sexta-feira

CAPÍTULO V

"É Preciso Ver os Anjos"


A velha maria fumaça seguia, sacolejando, fazendo meandros por entre as serras; produzia um som repetitivo semelhante ao refrão de uma canção. Sara, já trocara a ansiedade pela excitação das imagens que passavam pelos seus olhos atentos:

- O que é aquilo, mamãe?
- O que?
- Aquilo, branquinho, no meio das montanhas.
- Ah! Sim, é uma cachoeira.
- Que linda!

Elas lancharam quando a fome chegou. Sara, cansada pelo dia exaustivo, deitou a cabeça no colo da mãe e adormeceu. Ingrid recostou-se no banco, fechou os olhos e soltou o pensamento. Cenas igual a um filme antigo bailavam em sua mente:


Ingrid e Agnes eram as únicas filhas do casal Josef e Maria Vankovsk. Moravam em Pílsen, cidade da Hungria. Ingrid tinha dezesseis anos, e Agnes quinze. Ingrid era a mais bonita, mas Agnes, a mais inteligente; saía-se bem na escola e auxiliava a irmã mais velha nos deveres escolares. Em troca, essa lhe conseguia privilégios com sua beleza sedutora, como por exemplo, entrar gratuitamente no cinema, ou, um bom desconto na compra de sapatos. Ingrid era alta, esguia, pele alva, olhos verdes, cabelos castanhos e volumosos. Agnes era do tipo cheinha, mais baixa que a irmã, mas ambas tinham o mesmo tom de pele e cabelos. Eram incrivelmente parecidas nos traços fisionômicos. Quando crianças, era comum que as pessoas pensassem que eram gêmeas devido a pequena diferença na idade.

Estavam em meados da década de quarenta. A Europa toda ardia no processo do pós-guerra, e um dia o pai anunciou que iriam imigrar para o Brasil. Recebera carta de um conterrâneo, que lá trabalhava nas minas de carvão. Muitos eram os boatos na Europa das possibilidades de trabalho nos países do novo mundo. O que os boatos não revelavam, era que não se tratava de nenhuma viagem de sonhos. Ao contrário disso, os imigrantes viajavam por meses a fio no porão de navios cargueiros, ou de terceira classe. A comida era escassa, não havia banheiros e tão pouco com o que se aquecerem nas madrugadas frias de inverno. Não foi diferente com a família Vankovsk. Passaram por inúmeros países até desembarcarem no Porto de Santos, no Brasil. De lá, seguiram seu destino: Redentor das Pedras, ao sul do estado do Paraná.
Redentor das Pedras era um lugarejo formado basicamente por mineiros e suas famílias que ali se instalaram para trabalharem na extração de carvão. No início, formou-se apenas um povoado ao redor das minas, depois uma vila, agora uma cidadela. Havia apenas um cartório para os mineiros casarem-se e registrarem os seus filhos, uma igreja e alguns poucos comércios de gêneros alimentícios. Tudo o mais tinham que ser adquirido em cidades vizinhas, que eles encomendavam, geralmente, a um caixeiro viajante. Redentor das Pedras ficava num vale entre as colinas; recebeu esse nome dos mineiros por causa do rosto de Cristo esculpido em uma rocha por um artista anônimo. A única atração do local era o Convento da Ordem das Irmãs Carmelitas, que se situava bem ao topo de uma colina ao norte da cidade. Era magnifico observa-lo lá de baixo.
A família Vankovsk, como todas as outras que ali chegavam, construiu sua casa com troncos de árvores extraídas da floresta local. A vida era difícil; não tinham água potável e tiveram que furar poços. A roupa era lavada em um afluente do rio Iguaçu que ficava a quilômetros de distância. E tudo isso, não era nada comparado às dificuldades de se aprender o idioma.
O sonho de uma vida melhor, tinha virado pesadelo, mas era tarde demais para arrependimentos: os amarelados dias eram travados com coragem e uma boa dose de esperança.

A gravidez de Ingrid viria alguns anos depois. Distante de ser algo a ser comemorado, traria ainda mais desencanto àquela família. Os comentários maldosos, a rejeição do pai, o choro da mãe eram fatos que ela desejava desesperadamente esquecer.

Ingrid e Sara desembarcaram solitárias na empoeirada e pequenina estação ferroviária de Redentor das Pedras.

Ingrid caminhou alguns passos, parou e colocou as malas no chão. Parecia petrificada. O olhar estendia-se pelo vale e fixava-se nas azuladas colinas que serviam de pano de fundo para a paisagem. Não saberia definir o que sentia naquele momento: um misto de pânico e nostalgia, um sentimento estranho e a sensação de que o tempo havia parado. Não mais porei os meus pés nesse lugar! – dissera a Agnes no dia em que partiu com a pequena Sara nos braços – Construirei um futuro sólido para nos duas... Nem que eu tenha que sangrar!

- Mamãe!... Mamãe!...

Sara puxava-a pelo braço.

- Sim...
- Está tudo bem?
- Claro, filha! Está tudo bem... Vamos.

O único meio de locomover-se pela cidade, era de charrete e havia algumas nos arredores da estação à espera de um possível passageiro. Ingrid chamou um charreteiro, pediu que subissem as bagagens e ordenou:

- Convento das Irmãs Carmelitas, por favor.

No trajeto, Sara permaneceu calada. Olhava tudo com estranheza: não via pessoas andando pelas ruas, nem pequenas casas com jardim de roseiras, nem criança passeando com seus cãozinhos. Nada. A paisagem era bonita, de encher os olhos, mas as poucas casas que via, eram casebres caindo, com pessoas maltrapilhas, sujas e descalças, à porta a olhá-las, com suas bocas abertas e desdentadas.
Ingrid também permanecia calada, pensando em como nada mudara. A não ser a miséria que parecia ainda maior, tudo era igual: as ruelas estreitas e sinuosas, o cheiro acre de esgoto a escorrer pelas valas... Até as pedras do caminho lhe pareciam as mesmas. Ela tinha a sensação que estava passando por uma espécie de purgatório pela expiação dos seus pecados. E a filha, o anjo inocente, também pagaria o seu quinhão pela sua máxima culpa.

No meio do caminho, Sara enjoou devido aos solavancos da charrete, e tiveram que parar com extrema dificuldade no acentuado aclive, para ela vomitar. Quando finalmente chegaram à frente do convento, o rosto da menina iluminou-se:

- Que casa linda!... Tia Agnes mora aqui, mamãe?
- Isto não é uma casa, Sara, é um convento. Tia Agnes mora aqui porque ela é freira.
- Nós também vamos morar aqui?

Ingrid conhecia bem aquele ar de excitação no rosto da filha, mas não mentia para ela quando a mentira podia ser evitada. Só não dizia a verdade quando a mentira tinha um significado maior: de protegê-la.

- Não, querida, não podemos morar aqui.
- E onde vamos morar?... Naquelas casas horrorosas que...
- Ainda não sei, mas acharemos um lugar. E por pior que possa parecer, transformaremos em algo agradável. Para isto temos talento, não é mesmo?

Ingrid saltou com Sara e depois desceu as bagagens. Pagou o charreteiro e se dirigiu ao alto portão em forma de arco. Olhou para a fachada e leu mentalmente: CONVENTO DE FORMAÇÀO RELIGIOSA DA ORDEM DAS IRMÀS CARMELITAS MARIA IMACULADA CONCEIÇÀO.

O gigantesco prédio amarelo ficava em meio a uma vasta área de terra. Mostrava-se majestoso pela arquitetura do século passado. As pequenas janelas enfileiradas no paredão frontal lhe conferiam graça e equilíbrio. Possuía duas altas torres, uma a cada lado do corpo principal. Árvores frondosas, com copas de um verde brilhante, transgrediam os limites dos muros proporcionando uma sombra reconfortante na calçada.

Ingrid tocou a campainha e minutos depois, uma noviça com rosto jovial, trajando vestes cor-de-manteiga, veio atendê-las. Precipitava-se o cair da tarde:

- Boa tarde... Meu nome é Ingrid Vankovsk – anunciou – Procuro pela minha irmã, Agnes Vankovsk.
- Ah! Sim, entrem – disse a moça, abrindo o pesado portão de ferro – Sigam-me, por favor. Vou avisar a irmã Agnes que estão aqui.

A noviça as encaminhou a um enorme salão redondo de uma das torres do prédio. O piso, de mármore róseo, possuía um brilho espelhado. Bem no alto da torre, ao redor, como se fosse um anel, havia mosaicos coloridos representando as fases mais importantes da paixão. Ingrid se perguntou como podia ter esquecido do luxo e beleza daquele lugar. A paz, o silêncio, tudo ali, lhe parecia um pedaço do paraíso em meio ao fogo ardente do inferno – não pôde evitar fazer um comparativo de tudo que vira ainda pouco lá fora.

O entardecer produzia os últimos raios solares que atravessavam pelos mosaicos trazendo fachos azuis, amarelos, verdes e vermelhos: projetavam desenhos indecifráveis nas paredes. Sara nunca tinha visto nada igual em toda sua vida. Estava extasiada olhando para o alto, quando o som de passos que se aproximavam do cumprido corredor, tirou-a do devaneio:

- Ingrid! Sara!... Que maravilhosa surpresa!

Agnes estava vestida num hábito preto-e-branco. No pescoço, um cordão com um crucifixo de madeira; no rosto, olhos úmidos e um sorriso largo. Depois de muitos abraços, beijos e lágrimas, Ingrid foi quem primeiro falou:

- Perdoe-me, Agnes, por ter vindo sem avisá-la...
- Oh! Não diga isso, minha irmã... Estou realmente feliz pela surpresa. Tenho rezado muito por esse dia. Estava com tanta saudade... Quanto tempo pretendem ficar?
- Agnes... Nós...
- Mamãe, estou com fome – interrompeu Sara.
- Mas é claro! – apressava-se, Agnes – É claro que vocês devem estar com fome! Venham, venham, vou providenciar algo para comerem.
- Preparamos alguns lanches para a viagem, mas a ansiedade desencadeou uma fome voraz em Sara – disse Ingrid abençoando mentalmente a filha por ter interrompido.

Sabia que tinha que contar à Agnes, mas queria escolher o momento certo. Arrumaria um meio de ficar a sós com a irmã, e aí, contaria tudo. Não podia fazê-lo na presença de Sara e conversarem em húngaro seria ainda pior. Ela sabia o quanto a filha se aborrecia quando elas “enrolavam a língua.”

Agnes levou-as até a cozinha do convento e preparou-lhe uns sanduíches de atum bastante apetitosos:

- O jantar será servido daqui a pouco – disse Agnes – mas creio que vocês queiram subir logo para o quarto, tomar um bom banho e descansar da viagem. Poderão jantar mais tarde se ainda estiverem com fome e...
- Não se preocupe tanto conosco, Agnes, não queremos atrapalhar – interrompeu Ingrid – Ficaremos somente por alguns dias...
- Logo, eu e mamãe vamos procurar uma casa para morarmos, não é mamãe? – explicou Sara inocentemente.

Ingrid sentiu que o olhar inquisitivo de Agnes iria penetrá-la a qualquer momento e se apressou em dizer:

- Bem, creio que poderemos conversar depois... depois que eu colocar Sara para dormir – disse ela piscando um olho.
- Po...podemos é claro... Há um quarto vago ao lado do meu. Vou providenciar mais uma cama para Sara. Quero que fiquem bem acomodadas.
- Obrigada. É realmente maravilhoso ter uma irmã como você.

As freiras que já haviam feito os votos tinham seus próprios dormitórios particulares. Eram enormes - bastante grandes para uma só pessoa – pensou Ingrid. Arejados e confortáveis, porém totalmente desprovidos de qualquer item que não fosse absolutamente necessário: apenas a cama acompanhada de uma mesinha de cabeceira, um pequeno armário para as roupas e uma cadeira. Na parede, como único adorno, só um crucifixo de metal logo acima da cabeceira da cama. No banheiro, o chuveiro, o vaso sanitário e um armarinho de parede com um espelho na porta.
As noviças ocupavam dormitórios comunitários e eram ainda maiores. Só podiam passar para o andar de cima e ocuparem aposentos privativos, depois de terem feito os votos, ou se recebessem alguma delegação especial. Havia uma hierarquia na Ordem, entretanto, ninguém gozava de privilégios: todas haviam feito votos de pobreza e coabitavam em harmonia e simplicidade. Pelo menos, esse era o modelo de conduta a ser alcançado; e para esse objetivo, eram treinadas.
Um grupo de freiras permanecia enclausurado, ou seja, isoladas e não se mostravam nunca. Passavam os seus dias rezando. Rezavam pela guerra, pelos enfermos, pelos presidiários, pelos infelizes, pelos injuriados, em fim, por toda sorte de desolação que assolam o mundo. E havia outro grupo, que tratavam dos assuntos práticos do convento, como por exemplo, fazer compras, cuidar da limpeza e higiene, de contas a pagar e naturalmente, da tarefa filantrópica. Essas irmãs representavam o único elo com o mundo exterior. O único contato entre o convento e o resto do mundo. Agnes fazia parte desse grupo e se sentia plenamente realizada; principalmente com o trabalho que vinha realizando na região. Era muito bom poder ajudar pessoas que compartilharam dos mesmos sonhos com sua própria família, quando ali chegaram. Era mesmo uma pena que o pai já tivesse morrido. Certamente se orgulharia em vê-la agora.

Agnes fizera os votos há dois anos. Decidira pela carreira religiosa logo após a gravidez da irmã. O pai era um homem severo, taciturno e de poucas palavras. Um católico fervoroso, quase um fanático. Nutria um velho sonho: entregaria seu primeiro filho ou filha à carreira religiosa. Mas Ingrid era avessa a essa possibilidade. Uma vez grávida, o pai rejeitou-a veementemente e não se achou mais lugar para ela na casa de troncos. Ingrid fora amparada pelo velho e bondoso Frei Alvino e permanecera na casa paroquial até a hora do parto. Agnes ia visitá-la todos os dias e levava-lhe coisas escondidas do pai, que mergulhado numa tristeza profunda, definhava dia a dia. Agnes sentia-se dividida entre a solidariedade à irmã e a compaixão pelo pai. Não raro, unia-se ao choro da mãe, que nada podia fazer, pois se tratava de mulher submissa e completamente dominada pelo marido. Agnes desejava a qualquer custo fazer alguma coisa que pudesse resgatar a tranquilidade que tinham no passado; quando ainda estavam na Hungria. Concluiu que se dedicasse sua vida aos serviços religiosos, talvez o pai pudesse esquecer e perdoar a irmã. Ele havia nutrido esse sonho por toda uma vida: não por ela, mas por Ingrid; no entanto, estava disposta a tentar. A família era a única referencia que possuía naquela vida dura e sofrida; todo e qualquer esforço valeria à pena. Sentia-se como se tivesse tomado para si o pecado da irmã e buscava a autopunição. De início realmente não foi nada fácil, devia admitir. Todo e qualquer sonho de ilusão de moça, teve que deixar para trás. Adaptar-se à nova vida, levou tempo e determinação. A coragem, ela buscou incessantemente no seu íntimo. E, o que parecia um sacrifício, tornara-se, com o tempo, toda a razão da sua existência: um jeito prazeroso de viver. Hoje, não acredita mais que esteja perdendo coisas de grande valor que o mundo pudesse lhe oferecer. Tinha tudo que precisava para viver pelo resto da vida. E sentia-se liberta dos anseios de realizações egoístas.
Apenas lamentava o fato de os pais não terem vivido o suficiente para vê-la fazer os votos. O pai morreu numa rebelião de mineiros contra a empreiteira que explorava as minas. Seu pai, juntamente com outros trabalhadores, havia se apossado das minas, pois estavam sem salários a cinco meses. Eles tinham dinamites e houve uma grande explosão seguida de desabamento. Nunca se soube ao certo o que aconteceu lá embaixo. O fato é que todos morreram. Isso ocorrera há oito anos e sua mãe adoeceu e viera a falecer exatamente um ano depois.
A tragédia desencadeou outra série de acontecimentos, dentre eles, a desativação das minas. As famílias, que lá se estabeleceram para extrair das minas o sustento, não tinham mais como sobreviverem. Dependiam da caridade alheia até para suprirem suas necessidades mais urgentes. E cada vez mais, a fome e a miséria reinavam absolutas. Essa era a dura realidade no momento em Redentor das Pedras.


Ingrid colocou Sara para dormir e esperou que ela mergulhasse num sono profundo, e então, bateu à porta do quarto de Agnes:

- Agnes!... Sou eu.

Agnes estava, obviamente, curiosa:

- Entre, sente-se aqui – disse Agnes indicando a cama.

Ingrid podia finalmente falar com alguém, mas a voz ficou presa à garganta. Foi Agnes quem falou primeiro:

- Quer, pelo amor de Deus, me contar agora o que está acontecendo?
- Aconteceu, Agnes... Aconteceu o que temíamos.
- O que quer dizer com “aconteceu”? – indagou Agnes apreensiva.
- Ela descobriu tudo... Esteve lá em casa e me deu vinte e quatro horas para desocupá-la.
- Está me dizendo que ela expulsou você de sua própria casa? – perguntou perplexa.
- Não é minha casa, Agnes.
- Sim, eu sei, é de Sara, o que vem a ser a mesma coisa...
- Também não é de Sara – informou Ingrid.
- Como não? Eu me lembro... Eles colocaram a casa no nome dela e... – Ela olhou mais atentamente para expressão no rosto da irmã – Não colocaram?
- Não. Decidiram que colocariam quando ela atingisse a maioridade, e durante esse período, poderíamos ficar morando lá e...
- Deus do céu, Ingrid! E você concordou com isso? – Agnes estava atordoada com a revelação.
- O que mais eu poderia fazer?

Ingrid levantou-se e começou a andar de um lado para outro agitadamente.

...Você acompanhou tudo desde o início, sabe que eu não tive escolha... Eram eles que ditavam as regras...
- Mas você tinha que ter reagido, minha irmã! – retorquiu Agnes – Devia ter-lhes enfrentado de uma vez, naquela época... Eu lhe avisei das conseqüências daquele acordo...
- Oh, Agnes, parece tão fácil falar agora!... Mas naquela época... Estava tão frágil... Não lutaria nem com uma aranha.
- E porque não luta agora? – insistiu Agnes.
- Ela fez ameaças... Disse que tinha meios de tirar-me Sara... Oh! Minha irmã, eu tive tanto medo!... Eles são tão poderosos e ela é tão perversa...

Ingrid explodiu em soluços. Agnes tomou-a nos braços e odiou a si mesma por estar fazendo tantas cobranças, quando na verdade, tinha que ampará-la.

- Perdoe-me Ingrid, estou sendo injusta. Vou rezar por você e tudo vai ficar bem, você verá.
- Obrigada – Disse ela soando o nariz – Não quero ser um peso para você. Vamos ficar aqui só por alguns dias e depois...
- O que está dizendo? Não é um peso para mim!... Só que me preocupo com você. Não imagina a desolação que se transformou esse lugar. Não há trabalho, nem perspectiva para uma mulher como você. Muitos foram embora com a desativação das minas... somente os muito velhos ou quem não tem para onde ir é que ainda estão aqui... Posso tentar conseguir uma autorização especial para que morem aqui no convento, mas sobreviverão de que maneira? Os donativos...
- Não pretendo morar aqui, Agnes – anunciou Ingrid.
- E onde vão morar nesse fim de mundo?
- A casa de papai ainda está lá?
- Está, mas você não pode estar falando sério... Ingrid, aquela casa está caindo! Sem contar a sujeira, o mato...
- Eu consertarei e também limparei – disse com determinação.
- De maneira nenhuma! Não permitirei que...
- Agnes, por favor! – Interrompeu-a – Estou precisando recuperar minha dignidade e a única maneira de fazer isso é reconstruir nossas vidas, minha e de Sara. E tenho que fazer isso sozinha. Não estou recusando sua ajuda, pelo contrário, vou precisar muito dela. Mas só vou-me sentir inteira novamente se conseguir construir o que perdemos: nosso lar.
- Está sendo ingênua, Ingrid. Não conseguirá sobreviver aqui – Havia tristeza na voz de Agnes.
- Não pude pensar em outro lugar com tão pouco tempo para decidir.
- Tem algum dinheiro?
- Pouco. Tinha algum para receber, mas não tive tempo.
- Aquela maldita!... Oh! Perdoe-me Senhor! – Agnes bateu com a ponta dos dedos na boca, estava corada – Vou te arrumar algum, não é muito, mas é tudo que eu tenho no momento.

De repente uma lembrança fez Agnes sobressaltar-se:

- Ingrid, já te ocorreu que ela pode vir procurá-la aqui? Ela conhece esse lugar...
- Não virá. – afirmou Ingrid com convicção.
- Como sabe?
- Ela pensa que já alcançou seu objetivo: Jogar-me na rua, destruir-me... Mas não irá conseguir, eu juro. Nunca! – Havia revolta naquelas palavras.

Elas permaneceram ali, abraçadas por um longo período de tempo; recostadas na cama, sem nada dizer. Agnes quebrou o silêncio:

- Como ela descobriu?
- Não sei, ela não disse. Entrou pela casa adentro feito um furacão, me acusando, fazendo ameaças, me agredindo com palavras horríveis.
- E Sara?
- Graças a Deus, ainda não havia voltado da escola... Por pouco não a surpreende lá.
- Escola! – lembrou Agnes de repente – como vai mandar Sara à escola? Não temos escola, você já pensou nisso?
- Já. Vou dar aulas a ela. Tentarei ensinar-lhe o pouco que consegui aprender aqui no Brasil e até lá... – as palavras morreram em seus lábios.
- Pretende tapeá-la, não é mesmo? – perguntou Agnes.
- Não tenho outra escolha.

Ingrid só havia freqüentado a escola na Hungria, mesmo assim só concluíra o ginásio. Agnes tinha estudado no convento, mas ela não poderia pedir mais isso à irmã, que já tinha muito que fazer.

- Posso te ajudar nessa tarefa – disse Agnes como se adivinhasse os pensamentos dela – Além do mais, estou cuidando da construção de um pequeno posto de saúde, perto da paróquia, e ando pensando em designar uma sala para converter em escola. Não é grande coisa, mas talvez possamos arrumar uma professora e...

A revelação trouxe um sorriso ao rosto de Ingrid: o primeiro que Agnes viu desde que chegaram.

- Genial, Agnes!... Ah! Você não imagina como Sara gostava da escola...
- Não se empolgue muito, não. A obra mal saiu do chão e está cada vez mais difícil conseguir donativos. A maioria das pessoas prefere fechar os olhos aos infortúnios alheios a mover uma palha.
- Onde tenta conseguir os donativos?
- Com fazendeiros, empresários das regiões vizinhas... Mas tenho encontrado mais portas fechadas do que abertas.
- Posso imaginar.

- Agnes... As pessoas ainda comentam a meu respeito?
- Não que eu saiba. Andam tão amarguradas com seus próprios destinos... Não creio que ainda se lembrem.
- Tomara.

Ingrid caminhou até a janela, abriu-a e olhou para o céu:

- Olha Agnes, que lindo!... Está amanhecendo.


Por dois dias, Ingrid e Sara permaneceram nos limites do convento. Sara corria pelos jardins perseguindo borboletas e se encantava com os pássaros que vinham comer das frutas maduras do pomar. Conversava com as freiras, mostrava-se feliz e até parecia ter esquecido o que havia deixado para traz. Vivia dizendo que aquela era “a casa mais linda do mundo.”

A rotina do convento era rigorosa: 5:00h., acordar, 5:30h., café da manhã, 6:00h., missa, 8:00h., começa a arrumação dos quartos e limpeza geral das demais dependências, 12:00h., almoço, 13:00h., início dos estudos teocráticos – nesse período, Agnes e outras irmãs saíam para resolver todo e qualquer assunto fora do convento – 15:00h., lanche, 16:00h., mais estudos, orações e outras atividades – como ensaio do coral, por exemplo – 18:00h., outra missa e l9:15h., jantar.
Depois do jantar, as freiras se recolhiam para seus aposentos para lerem, rezarem e depois dormirem. As freiras que, como Agnes, saíam muito, não seguiam necessariamente esta rotina.

Ingrid não tinha mais porque adiar, por isso decidiu ir logo ver a casa. No terceiro dia pela manhã, logo depois da missa, as três desceram a colina no velho furgão com Agnes ao volante, rumo à cidade. A única rua pavimentada do lugar, era o pequeno trecho que circundava o convento.Todo o trajeto até a cidade, não somavam cinco quilômetros, mais perecia haver o dobro pela dificuldade de acesso.
Quando chegaram, Ingrid sentiu um estranho arrepio ao ver que não se tratava mais de uma casa. A vegetação que crescera dentro dela atravessara o telhado em busca de luz, transformando-a numa espécie de brincadeira bizarra da natureza. Porém, se manteve firme: havia notado o desapontamento no rosto de Sara.

- Você foi generosa ao dizer que a casa estava ruim... Ela está péssima! – cochichou Ingrid à irmã.
- Eu lhe disse, mas você é teimosa. Certamente mudou de idéia...
- Não – contestou determinada – começarei hoje mesmo a arrumá-la.
- Temos mesmo que morar aqui, mamãe? Não podemos ficar com tia Agnes no convento?

Ingrid abaixou-se para olhar Sara diretamente nos olhos. Um novo sentimento começava a brotar em seu coração. Um sentimento de força e coragem, uma vontade de lutar que há muito não sentia. Ela sorriu para filha e disse:

- Queremos ter nossa própria casa, não queremos?... Ela está feia agora, mas nós iremos arrumá-la. Plantaremos um lindo jardim e um pomar. Faremos uma horta e criaremos algumas aves. Em pouco tempo nem parecerá a mesma... E vai ser muito divertido, pode apostar!
- E eu posso ter um cachorro?
- É claro que pode!

No mesmo dia, iniciaram a arrumação. Limparam, carpiram, tamparam os buracos, arrumaram o telhado, mataram os ratos e as aranhas que se escondiam por toda parte. Ingrid contratou um poceiro para limpar o velho poço e a água brotou como num milagre. Agnes arranjou alguns móveis: Uma cama, um fogão, um guarda roupas e uma mesa. Alguns caixotes, do antigo armazém desativado, lhes serviam de cadeiras, e isso era tudo que elas possuíam. No entanto, a pequena casa de troncos já exibia outro aspecto. Ingrid improvisara cortinas para as janelas, com tecido que trouxera de Monte Bonito, e, exatamente uma semana depois, elas se instalaram no novo lar. Começava uma nova etapa da vida para elas. O futuro era incerto e também inevitável. Não havia meio de prender o tempo, ele viria de qualquer maneira. Só lhes restava esperar... Esperar para ver.

Dias depois, Ingrid confrontou com o primeiro obstáculo. Vinha protelando há tempos a questão da escola com Sara, mas a pergunta pegou-a de sopetão e não pode mais adiar:

- Mamãe, quando vou começar a freqüentar as aulas?... Ainda não sei onde fica a escola.
- Sara, aqui não tem escola... por enquanto. Tia Agnes está construindo uma e enquanto não ficar pronta, eu darei aulas para você.
- Mas você não é professora...
- Não me julga capaz de ensiná-la?
- Não é isso! Sei que você sabe me ensinar... Mas você é minha mãe e eu gosto de ter as duas: mãe e professora.
- Sabe de uma coisa? Às vezes gostaria que não fosse tão inteligente!

Os dias iam passando em Redentor das Pedras e por mais que Ingrid se esforçasse não conseguia pensar num meio de trabalhar naquele lugar. Como posso querer ganhar a vida costurando, se as pessoas nem mesmo tem o que vestir? – pensava desanimada.

Enquanto isso, ela arava a terra nos fundos da casa a fim de semear umas sementes de hortaliças. Cercou uma pequena área com bambu e construiu o galinheiro. Agnes trouxe-lhe os pintinhos e ela alimentava-os com minhocas e pequenos vermes retirados da terra. Como ainda não produzia nada, Agnes trazia-lhe mantimentos doados; porém, eram escassos e nem sempre o suficiente. E a fome era uma dor silenciosa e humilhante.

- Mamãe, tia Agnes vai demorar a chegar?... Eu estou com fome.

Ingrid enxugou o suor do rosto com as costas das mãos sujas de terra, soltou a enxada e saiu. Logo voltou com um facão em punho:

- Espere aqui – ordenou ela à filha – Eu não demoro.
- Aonde você vai?
- Vi um bananal lá para os lados do rio. Vai dar para enganar o estômago até Agnes chegar – depois, respirou profundamente – Se ela não trouxer nada, amanhã arrancarei alguns brotos de bambu. Talvez possamos pescar alguns peixes, não sei...

Ela sentia-se péssima e cansada; ansiava por dias melhores e torcia para que o tempo passasse depressa. Foram meses difíceis aqueles, quase impossíveis de suportar. Ingrid procurava manter a filha ocupada. Passava-lhe páginas e mais páginas de lições de aritmética e gramática retiradas de seus próprios livros. Porém, com o tempo, passou a ficar repetitivo. Então, Agnes passou a trazer-lhe folhas de papel e lápis de cor para desenhar, mas sem resultado. Sara perdera o interesse por tudo e estava visivelmente abatida; sentia-se solitária e começou a adoecer. Ela, que sempre fora uma criança de uma resistência inabalável, teve tudo naquele ano: Sarampo, varicela, cachumba... Resfriados intermináveis; nem bem se curava de um mal, e já vinha outro. Às vezes parecia que ia morrer de tristeza, e Ingrid não sabia mais o que fazer. Disse à Agnes certa noite, quando Sara queimava em febre:

- Deus está me punindo, Agnes... Vou perder Sara, também.
- Não diga bobagens, Ingrid! Deus não pune ninguém... Você está se punindo!

A voz de Agnes era dura como rocha

- Quando vai perdoar a si própria? Essa amargura... essa sua tristeza está refletindo em Sara. Ela não vai melhorar enquanto você não reagir. Você é o sopro de vida dela... Nunca se esqueça disso!

Aquelas palavras haviam pousado como pedras lançadas ao fundo de um lago na mente de Ingrid – Você é o sopro de vida dela – repetia ela mentalmente – Você tem que reagir!... Eu vou reagir!

Ingrid passou a ficar o tempo todo ao lado da cama da filha. Só se ausentava quando tinha que preparar a comida, que agora abundava no quintal, mas eram sempre as mesmas: Verduras, ovos, às vezes um frango... Agnes completava com o arroz, o feijão, a farinha e tudo o mais que ela conseguia. Além da comida, esforçava-se em dar à filha mais do que o carinho costumeiro. Lia histórias para ela, cantava, inventava brincadeiras e aos poucos a menina ia melhorando.

O tempo galopou, e chegou o Natal, sem ceia, nem árvore. O presente de Sara, apenas uma boneca de retalhos recheada com capim que a mãe fizera escondida, depois que ela adormecia. Dias depois, o seu aniversário; Sara completava dez anos: sem festa, nem bolo com velinhas para apagar... Ela recordava seus aniversários anteriores: a agitação dos preparativos, a mãe confeitando o bolo com glacê cor-de-rosa, ela pregando os enfeites nas paredes e enchendo balões coloridos. As crianças das vizinhanças chegando bem arrumadas, o sonoro coro do parabéns-a-você... O que havia acontecido com a vida delas? Quem seria culpado por tudo aquilo? Quando eu crescer, acho que vou entender.


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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco