ficassem paradas, Ingrid iniciou-as numa tarefa tão lucrativa quanto a primeira: Com os retalhos das costuras, ela elaborava tapetes, colchas, aventais e tudo o mais que sua imaginação lhe permitisse criar. Depois, vendia tudo para camelôs e feirantes em cidade maiores. Redentor definitivamente não era mais a mesma de tão poucos anos atrás; em cada casa havia uma máquina funcionando e já se viam, às ruas, vendedores ambulantes oferecendo seus produtos: frutas, verduras, ovos, etc. Com o dinheiro que suas mulheres ganhavam alguns homens que possuíam um pedaço de terra a mais, compraram sementes e iniciaram o plantio de roças de milho, feijão, mandioca e outros. As mulheres que mais produziam eram aquelas chamadas “viúvas das minas”, cujos maridos haviam morrido direta ou indiretamente por causa das minas de carvão, e agora eram, portanto, arrimo de família. As outras, cujos maridos não plantavam e se viam completamente desocupados, volta e meia, criavam-lhe problemas. Certa ocasião, Ingrid foi procurada por um grupo de homens liderados por um de nome Joaquim:

- Nós queremos falar com a senhora, D. Ingrid – disse Joaquim, o porta-voz.

- Pois não, do que se trata? - perguntou ela solícita.

- Não queremos mais que nossas mulheres trabalhem para a senhora – declarou o homem enquanto os outros balançavam a cabeça afirmativamente.

- Não compreendo...

- É isso mesmo – afirmou o homem – Não podemos admitir que nossas mulheres, que são senhoras de respeito, trabalhem para uma mulher que sai por aí vestida como homem guiando um furgão e ainda por cima viajando sozinha e tudo o mais.

Ela tomara um choque. Recusava-se a acreditar que estava ouvindo aquilo, mas estava. Eles estavam lá para agredi-la, para magoá-la, e o que era pior, sem nenhuma justiça. Depois de tudo que eu lhes fiz? Depois das humilhações, das lágrimas, das aflições que passei, ainda terei que agüentar mais isso? Não!... Agora chega! Eles tinham que tomar uma lição. Bastavam os cochichos que vinha suportando por parte de alguns homens desocupados da cidade. Ela esperou calada até que o último homem acabasse de falar e depois pediu a eles que se sentassem. Estava furiosa, mas foi calmamente que ela começou a falar:

- Primeiramente, gostaria de esclarecer aos senhores, que suas esposas não trabalham para mim, elas trabalham para elas mesmas. E até onde eu tenho conhecimento, para os senhores também.

Um homem precipitou-se em revidar, mas ela interrompeu-o, aumentando o tom de voz:

- Eu ainda não terminei! – disse firmemente – Eu apenas intermedio o negócio e ganho para isso, nada mais, nada menos do que elas, mas com uma diferença: eu trabalho o dobro! E tem mais uma coisa: não sei se é do conhecimento dos senhores que as máquinas que estão em vossas casas, me pertencem. Eu as comprei em meu nome, portanto, posso retirá-las de lá quando bem entender. Até por que, há muitas mulheres me pedindo máquinas para seus maridos, que como elas, querem trabalhar. O que é muito melhor, penso eu, do que ficarem por ai, completamente à toa, criando casos, quando poderiam estar colaborando com o sustento da família... Os senhores não concordam?

Os homens se entreolharam atônitos, pareciam não saberem o que dizer. Um deles tomou a iniciativa:

- Nós temos vergonha de costurar. Isso é trabalho de mulher!... Quando estávamos nas minas...

- O senhor já almoçou hoje? – Perguntou Ingrid.

- Já, mas...

- Presumo que não sentiu vergonha de sentar-se à mesa e comer um bom prato de arroz com feijão comprados com o salário honrado de sua esposa, sentiu?... Ou será que sentiu vergonha quando, num passado não muito distante, um de seus filhos chorou de fome e foi dormir para ver se a fome passava?

Ela fez uma pausa percorrendo um por um com o olhar:

- Não... acho que não. Vou mandar retirar as máquinas de vossas casas amanhã pela manhã... Sem falta!

Ela levantou-se, dirigiu-se até a porta e abriu-a:

- Agora, se os senhores não têm mais nada a dizer-me, peço que se retirem... por favor. Preciso continuar o meu trabalho.

Naquela mesma noite, cinco dos seis homens que a haviam procurado à tarde, voltaram a procurá-la na escola:

- Dona Ingrid, eu e meus companheiros viemos lhe pedir desculpas pelo acontecido de hoje à tarde, pois estamos muito envergonhados – disse um deles, os outros se mostravam de tal maneira, aborrecidos – Nós pensamos em tudo que a senhora falou, e chegamos a conclusão que tem toda razão.

- É isso mesmo – disse o outro – Antes da senhora chegar aqui, não tínhamos nada, nem mesmo o que comer. Nossos filhos não sabiam ler e escrever e nem tinham com o que cobrir o corpo. Devemos todas essas coisas à senhora.

- ... Não é porque temos uma vida melhor agora, que vamos esquecer o passado e o que a senhora fez por todos nós. Não somos mal agradecidos como alguns homens que ficam dizendo coisas da senhora porque não tem o que fazer. Não vamos mais dar ouvidos a eles... Estamos aqui porque queremos trabalhar. Queremos costurar como as mulheres. Se a senhora ainda estiver disposta a nos ensinar, aprenderemos e agradecemos de todo coração.

Ela apertou os olhos por um momento a fim de reter uma lágrima que estava pronta para rolar. Depois disse:

- Ensinarei. Ensinarei com prazer.

Outros homens vieram até ela para pedir trabalho, e em pouco tempo, homens, mulheres e jovens produziam mais peças e com melhor qualidade. Ingrid inspecionava, corrigia e aperfeiçoava a cada dia. Ela construíra com tijolos, um salão anexo à casa de troncos para receber as mercadorias. Contava agora com a ajuda de algumas mulheres para passar e embalar as peças. Comprou o seu próprio furgão, bem conservado e mais novo do que o de Agnes.

Redentor das Pedras se tornara conhecida nas redondezas como a “cidade das costuras” e prosperava a cada ano.

Depois que eram pagos todos os salários e reposto a matéria prima, o lucro que sobrava, virava tijolo, pedra, areia e madeira para a construção da nova escola. Até a antiga paróquia que estava abandonada desde a morte de Frei Alvino, há cinco anos, fora reformada.

Um pouco antes das obras serem concluídas, Agnes escreveu ao Bispo pedindo que designasse um pároco para a cidade – no que foi atendida prontamente. Frei José era alegre e vigoroso, as missas aos domingos mais pareciam uma festa com seus sermões acalorados e repletos de otimismo. Os Redentorenses vestiam suas melhores roupas e lotavam a pequena igreja cheios de fé e esperanças. As festas cristãs eram comemoradas coletivamente no pátio dos fundos da Igreja com a colaboração de todos. Nos dias que antecediam o Natal, Ingrid e Sara confeccionavam corações, estrelas e meias-luas com retalhos coloridos e dependuravam em uma grande árvore; embaixo, colocavam os presentes simples, porém, singelos que trocavam entre si. Juntos, eles oravam, soltavam fogos, catavam e juntavam-se a uma só mesa para saborear a ceia farta.

Dias depois, Ingrid organizava o aniversário de Sara, uma festa menor, com bolos, doces e balas para as crianças. Ela completava agora treze anos e tinha um motivo a mais para comemorar: A escola estava pronta e seria inaugurada naquele ano. Com oito salas enfileiradas de cada lado de um pátio, sendo uma designada à biblioteca e outra para secretaria; nos fundos, um campo gramado para recreação das crianças. Ingrid mandara pintar com letras garrafais: GRUPO ESCOLAR DE REDENTOR DAS PEDRAS. Mas antes que o pintor terminasse a frase, Agnes e Sara estiveram na escola e mudaram o nome.

Quando Ingrid viu, não pode e nem quis conter o choro:

- Ah! Vocês duas... Prepararam-me uma surpresa e tanto!

- “Grupo escolar Ingrid Vankovsk” – leu Sara para a mãe – não ficou lindo?

- Sim, filha... Ficou lindo!

- Nós todos desta cidade devíamos isso a você, Ingrid – disse Agnes – Esse sonho realizado é seu. Pode saboreá-lo à vontade!

- Está enganada, Agnes, esse sonho é nosso... Especialmente de Sara. Foi por ela que eu lutei tanto para consegui-lo.

- Nem posso acreditar que neste ano estaremos numa escola de verdade. Sem goteiras, sem vento entrando pelos buracos – disse Sara – Valeu à pena!

- Sim, querida, valeu a pena! Sempre valerá à pena quando se põe o coração.

Mais tarde as três tomavam um lanche enquanto conversavam:

- Ingrid – disse Agnes – agora que os alunos mudarão para a escola, podíamos retomar a obra do posto de saúde, falta tão pouco para serem concluídas.

- Claro!... Retomaremos de imediato – concordou ela – E em pouco tempo teremos outra inauguração por aqui.

- É mesmo uma pena que não temos médicos nem enfermeiras para colocarmos o posto para funcionar – lamentou-se Agnes.

- Também andei pensando nisso. Daqui a uma semana, vou à São Martinho tratar de uma encomenda especial. Que tal se eu tentasse falar com o prefeito?

- Falar com o prefeito? Acha que ele mandaria um médico para Redentor?

- Talvez não encontre nenhum que aceite morar na cidade, mas pode conseguir um que concorde em passar um ou dois dias por semana aqui. É melhor que nenhum, não acha?

- Sem dúvida! – concordou Agnes – Se você conseguir um médico, poderei falar com Madre Terezinha para designar uma irmã que tenha conhecimento em enfermagem. Sem contar que continuarei a visitar os doentes e levá-los para o posto. Com a ajuda de um médico e num lugar adequado, tudo se tornará mais fácil... Ainda há tantos doentes por essas bandas. Ainda há tantos morrendo por doenças facilmente curáveis se fossem socorridos a tempo.

- É, minha irmã, temos feito tanto e ainda há tanto a fazer – disse Ingrid num suspiro – Me sinto feliz, mas um pouco cansada às vezes.

- Tem trabalhado muito – disse Agnes – Precisa encontrar alguém que a reveze nas viagens.

- Não posso, Agnes, gosto de escolher pessoalmente os tecidos – argumentou ela – Além do mais, tenho que olhar as vitrines das modistas, estar atenta às tendências da moda para criar meus modelos. Na próxima viagem, por exemplo, vou tratar da encomenda de uns vestidos de noiva. Tenho que examinar os detalhes, talvez, traga uma amostra. São decisões que eu tenho que tomar na hora e no local.

- Vai trazer o que me prometeu? – perguntou Sara.

- A máquina fotográfica? É claro que sim!... Promessa é dívida!

- Vou fotografar você, tia Agnes, a escola, tudo.

O furgão estava estacionado em frente a uma loja no centro da cidade. Lá dentro, Ingrid acertava os últimos detalhes da encomenda de trinta vestidos de noiva:

- Levarei uma amostra de cada modelo – dizia ela à Anita, gerente da loja – É mais seguro.

- Para quando marcará a entrega? – perguntou Anita.

- O mais breve possível. Quinze dias, está bom?

- Está ótimo, mas não acha pouco? – perguntou a gerente – Isso significa dois vestidos por dia. Ainda tem o bordado das barras e punhos.

- Isso mesmo – afirmou Ingrid – É que os bordadeiros são muito rápidos e eficientes.

- Não acredito! – indagou a gerente com incredibilidade.

... Tem homens trabalhando para você?

- Não trabalham “para mim”. Nos todos trabalhamos para todos.

- Como uma cooperativa?

- Nunca tinha visto dessa forma. Mas acho que é isso mesmo que somos: uma cooperativa.

- Como conseguiu convencê-los a participar? Afinal nenhum homem deve gostar de costurar e bordar roupas femininas.

- Não fui eu quem conseguiu.

- Ah, não? E quem foi?

- A fome. A miséria. O desalento.

Ela deixou a loja carregando desajeitadamente o enorme pacote. Ia colocá-lo no furgão quando o pacote escorregou. Um par de mãos fortes amparou-o por baixo impedindo que caísse:

- Posso ajudá-la?

Nos últimos dois anos, Ingrid tinha visto Frei Henrique de longe, algumas vezes. Em todas elas, tinha conseguido se esconder entrando numa loja, ou apressando o passo. Agora, entretanto, seria impossível. Ele estava ali, tão próximo, com um belo e largo sorriso nos lábios.

- Frei Henrique!

- Parece que ando mesmo disposto a assustá-la.

- E a apanhar-me em situações difíceis, também – acrescentou.

- Como vai, Ingrid?

- Bem, e o senhor?

- Vou levando.

Alguma coisa havia mudado, ela podia sentir isso no ar. Não estavam mais tão à vontade como se fossem velhos amigos. Parecia-lhe que uma cortina invisível se fechara entre eles, e cada um tomava todo o cuidado para não atravessa-la.

- Como vão as costuras – perguntou ele

- Não tem faltado, graças à Deus.

- Que bom!... Já está indo embora?

- Não... Vou à prefeitura tentar falar com o prefeito – informou ela – O posto de saúde está quase pronto e não podemos inaugurar sem um médico.

- Pretende pedir um médico ao prefeito? – perguntou com espanto.

- Pretendo – afirmou com veemência – Não entendo nada de política, mas creio que Redentor das Pedras está dentro de sua jurisdição. Então, nada mais justo que ele olhe para aquela gente. Mandar-nos um médico é o mínimo que ele pode fazer, o senhor não acha?

- Acho, acho, sim – disse ele. Olhava-a com admiração.

- O que foi? – perguntou ela encabulada.

- É corajosa e perseverante, mas está sendo ingênua de achar que o prefeito irá recebê-la, Ingrid.

- E porque não?... Porque sou uma mulher, não é isso?

- Também por isso – afirmou ele – Mas principalmente, porque ele não a conhece. Tentará descobrir primeiro de quem se trata, qual a reivindicação, e depois decidirá se irá atende-la, ou se arrumará uma série de desculpas a cada dia que a faça desistir de procurá-lo.

- Como sabe de tudo isso? – perguntou intrigada.

- Porque eu o conheço.

- E me conhece também – disse ela – Se eu tiver que ir mil vezes, mil vezes irei. Veremos quem se cansará primeiro.

- Sei de um jeito dele recebê-la – declarou o frei – Eu vou com você. Em minha companhia ele não se atreverá recusar-se.

Ela pensou em não aceitar, pois quanto mais tempo passasse com ele, mais riscos correria. Mas conseguir um médico para Redentor era mais importante do que seus problemas pessoais.

A prefeitura ficava a poucos quarteirões dali e Ingrid insistiu para que seguissem à pé, não gostaria de ser vista ao volante com o padre ao lado pelas ruas da cidade. Ela não tinha medo de enfrentar nenhuma situação embaraçosa, quando esta fosse absolutamente necessária, porém, sempre preferia evita-las quando lhe era permitido optar. Não gostava de fazer as coisas parecerem provocação para tornar-se alvo de falatórios maliciosos.

Durante o trajeto, ficou óbvio que ambos estavam evitando falar de coisas pessoais. Ingrid contou-lhe de como Redentor havia mudado, falou da escola, do posto de saúde, da reforma da igreja, de Frei José. Tomava o máximo de cuidado para não tocar no nome da irmã. Falar em Agnes seria o mesmo que falar da carta que ela não conhecia o conteúdo. Será que ele sabe que não contei à Agnes sobre nós?... Será que desconfia que estou apaixonada por ele?... Se ele tocar no assunto, o que vou dizer?... Oh! Deus! Não permita nunca que ele saiba do imenso amor que sinto... Que o segredo desse amor permaneça comigo até a hora da minha morte...

Ela se consumia em dúvidas e mal estava conseguindo manter uma conversação. Embora não parasse de falar, um rodamoinho de pensamentos que iam e vinham fizeram seus batimentos cardíacos dispararem e sua respiração acelerar. O Frei notou sua ansiedade quando chegaram a frente do prédio da prefeitura:

- Você está nervosa. Se não a conhecesse tão bem, diria que quer desistir.

- Não vou desistir. Podemos entrar agora.

O prédio parecia mais a sede de uma antiga fazenda, com suas paredes brancas, portas e janelas pintadas de azul. Varandas amplas estendiam-se por toda a fachada, e pilastras sustentavam os telhados. Via-se claramente que fora reformado, mas o antigo e o novo fundiam-se harmoniosamente.

Eles subiram pelas escadarias que davam para a porta principal, atravessaram uma imensa sala luxuosamente decorada com móveis de madeira de lei, ao estilo inglês. Como não havia ninguém ali para recepcioná-los, seguiram pelo corredor até alcançarem a anti-sala do gabinete particular do prefeito. Um rapazote estava sentado à uma escrivaninha; em cima, numa pequena placa estava escrito: “SECRETÁRIO.” Ingrid avaliou que o menino parecia jovem demais para o cargo. Do lado oposto à porta de entrada, havia outra porta com os seguintes dizeres: “GABINETE DO PREFEITO”- “Não entre sem ser anunciado. A educação faz a diferença” O Frei indicou uma poltrona para Ingrid e se dirigiu até o rapaz:

- Boa tarde, Honório.

- Boa tarde, Frei. Como tem passado?

- Bem, e você?

- Eu vou bem com a graça de Deus – respondeu o rapaz com um sorriso afável.

- Seu avô está? – perguntou o Frei

- Para o senhor ele sempre está. – disse insinuante.

- Avise que estou aqui e quero lhe falar, por favor.

O rapaz levantou-se e lançou um olhar interrogativo para Ingrid.

- Ela está comigo – esclareceu o Frei

Ele bateu levemente à porta e entrou. Segundos depois estava de volta:

- Meu avô irá recebê-lo em poucos minutos, Frei, tão logo conclua alguns despachos importantes.

Depois, dirigiu-se até um armário e apanhou algumas pastas e desapareceu novamente no interior do gabinete.

- Deve estar pensando que vim cobrar-lhe acerca das obras do orfanato – Cochichou ele a Ingrid

- Porque acha isso? – perguntou ela

- Naquelas pastas que o Honório pegou no armário, estão os meus projetos. Eu os elaborei e paguei do meu próprio bolso a um desenhista para redesenhá-las em escalas corretas e as trouxe para a aprovação. Aposto que é a primeira vez, em meses, que toca nelas.

- Como é ele? – perguntou Ingrid – Quero dizer, que tipo de pessoa ele é?

- Arrogante e vaidoso.

- E o que ele faz além de ser prefeito?

- Possui fazendas de café. É o maior produtor da região.

- Logo imaginei: Um Coronel do café.

- Isso mesmo – afirmou o Frei – Controla todo o estoque do produto por essas bandas e mantém os preços no patamar que julga mais apropriado para o seu próprio bolso.

- E nomeou o seu neto para secretário – acrescentou Ingrid.

- Não só o neto, como os filhos, os sobrinhos, os irmãos. Exceto o filho caçula, que ele rejeitou e mandou para a capital para estudar, todos trabalham com ele, ou para ele.

- Imagino que a mulher esteja em casa, submissa, debaixo de suas botas – disse Ingrid consigo mesma.

- O que disse?

- Nada, foi só um pensamento.

A porta do gabinete abriu-se e o rapazinho apareceu:

- Pode entrar agora, Frei. Meu avô irá recebê-lo.

Se ela achava que luxo era o que havia visto lá fora, então não saberia descrever o que os seus olhos visionavam agora. A mobília, em legítimo mogno inglês, era entalhada à mão com filetes dourados na escrivaninha e na cadeira alta, estilo trono que o prefeito ocupava. Num dos cantos da sala, havia um conjunto de poltronas do mesmo veludo verde das cortinas: estava disposto feito uma sala de estar sobre um tapete vermelho. Na parede, acima da cabeça, um retrato à óleo do prefeito; a sua volta, tomando quase toda a extensão da parede, um acervo de fotografias, na qual percebia-se logo à primeira vista, que ele protagonizava absoluto em todas elas. Havia, também, muitos objetos valiosos, como cinzeiros de prata com detalhes em ouro e abajures de bronze com cúpulas de pura ceda. Na parede oposta à janela, situava o que deveria ser uma enorme biblioteca da mesma madeira nobre do restante da mobília. Nas suas muitas prateleiras, estavam caprichosamente expostos os troféus e medalhas conquistados pelo prefeito – mas nenhum livro!

O prefeito estava sentado em seu “trono” com um chapéu Panamá e um charuto fumegante entre os lábios. Era uma figura de aparência abastada e deveria ter pouco mais de sessenta anos. Homem exageradamente gordo, de rosto redondo e duas dobras debaixo do queixo. Vestia um terno de risca de giz escuro, cujos botões do colete, pareciam implorarem para serem desabotoados. O vasto bigode encontrava-se com as costeletas abundantes, e quando sorria, deixava à mostra, dois dentes de ouro reluzentes.

O aroma forte de sua lavanda misturada à fumaça do charuto provocara em Ingrid certo enjôo, e ela desejou que o prefeito a convidasse logo para sentar-se.

O que aconteceu tão logo feito as apresentações:

- Sentem-se e fiquem à vontade – disse o prefeito com sua voz alta e rouca – A que devo a honra de sua visita, Frei? – perguntou ele – Já sei, não precisa responder: veio cobrar-me sobre o orfanato. Previa isso, tanto que...

- Não, Coronel Ferreira – interrompeu-lhe Frei Henrique – Desta vez o senhor enganou-se. O assunto é outro. Do orfanato, falaremos em outra ocasião. Na verdade, quem gostaria de fazer-lhe uma solicitação é minha amiga Ingrid de Redentor das Pedras, ela...

- Redentor das Pedras?! – indagou o prefeito com demasiada admiração – Ainda existe aquele lugar? Pensei que todos tivessem ido embora...

- Nem todos – adiantou-se Ingrid, num impulso – A grande maioria dos trabalhadores não tinha para onde ir quando as minas foram desativadas. Ficaram sem trabalho, sem nenhum recurso para sustentarem suas famílias e até pouco tempo atrás, se encontravam no mais absoluto estado de miséria que um ser humano pode chegar.

- Ingrid organizou uma espécie de cooperativa entre os moradores – explicou Frei Henrique – Eles confeccionam roupas e vendem aos lojistas daqui e de outras cidades vizinhas. Não sei como o Coronel ainda não tomou conhecimento disso. Aqui em São Martinho, todos sabem que Redentor das Pedras é a cidade das costuras...

- Ora Frei, o senhor sabe como a vida pública e os negócios do café me tomam todo o tempo... Mas, me conte mais. Fale-me desse negócio de costura. É lucrativo?

Ingrid fez um breve relato de todos os acontecimentos desde que desembarcou em Redentor pela segunda vez. O prefeito parecia de fato interessado em sua história. Ouvia tudo atentamente, fazia-lhe muitas perguntas e Frei Henrique observava-a com real admiração.

- ... E é por isso que precisamos de um médico. Sem ele, nossa luta para construirmos o posto de saúde não faz sentido – concluiu ela.

- Então, – começou o prefeito – Vocês conseguiram, com os lucros das costuras, construírem um posto de saúde, uma escola, e a reforma da igreja?... Muito interessante...

A mente do prefeito trabalhava ligeira. Ele já havia arquitetado um plano e era perfeito.

- E o que mais vocês conseguiram por lá, quero dizer, existe algum tipo de comércio?... Recordo-me que havia alguns armazéns e um cartório.

- Tudo foi fechado com a desativação das minas – informou Ingrid – Têm surgido alguns vendedores ambulantes que oferecem suas mercadorias produzidas lá mesmo, mas é somente isso.

- E quanto à legalização daquelas terras?... Sim, pois se não pagaram por elas, nem os impostos...

Ela entendeu perfeitamente onde o prefeito queria chegar. Viera até ele para pedir ajuda e aquela raposa velha estava maquinando um meio de tirar de quem já possuía tão pouco.

A resposta veio fria e cortante:

- São apenas posseiros, se é isso que o senhor deseja saber.

- Nesse caso, ocupam-nas ilegalmente...

- Ilegalmente??... Quando vieram trabalhar nas minas dormiram ao relento até construírem suas casas com as próprias mãos. Para isso, tiveram que extrair a madeira da mata numa terra que parecia ser de ninguém. Trabalhavam com o mínimo de equipamentos e nenhuma medida de segurança... Foram explorados e negligenciados pelos seus patrões. Muitos adoeceram, outros morreram deixando viuvas e órfãos...

Ingrid relatava tudo com a autoridade de quem conhecia os fatos. O Coronel Ferreira, atinava em seu íntimo quem era aquela mulher que ousava falar-lhe naquele tom, e chegava mesmo a causar-lhe certo espanto.

- ... Quando alguns se apoderaram das minas em rebelião porque estavam sem salários há meses – continuou ela – os empreiteiros simplesmente retiram tudo e foram embora os abandonando à própria sorte... Acabaram mortos numa explosão... Os que restaram, como eu já disse, não tinham recursos para irem à lugar algum. Eles simplesmente foram ficando... Não tenho dúvidas que estes acontecimentos os fazem donos daquelas terras. Regularizá-las seria o mínimo que se poderá fazer por eles, o senhor não concorda?

A atmosfera da sala estava pesada quando Ingrid concluiu seu discurso. O prefeito olhava-a com uma expressão indecifrável, como se fora pego de surpresa. Talvez fosse a primeira vez, em toda sua vida, que não sabia o que dizer – e era justamente uma mulher que o colocara naquela situação. Aquela ordinária não perderia por esperar. Saberia dar o troco que ela merecia, mas, por enquanto, tinha que manter a compostura a todo custo. Seu lema era: política se faz com paciência e sangue frio; e ela não o intimidaria com seu atrevimento. Esperaria o momento certo.

Ele ensaiou um sorriso e pendeu um pouco a cabeça para uns dos lados antes de começar a responder:

- A senhorita tem toda razão... Ou será que é senhora?

- Eu sou solteira – disse secamente.

- Pois bem, senhorita, concordo plenamente que expulsá-los das terras, não me parece a coisa mais certa a fazer, entretanto, legalizá-las, não é tão simples assim. É necessário que se faça uma investigação documentária acerca da legitimidade de propriedade... Ocorre-me, de repente, que pode haver um proprietário legítimo, e nesse caso...

- Ainda assim, penso que deve haver alguma lei que favoreça os posseiros – replicou Ingrid.

Gotículas de suor brotavam na testa do prefeito. Frei Henrique, que a tudo ouvia calado, estava surpreendido. Não conhecia esse lado tempestuoso dela e achou por bem intervir naquele diálogo que estava tomando proporções incontroláveis:

- Creio que podemos tratar de um assunto de cada vez – disse ponderosamente – Na verdade, nós viemos aqui por causa do médico... Tenho certeza que o Coronel fará o possível para nos atender, Ingrid...

- Claro! – disse ela, corando imediatamente – ... Perdoe-me por ter desviado o assunto do nosso verdadeiro objetivo...

Sentia-se envergonhada por ter causado embaraço ao Frei. Justamente a ele que tinha se exposto tanto ao acompanhá-la.

- ... Um médico é tudo que precisamos em Redentor neste momento – forçou um sorriso

- Se for só isso, farei o que estiver ao meu humilde alcance para ajudá-la – disse o prefeito – Não sei se temos algum médico disponível no momento, mas sempre se pode dar um jeito... Talvez eu possa trazer um da capital, quem sabe?...

Havia ironia ou descaso naquelas palavras? Ingrid não soube definir naquele momento. Aguardaria o desenrolar dos acontecimentos para conferir.

- Sou grata por tudo, senhor Prefeito – disse levantando-se e estendendo-lhe a mão num cumprimento.

- Ainda não fiz nada – retrucou ele apertando com força a mão dela.

- Sou grata por ter nos atendido e disposto do seu precioso tempo – replicou ela.

- Não passe tanto tempo sem nos visitar, Frei. O senhor é sempre bem vindo, mesmo que seja só para por a prosa em dia.

- Farei isso, Coronel. Passe bem e obrigado.

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- Você foi mesmo dura com ele – disse o Frei quando estavam descendo as escadarias à saída do prédio.

Ela parou e tomou levemente a mão dele entre as suas:

- Lamento muito se o embaracei... Não foi minha intenção...

- Não precisa desculpar-se, não estou criticando-a. Você só respondeu à altura – tranquilizou-a – Eu teria feito o mesmo. Só temo pelas consequências, duvido muito que ele vá atender o nosso pedido.

- Eu também duvido. Acho que estraguei tudo com essa minha intrepidez.

- Não, não se sinta tão culpada... Talvez possamos achar outra saída – consolou-a.

- Que saída?... O senhor mesmo me disse que os médicos daqui, ou montam consultórios luxuosos, ou vão clinicar na capital – falou desanimada

- Pensaremos juntos no que faremos, por enquanto vamos aguardar. Talvez estejamos enganados. Eu conheço bem o Coronel Ferreira, sua mente é uma caixinha de surpresas... Nunca se sabe o que pode sair de dentro dela. Você o provocou, e por isso mesmo, não duvidaria nada se lhe mandasse o melhor médico de São Martinho só para lhe provar quão generoso ele é.

- Tomara que o senhor esteja certo.

Ela soltou um longo suspiro e retomaram o caminho.

- Como poderei agradecer tudo que tem feito por mi... por nós de Redentor? – perguntou ela.

- Por hoje, poderá lanchar comigo. Faz-me companhia e colocaremos a prosa em dia, o que acha?

- Eu adoraria.

Ele ofereceu-lhe o braço, e esboçou um sorriso cortês. Ingrid deixou-se levar quase que flutuante à caminho da casa paroquial.

Camuflado pelas cortinas das vidraças do gabinete, um par de olhos astutos como duma serpente, observava-os. Então é isso? – maquinava em sua mente maledicente – A ordinariazinha e esse padreco pensam que podem me enganar com essa conversa de “amigos”. Não podem ferir a moral e os bons costumes da minha cidade e permanecerem impunes... Saberão quem é o Coronel João Leoncio de Palmas Ferreira!

- Honório! – berrou ele.

- Sim, meu avô. – atendeu o rapaz prontamente.

- Telegrafe à Leopoldo na Capital. Diga que ordeno que venha ao meu encontro imediatamente!

- Sim, senhor. – disse o rapaz precipitando-se a se retirar.

- Espere! – ordenou o avô – Aquela moça... Como é mesmo o nome dela?... Ainda trabalha aqui?

O rapaz pigarreou. Tinha que parecer o mais natural possível ao responder aquela pergunta. Aprendera que todos que trabalhavam para o prefeito tinham que ser cegos, surdos, e mudos, se quisessem manter seus cargos. Não podia. em hipótese alguma, deixar transparecer que ele, assim como todos ali, sabia que a moça em questão prestava serviços “extras oficiais” ao prefeito. Foi com muita cautela que respondeu:

- Elvira, senhor... Ela se chama Elvira. E ainda trabalha aqui.

- Peça a ela que venha até meu gabinete.

- Meu avô deseja mais alguma coisa?

- Não, pode ir.

- Com licença, senhor.

O rapaz se retirou e minutos depois, uma moça que aparentava não ter mais de dezoito anos, entrou sem bater no gabinete do prefeito. Tinha a pele alva, os cabelos negros e encaracolados na altura dos ombros e um corpo curvilíneo. Usava um vestido com gigantescas estampas florais alaranjadas, tão justo que mal podia conduzir os passos miúdos. Equilibrava-se em saltos altíssimos de um sapato branco.

- Meu Biluzinho mandou me chamar? – perguntou ela com voz melosa.

- Já disse para não me chamar assim! – repreendeu-a – Sente-se aqui – ordenou ele indicando os joelhos.

- Estranhei seu chamado – disse Elvira – Você me proibiu de entrar no seu gabinete... Também não tem ido lá em casa... pensei que...

- Mandei te chamar por que tenho um trabalhinho para você... Espero que não me decepcione – dizia ele enquanto acariciava suas coxas por baixo do vestido.

- E o que o meu Bilu... meu patrãozinho vai me dar em troca?... Vi umas pérolas maravilhosas...

- Esquece! Já tem jóias suficientes para deixar para suas bisnetas.

- Não quer que eu tenha filhos, com posso vir a ter bisnetas?

- Mais um motivo para não possuir coisas demais. Não terá para quem deixar no futuro.

O Coronel Ferreira julgava-se um homem imponente, temido, todos o respeitavam e viviam debaixo de suas ordens; ele sabia fazer valer sua autoridade. Na cidade, era a lei, na família, o patriarca que ninguém ousava contrariar. Isso só não se aplicava à Elvira. Ela o manipulava de todas as formas: choramingava fazia beicinho, seduzia-o, e sempre acabava conseguindo o que queria. Ele a tinha tirado de um bordel na Capital. Comprara para ela uma casa nos arredores da cidade, colocara-a para trabalhar na prefeitura com um salário que não fazia justiça às suas funções, e nutria a ilusão de que era o seu dono.

No entanto, eram os desejos dela que prevaleciam sempre.

- Está bem – concordou finalmente – Eu lhe dou as pérolas se fizer direitinho o que eu vou dizer.

- Uau!! – comemorou ela com gritinhos de excitação – Então me diga logo o que eu tenho que fazer para merecer aquele colar maravilhoso!

- Conhece o Frei Henrique, não conhece?

- Qual mulher em São Martinho não conhece o padre bonitão? – disse em tom malicioso.

- Repita isso e eu mando lhe cortar a língua!

- Estava só brincando...

- Quero que preste bem atenção em tudo – frisou o Coronel – Vai espalhar pela cidade o boato de que ele tem uma amante...

- Uma amante??... Mas isso está ficando muito interessante!...

- ... Uma tal Ingrid Vankovsk. Uma gringa que mora lá para os lados de Redentor das Pedras. Possui uma oficina de costura ou coisa parecida; é uma espécie de líder das pessoas de lá. Elas confeccionam roupas e as vendem aqui.

- Hum... Acho que sei de quem está falando – disse pensativa com o indicador sob o queixo – Eu mesma andei comprando uns vestidos trazidos por ela... Tem talento essa tal Ingrid...

- Não me interessa se ela tem ou não talento – falou bruscamente – Não a quero fazendo negócios na minha cidade!

- Tudo bem, tudo bem...

- Quero que diga aos lojistas que retiro meu total apoio àquele que comprar uma peça se quer dessa mulher. Visite loja por loja, se necessário, o que não será nenhum sacrifício para você, suponho.

- E eu posso aproveitar e fazer umas comprinhas?... Estou mesmo precisando de umas coisinhas...

- Você não pensa em outra coisa?

- Bem, eu preciso de uma desculpa para ir à todas as lojas. Um boato não se espalha assim... Você mesmo não vive dizendo que eu tenho que ser discreta e cautelosa nesses trabalhinhos?

Se havia algo que ela tinha aprendido direitinho nesses dois anos de amante do prefeito, era ser esperta e oportunista no momento exato.

- Então?... Eu preciso entrar nas lojas, experimentar uns modelitos, fazer hora e ir falando, falando... Entendeu?

- Está bem, está bem, faça como quiser, mas faça bem feito. Faça essa Ingrid parecer uma devassa, uma ameaça às senhoras dignas e honradas dessa cidade... E esse padreco, um herege, um... um imoral desqualificado!

- Já entendi. Deixa comigo.

- Agora vem cá, me dá um chamego rápido e volte logo para o seu lugar. Não é conveniente que fique muito tempo aqui. Eu tenho um nome a zelar.

Do lado de fora do gabinete, Honório, o secretário-neto do prefeito, datilografava alguns documentos ao som de gemidos e suspiros alternados com o tec-tec da máquina de escrever:

- Vagabunda!

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Nada havia mudado na casa paroquial. Ingrid pensou que o tempo poderia ter parado. Dois anos fora muito pouco para que ela esquecesse a abundância de paz daquele lugar. O cheiro peculiar de casa limpa e bem cuidada causava-lhe uma deliciosa sensação de bem estar. Se era verdade que as casas refletem a personalidade de seus donos, ali essa particularidade ficava ainda mais evidente.

- Ainda gosta do seu chá com duas colheres de açúcar? – perguntou o Frei

- Ainda, obrigada. – respondeu ela – Sabe Frei, tantas coisas aconteceram nesses dois últimos anos desde a primeira vez que estive aqui, e no entanto...

- No entanto?...

- Acho que é essa casa, esse seu jeito simplista de ver o mundo, que faz com que tudo pareça tão pequeno, insignificante mesmo... Como se toda dificuldade, todas as coisas pela qual eu passei, tivessem durado apenas um dia.

- Se eu fosse você não se iludiria tanto comigo. O que você chama de simplismo, eu chamo de sabedoria adquirida.

- Não quis ofendê-lo ao dizer isso...

- E não ofendeu. Concordo com você quando diz que eu procuro ver as coisas do lado mais simples possível. Não que eu não dê as proporções adequadas aos problemas, eu os sinto e na maioria das vezes, procuro ignorá-los para que pareçam menores. É uma camuflagem, quase um truque para se tocar a vida a diante sem muito sofrimento. Eu diria até, que há certo conformismo com as provações que a vida me tem oferecido... Mas de que outra maneira eu posso estar fortificado para ajudar os meus semelhantes?... Se estiver envolvido demais com os meus próprios infortúnios me transformarei num egoísta.

Ingrid estava surpresa com as declarações que acabara de ouvir. Não havia sofrimento nas palavras do Frei, no entanto, era evidente que ele estava atravessando momentos de profunda angústia.

- Eu... Estava me referindo aos problemas de um modo geral... de todo mundo. Não sabia que o senhor estava passando por algum em especial...

- Ora, Ingrid, sou um ser humano, antes de qualquer outra coisa... E qual ser humano não passa por aflições?... Não sou diferente, sou um pouco mais forte pelo meu preparo, talvez, mas diferente não.

- Eu sinto muito, Frei... Se eu puder ajudar, afinal, lhe devo tanto...

- Você não me deve nada, Ingrid. E depois eu penso que certos momentos na vida têm que serem vividos... Não adianta nada afugentá-los.

- De qualquer forma, saiba que ficaria honrada em poder ajudar.

- Tem seus próprios objetivos a cumprir e são de tamanha nobreza... Isso é a maior retribuição que pode me dar.

- E posso lhe assegurar que não tem sido nada fácil. Confesso que pensei tantas vezes em desistir... Se não fosse por Sara e Agnes...

Ela cortou a frase tarde demais. Tinha evitado tocar no nome de Agnes o tempo todo, mas se sentia tão á vontade com ele que fora inevitável.

- Por falar em Agnes, como está ela? – perguntou casualmente.

- Muito bem – respondeu Ingrid tencionando mudar logo de assunto. Mas foi em vão.

- Cessaram os conflitos no convento?

- Sim, está tudo bem agora.

- Fiquei lisonjeado com a carta carinhosa que ela me escreveu.

- ...

- ... Só não entendi uma coisa: porque não contou a ela que nos conhecíamos?

Ingrid sentiu-se gelar. O suor frio brotava-lhe entre os dedos das mãos. Soubera o tempo todo que esse momento iria chegar e agora tinha que contar acerca daquele dia, não via outra saída. Era contar, ou expor seu tão bem guardado segredo. Após penosos momentos de absoluto silêncio, ela levantou-se e caminhou até a janela, postou-se de costas par ele e pôs-se a falar lentamente:

- No dia... Naquele dia em que nos conhecemos, aconteceram coisas horríveis... Um homem... Não tinha dinheiro para as passagens... eu peguei uma carona com um homem num caminhão para vir à São Martinho... Ele me atacou...

As palavras saíram trêmulas, sôfregas. A cada frase, as cenas de horrores se repetiam diante dos seus olhos. Tinha fingido a si mesma todo o tempo que aqueles momentos nunca haviam acontecidos e agora estava revivendo-os em toda sua plenitude. Lágrimas quentes insistiam teimosas, em rolarem pelas suas faces. Frei Henrique, depois de um breve instante de estupefação, caminhou até ela. Tomou-a pelos ombros e virou-a:

- Porque não me contou naquele dia? Percebi que havia algo errado... Perguntei se queria se confessar.

- Não pude – disse ela desviando o olhar – Fiquei com vergonha e...

- Santo Deus, Ingrid, sou um padre!... Poderia ter lhe confortado, aconselhado... Imagino o que passou. Ele... ele machucou você?

- Não, eu o machuquei.

- Machucou como?

- Arranquei-lhe um olho.

- Arrancou o que??

- Vou lhe contar tudo.

Ingrid procurou manter-se calma ao fazer o seu relato. Não queria perder nenhum detalhe; de nada adiantaria agora, omitir alguns fatos. Mesmo por que, desabafar com ele só poderia lhe fazer bem. Falou das investidas do homem, da sua luta desesperada contra ele, do salto do caminhão, do acidente, da sua fuga... E do seu silencio. Esse era o que mais pesava na sua consciência. No seu entender, ela era responsável, mesmo que indiretamente, por uma possível morte. Quando terminou, sentiu-se aliviada e ao mesmo tempo apreensiva; temia pela reprovação da parte dele. Entretanto, ele olhava-a com profundo pesar:

- Não tem que se sentir culpada – disse afetuosamente – Você não procurou isso... É evidente que num caso como esse, é de procedimento legal que se faça uma ocorrência policial, o que você não fez... Mas não estamos aqui julgando os procedimentos legais. É você o que conta agora, seus sentimentos, e esses, nenhum procedimento legal poderá amenizá-los.

- Não imagina como estou grata por essas palavras de compreensão – disse ela.

- Eu entendo como deve ser difícil para uma mulher se expor numa delegacia de polícia num caso como esse. É mesmo constrangedor... Não me admiraria se de vítima passasse a réu – prosseguiu ele – E depois, me ocorre agora, que ele pode não ter morrido. Se isso tivesse acontecido, eu saberia. Afinal, não foi tão longe daqui, e o que não se fica sabendo por esses lados?

- Talvez tenha razão – disse com a voz ainda embargada – De qualquer maneira, estou me sentindo mais aliviada... É a primeira vez que falo sobre isso. Achei que poderia esquecer aquele dia se não falasse a ninguém.

- Foi por isso que não contou à Agnes que nos conhecíamos?

- Foi. Ela pensa que passei a noite num hotel.

- Entendo – disse ele – Inevitavelmente acabei ficando associado àquele dia terrível.

- Oh! Não! O senhor foi a melhor coisa que aconteceu... Quero dizer, conhecê-lo foi a melhor coisa que me aconteceu depois de tudo... Só que não podia dizer à Agnes por que... por que...

A voz ficou presa à garganta. Seu coração batia descompassado. Estavam tão próximos nesse momento, que ela podia sentir seu hálito quente... O aroma doce da sua pele... Seus olhos se cruzaram em confissões inerentes e silenciosas. Ingrid sentiu-se entorpecida pela aquela proximidade; estava inerte, sem atitudes, sem forças se quer para reagir. Esperava e desejava aquele beijo, que ela sabia que viria e era inevitável para ambos. Uma parte do seu ser chamava-a de volta à razão, a outra queria se entregar... Oh! Meu Deus, o que estou fazendo?... É só um momento de felicidade, vou penitenciar-me depois... Ainda posso parar... Aquele devia ser o estreito limite entre a lucidez e a loucura; haveria um lugar onde as forças interiores lutavam entre si para somente uma sair vencedora.

Ela serrou os olhos num convite lúbrico; aguçou todos os sentidos e esvaziou os pensamentos. Para que pensar se nada mais importava no mundo, só aqueles momentos mágicos de paixão?... A principio ele só roçou de leve em seus lábios, depois a tomou nos braços num arroubo ardente.

Subitamente ele empurrou-a quase com violência. Ela abriu os olhos como quem volta de um transe. Um sentimento de pudor foi se apoderando dela, levou a mão à fronte, estava trêmula, ofegante. Seu primeiro pensamento foi sair correndo dali. Ele virou-se de costas para ela e caminhou alguns passos; estava amargurado.

- Não posso, Ingrid! Não posso!... Eu a amo demais, mas não posso quebrar os meus votos com a igreja... Se possuí-la, estaria traindo a mim mesmo e não a faria feliz, e nem seria, também... Não me sinto preparado para assumir uma esposa, uma família... Você é especial, é tão íntegra... Merece ter alguém ao seu lado que seja inteiramente livre para amá-la... Eu não sou essa pessoa... Escrevi ao Bispo pedindo um afastamento temporário, se for concedido, vou poder refletir e...

Ele voltou-se para poder fitá-la e descobriu que estava sozinho.


Um comentário:

  1. Oi Bia
    Estou adorando o seu conto que espero ve-lo num livro, breve .
    Fuquei curiosa pra saber o que vai acontecer com esse amor que a Ingrid (uma linda e guerreira mulher) sente pela padre e vice versa.
    E como vai desenrolar esse caso agora que o mau carater do Prefeito resolveu espalhar mentiras .
    Estou gostando Bia
    beijinhos volto depois.

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco