quarta-feira

CAPÍTULO X

"É Preciso Ver os Anjos"

Em Redentor das Pedras, Ingrid mergulhou no trabalho sem trégua, queria esquecer, esquecer...
Mas Agnes, que a conhecia tão bem, notou sua mudança de comportamento:

- O que está havendo com você, Ingrid?... Parece triste, deprimida... Esta com algum problema?
- Não... Claro que não! É... é só cansaço. Acho que estou ficando velha.
- Ora, não me faça rir com essa conversa que está ficando velha! Está deprimida, sim, que eu te conheço! – insistiu ela.
- Não estou deprimida, Agnes – afirmou ela tencionando dar um basta naquele assunto – ... São esses vestidos. Tenho que correr para revisá-los com muito cuidado e você sabe que eu não gosto de deixar nada para a última hora. Olha só, como estão ficando perfeitos!...
- Não muda de assunto, Ingrid... Mas tudo bem, se não quer falar, que não fale. É um direito seu.

Sara chegava da escola e acabara de entrar pela oficina para alívio de Ingrid:

- Olá mamãe, olá tia Agnes.
- Como está indo na escola? – perguntou a tia.
- Tirando o atraso – respondeu ela.
- Que bom que pensa assim! – exclamou Agnes – vou lhe dar um presente para cada nota cem que tirar nas sabatinas.
- Não terá dinheiro para tantos presentes, mas aceito o desafio – disse Sara brincalhona.
- Sara! – repreendeu a mãe – Não deve explorar sua tia!
- Não é nenhuma exploração, Ingrid. Eu prometi e vou cumprir – afirmou Agnes.
- E eu posso escolher? – perguntou Sara.
- Desde que não seja nada muito caro – advertiu a tia.
- Quero pincéis e tintas. Uma cor para cada nota máxima que eu tirar durante todo o ano... Adoro pintar. Um dia ainda vou ser uma grande pintora!
- Eu não duvido disso – disse Agnes – Tanto que vou pedir à sua mãe que traga já alguns tubos de São Martinho.
- Quando vai à São Martinho, mamãe?

A simples menção de voltar à São Martinho fez Ingrid estremecer por dentro.

- Ainda demora alguns dias – disse apanhando outro vestido de noiva e estendendo-o sobre a mesa para inspecioná-lo.
- Que lindo este vestido! – exclamou Sara.

Num impulso, a menina apanhou o vestido, colocou diante do corpo e correu para diante do espelho:

- Quando eu me casar estarei usando um vestido tão lindo quanto este.
- És uma sonhadora incorrigível! – exclamou Agnes.
- É verdade, tia Agnes... Vai ser um casamento com uma festa linda, com um bolo enorme, desses com muitos andares. Terei muitos filhos porque ser filha única é ruim... Seria tão bom se eu tivesse irmãos...

Ingrid sentiu um aperto no coração. Sabia como era importante para a filha ter uma família numerosa. Fez uma prece muda para que os sonhos da menina se realizassem. Oh, meu Deus, não permita que ela se decepcione...

- Mamãe, porque você nunca se casou?

Ingrid engoliu em seco. Como responderia àquela pergunta? Talvez devesse fugir da resposta, mas sabia que Sara não era de deixar uma pergunta no ar. Ela e Agnes entreolharam-se brevemente; certamente estavam pensando a mesma coisa. Sara nunca mais perguntara pelo pai, seria essa sua próxima pergunta?

- Acho que não fui feita para o casamento – disse simplesmente.
- Ora, mamãe, toda mulher foi feita para o casamento... Menos tia Agnes, é claro!
- ...
- Tia Agnes... Porque os padres e as freiras não se casam?
- Porque já somos casados com a igreja – respondeu Agnes – Nós, as freiras, costumamos dizer que estamos casadas com Cristo.
- Não é a mesma coisa... Você não acha mamãe?
- ...
- Mamãe!... Estou falando com você!
- Eu acho que você está muito perguntadeira hoje – disse Ingrid fugindo da resposta.
- Eu jamais escolheria ser freira... Viver num convento longe da família. Tenho medo de ficar sozinha. É por isso que quero ter muitos filhos para não correr esse risco... E também para dar muitos netos à mamãe.
- É muito cedo para pensar nisso – disse Ingrid tomando delicadamente o vestido de suas mãos – Porque não vai até a casa adiantar o almoço? Irei tão logo termine com esses vestidos.

Ingrid virou-se para enxugar prematuramente uma lágrima que se preparava para rolar. Tinha vivido e ainda vivia momentos de muitos infortúnios no que dizia respeito às coisas do coração. Suas experiências sentimentais assemelhavam-se a uma história erroneamente escrita por algum escritor insano. Mas nunca, em hipótese alguma, derramaria seu amargor em cima da filha. Tinha esperanças de que com ela as coisas seriam diferentes. Desejava sinceramente que no futuro, Sara encontrasse um homem bom, afetuoso e de caráter que a amasse e a respeitasse. Que sua história de amor, pelo menos, tivesse um final feliz. Já que para ela, o sonho havia acabado.

---------------------------------------------------------------------------


Enquanto isso, em São Martinho, Leopoldo, um rapaz franzino de vestes simples, olhos apreensivos, encontrava-se parado à porta do gabinete do prefeito.

- Pai... Mandou-me chamar? – perguntou timidamente o rapaz
- Você demorou – falou o homem friamente sem levantar a cabeça – Sente-se aqui. Preciso ter uma conversa com você.

Era mais uma ordem do que um convite. Leopoldo sentou-se na cadeira diante do prefeito. Por mais que tentasse decifrar o motivo daquele chamado, não conseguia atinar o que o pai poderia estar querendo com ele. Quando concordara, depois de muita insistência da mãe, em mandá-lo para a Capital estudar medicina, impôs uma única condição: Que ele nunca mais colocasse os pés em São Martinho. As palavras do pai ainda estavam bem guardadas em sua memória. “Vá, mas não volte jamais! Custearei seus estudos até que se forme, e quando isso acontecer, fique por lá mesmo. Aqui não há lugar para os fracos!” Isso acontecera à quase quatro anos, e durante esse período, mantivera correspondência com a mãe. Até viera uma vez, nas férias de verão, encontrara-se com ela na casa de parentes, mas o pai nunca soube disso.

Leopoldo era o caçula e temporão dos três filhos, dois homens e uma mulher, do Coronel Ferreira e sua esposa Marieta. A mãe o amava mais do que tudo, mas o pai rejeitara-o desde o princípio. Era o retrato da mãe; estrutura óssea miúda e de baixa estatura. Tímido, tinha a fala mansa, dócil e temperamento brando. Muito educado, se preocupava com a ética e a moral; achava que o caráter de um homem tinha que ser à toda prova, deveras, a melhor qualidade de um ser humano. Talvez fosse esse o motivo pelo qual o pai não conseguia amá-lo como amava os outros. Para o Coronel Ferreira, acostumado a dominar e a enfrentar desafios cada vez mais ousados, assumir um filho com aptidões humanitárias, seria o mesmo que dizer a todo mundo que ele cometera um erro na sua prole. Ainda mais, que Leopoldo não possuía a menor vocação para a política, o que era, sem sombra de duvida, uma afronta à seus ideais. Joana, a mais velha dos três, casara-se com o filho de um rico fazendeiro de gado da região e seu melhor colaborador na política, e assim como Honório, o único filho do casal, estavam agregados à prefeitura. Euclides, o do meio, ocupava um importante cargo político na Capital e direcionava o negócio do café para várias regiões, usando para isso, toda sua influência política. Só Leopoldo não fazia parte dessa engrenagem. Ele compreendera desde menino, que só contaria com a mãe para dividir seus anseios e sonhos de cursar medicina; trabalhar num grande hospital, aperfeiçoar-se na área da ciência, realizar pesquisas, fazer novas descobertas que pudessem beneficiar toda a humanidade - E deixar seu registro em alguma parte do mundo. Mais do que um simples médico, desejava de fato, ser um cientista e queria ser o melhor. Ainda provaria ao pai que não viera ao mundo para envergonhá-lo; colocaria suas condecorações lado à lado às medalhas de honra ao mérito do Coronel Ferreira, mas tinha que ser naquilo pelo qual ele nutria verdadeira paixão: A medicina.

Agora, diante daquela figura austera, tentava parecer natural. Mantinha as mãos sobre os joelhos, os dedos entrelaçados, um truque para impedir que tremessem. Toda proximidade com o pai lhe era difícil pelo mero fato, de que não eram íntimos. Um abismo infinito os colocava em extremidades opostas, e fosse qual fosse o sentimento que tinha por ele, sabia, não era amor; tão pouco ódio. Também não classificaria como medo ou respeito. Pensava que por ser algo que ia além de sua compreensão, nunca se sentia preparado para lidar com situações como essas, e quase sempre saía perdedor.

- Ouviu o que eu disse? – perguntou o Coronel com seu vozeirão.
- Desculpe... Estava distraído... Meu pai pode repetir, por favor?
- Disse que tenho um assunto sério a tratar com você... E do seu interesse.
- Imagino que seja muito importante para o senhor me chamar assim com tanta urgência, mesmo depois de...
- Vamos deixar de trelelê e ir direto ao ponto! – determinou o coronel ignorando a observação do filho.

Ele apanhou um charuto na caixa que estava em cima da mesa, levou-o à boca, mordeu a ponta, cuspiu-a e depois acendeu. Puxou e soltou a fumaça várias vezes até que se estabeleceu uma densa névoa entre eles.

- Você deve lembrar-se de um lugar, onde havia umas minas de carvão a uns oitenta quilômetros à leste daqui. Os mineiros batizaram o lugar pelo nome de Redentor das Pedras por conta de uma escultura na rocha.
- Acho que me lembro vagamente – disse Leopoldo – Estive lá uma vez quando era garoto com o Tonico. Mas porque está me perguntando isso? Ouvi dizer que não há mais nada por lá, só o convento das freiras no alto da colina.
- Pois se enganou. Assim como eu também. As minas se foram, mais as pessoas ficaram... A grande maioria, pelo menos.
- Como soube? – perguntou Leopoldo.
- Há alguns dias, procurou-me de lá, uma húngara de nome Ingrid. Na verdade, veio fazer-me um pedido, mas acabou contando-me coisas interessantes... muito interessantes, eu diria.
- Não sabia que havia estrangeiros trabalhando nas minas...
- Parece-me que tinham duas ou três famílias somente. Essa Ingrid e a irmã, são as únicas dessas famílias que ainda moram por lá. Isso não importa, o que importa é que acabei de receber informações precisas de que o lugar está prosperando rapidamente... Há até mesmo pessoas se mudando para lá para trabalhar.
- Trabalhar?! Mas trabalhar em que?
- Na costura.
- Costura? Não estou entendendo – disse Leopoldo confuso – Está me dizendo que alguém montou uma indústria de costura naquele fim de mundo?
- Mais ou menos isso. Eu vou lhe contar o que descobri.

Enquanto o pai relatava seu encontro com Ingrid, Leopoldo ouvia atentamente. Um lampejo de pensamento não pode ser evitado: Quem os visse naquele momento, diria que eram simplesmente pai e filho conversando amistosamente. Ele iludia-se com a possibilidade de que o pai só quisesse compartilhar com ele alguma coisa fabulosa, interessante. Todavia, descobriria em breve que as intenções do Coronel eram muito mais contundentes.

- ... E foi assim que essa mulher sozinha conseguiu realizar todas essas coisas e acabou tornando-se uma espécie de líder do lugar. – concluiu o Coronel.
- Sim, mas meu pai ainda não me disse por que mandou-me chamar. Não foi só para me contar estas coisas...
- Naturalmente que não – cortou o Coronel – Eu disse que ela realizou muito por lá, mas ainda falta muito mais... E é aí que você entra.
- Desculpe... Mas não entendi...
- Já vai entender – disse ele – Ela veio até a prefeitura pedir-me um médico para o seu novo posto de saúde.

Leopoldo começava a compreender as verdadeiras intenções do pai, e mal podia acreditar.

- Não está pensando em me mandar para lá como médico, está? – arriscou ele.
- Pensando não, eu vou mandá-lo! – afirmou o Coronel.
- Pai, não pode fazer isso! – protestou em súplica – Nem mesmo concluí o quarto ano, não posso clinicar como um médico...
- Ora, não me venha com essa conversa! – exclamou o Coronel levantando-se bruscamente – Não queira me convencer que com todo aquele dinheiro que te mandei não te fez capaz de curar a dor de barriga daquela gente!
- Não se trata disso, meu pai – retrucou Leopoldo – Ser médico vai muito mais além de curar a dor de barriga de alguém... exige preparação, responsabilidades...
- Competência! – interrompeu o Coronel aos berros – É isso o que você não tem: com-pe-tên-cia! ...Pois bem, estou lhe oferecendo uma escolha. È ir para Redentor ou não terá mais um tostão para seus malditos estudos! Terá que custeá-lo sozinho.

Sem dúvida, o Coronel sabia como ninguém desarmar uma pessoa. Atingia-a em cheio no seu ponto mais vulnerável: O orgulho. Leopoldo sentia-se assim, ferido em seu amor próprio. Não era incompetente, somente não estava preparado. Mas era totalmente inútil esperar que o pai entendesse isso. Como era inútil argumentar que estaria cometendo o crime de exercício ilegal da profissão para alguém que se considerava a própria materialização da lei. Como fora ingênuo achando que ele tivesse mudado; continuava o mesmo homem intransigente e prepotente de sempre. Pior do que isso, não possuía nenhum caráter.

Fugir dali o mais rápido possível, era o que desejava, no entanto a calma e a sensatez eram imprescindível naquele momento. De nada adiantava uma afronta agora, pois conhecendo o pai como conhecia, concluiu logo que havia outros interesses por traz de tudo e resolveu ir pelas beiradas:

- Supondo que eu concorde em ir... o que mais terei de fazer?
- Quero que seja meu olheiro – disse sem rodeios – Descubra tudo que for possível... Esse negócio de costura, se é mesmo rentável, quantos eles são e que área de terras ocupam, enfim, tudo que for possível. Depois, procure com muita agilidade, um bom lugar para se construir um armazém, antes que outros façam. Investigue como anda o prédio onde funcionava o antigo cartório.Veja se é possível uma restauração, ou se será necessário construir outro... Também vou precisar de uns bons locais para montar uma botica, uma loja de ferramentas agrícolas, talvez...
- Entendo... E é só isso? – perguntou com uma pitada de ironia.
- Ainda tenho uma recomendação importante: Não é bom que saibam que é meu filho. Para não por tudo a perder.
E envergonhar o meu nome – pensou o Coronel.
E me matar de vergonha – pensou Leopoldo.
- E... eu posso saber o que o senhor está pretendendo? – arriscou ele.
- Ora, vou lhe dar uma cidade de presente. E cuide para não me decepcionar dessa vez!

Leopoldo deixou o gabinete atordoado; sentia-se como quem fora fortemente atingido na cabeça. Passou pela mesa do sobrinho sem notá-lo e ganhou a rua. Por três horas consecutivas perambulou sem destino. Estava ansioso para ver a mãe, mas tinha adiado a visita. Agora precisava pensar, organizar as idéias, tomar decisões importantes; tão importantes, que ele sabia, mudaria toda sua vida para sempre. É bem verdade que poderia recusar a “proposta” do pai, girar nos calcanhares e voltar para a capital. Tentar arrumar um emprego, custear os anos que ainda faltavam até a formatura... Seria sua independência, mais do que isso, estaria livre da tirania daquele homem. Porém não era tão fácil assim. Cursava medicina em tempo integral, pouco tempo livre sobrava-lhe e era insuficiente par exercer qualquer profissão. Sem contar que qualquer emprego, por melhor que fosse, não seria suficiente para pagar as mensalidades altas da universidade. A rigor, não se achava ousado o suficiente para jogar tudo para o alto, desafiar o pai e seguir seu próprio destino. “Aqui não há lugar para os fracos!” Se isso era demonstração de fraqueza, então o pai tinha razão.

Nem notara que tinha tomado o caminho do lago nos arredores da fazenda onde passara sua infância. Era para lá que fugia quando menino, toda vez que estava triste ou era humilhado pelo pai. Ficava por ali horas a fio e quase sempre voltava para casa mais leve, fortificado; como se aquele lugar tivesse o poder de curar todos os seus males.

Ele sentou à margem e pôs-se a atirar pedriscos no meio do lago, observava as sucessões de círculos formados com os movimentos das águas. Um vento forte e repentino começou a soprar anunciando uma tempestade. Não demorou nada para que os céus abrissem suas comportas e despejassem o aguaceiro.

Leopoldo encolheu-se enlaçado aos joelhos e deixou-se molhar pela chuva fria. Quando a tempestade passou e o céu voltou a clarear, já tinha tomado uma decisão.


4 comentários:

  1. Olá.
    Continuamos acompanhando a história.
    Abç,
    Adh2bs

    ResponderExcluir
  2. Continuo acompanhando e aguardando os próximos capítulos ansiosamente!!
    beeijos

    ResponderExcluir
  3. Bia,já sabe onde publicar?Sua história tem conteudo de qualidade.Por que não visita o site clube dos autores?Lá vc mesma publica seu livro e,depois traz ao nosso blog para divulgar.Estou gostando muito da história!Bjs,

    ResponderExcluir
  4. Oi Bia, obrigada por vc estar lendo meu romance, adorei!
    Vc pode me ensinar como que coloco igual ao seu, com os capítulos ao lado?
    Gostei muito do estilo do seu blog, o meu está meio sem graça, rsss!
    Vou ler o seu, depois comento!
    Bjão pra vc amiga
    Gena

    ResponderExcluir

Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco