segunda-feira

CAPÍTULO V

"É Preciso Ver os Anjos"






Outubro de 1989.


Sara almoçava com Claudine no magnífico apartamento de cobertura.

- Conseguiram o refinanciamento da dívida do apartamento no agente financeiro? – perguntou Claudine.
- Conseguimos – respondeu Sara saboreando um delicioso bacalhau gratinado – Só de pensar que temos quase vinte anos pela frente para quitá-lo chega a me dar vertigens.
- Porque nunca aceitou nossa ajuda? – perguntou Claudine – Sabe como o Alberto é nessas questões de dinheiro, mas teria o maior prazer em ajudá-los...
- De jeito nenhum! – cortou-a – Eu sou exatamente como o ele. Quero encontrar sozinha o caminho... ainda que demore.

Sara tencionava mudar de assunto.

- O Alberto não vem para o almoço?
- Receio que não, está atolado de trabalho. Depois que começou a advogar para os Burdons, não se lembra nem mais do meu nome!
- Quem são os Burdons?
- Uma família de desequilibrados... Desequilibrados e milionários! – exclamou Claudine – Alberto me conta histórias de arrepiar desde que começou a freqüentar a casa.
- Que histórias? – perguntou Sara, ao acaso.
- Para começar, tem o Dr. Rômulo Burdon, esquisitíssimo. A mulher dele, uma povoa deslumbrada que vive à toa, ou organizando festas a semana inteira. Recebe um bando de socialites desocupadas e vazias... Palavras do Alberto.
- Quem me dera! – exclamou Sara.
- ... E a filha adolescente do casal, então? Viciada em drogas, vive dando escândalos... E tem uma velha lá que ninguém nunca viu; Alberto só ouviu falar dela pelos empregados. Disseram que não conseguem contratar uma dama de companhia para a ela mesmo oferecendo uma fábula como salário!
- Não conseguem contratar ninguém mesmo pagando um salário alto, foi assim mesmo que ele disse? – perguntou Sara, agora, com genuíno interesse.
- Foi.
- Devem ser muito exigentes, suponho – concluiu Sara.
- Nada!... É que ninguém quer cuidar da velha mesmo. Só esse ano já contrataram mais de meia dúzia de moças e não permaneceram no emprego nem por um mês... Desapareceram e não voltaram nem para receber o salário.

Sara descansou os talheres sobre o prato, levantou-se e caminhou alguns passos pensativa.

- O que foi? – perguntou Claudine.

Sara voltou-se para olhá-la.

- Acha que eu tenho alguma chance? – perguntou.
- Do que está falando, criatura? Não está pensando em...
- E porque não?... Estou mesmo querendo trabalhar fora. Ando cansada de vender roupas, cosméticos e sei lá mais o quê... E se o salário é bom, não vejo nenhum motivo para não tentar.
- Mas essa velha deve ser uma bruxa nariguda pronta para te cozinhar num caldeirão borbulhante!!
- Ora, não seja dramática, Claudine!... Além do mais, eu não tenho medo de cara feia.
- E o Leo?... Acha que ele vai deixar você limpar cocô de uma velha, ainda que milionária?
- Eu não vou dizer nada a ele... pelo menos até eu conseguir o emprego.

Claudine fitava-a boquiaberta.

- Vamos lá, Claudine, não fique aí parada! Dê-me logo o endereço que eu vou lá amanhã mesmo.

A mansão dos Burdons ficava numa propriedade de aproximados vinte mil metros quadrados, num bairro elegante da cidade. Sara saltou do taxi pontualmente às oito horas da manhã do dia seguinte. Deu uma última olhada no taier azul-turquesa que estava vestindo para certificar-se de que estava impecável. Aproximou-se do portão e acionou o interfone.

- “Pois não?” – perguntou a voz masculina do outro lado.
- É sobre a vaga de dama de companhia... Vim candidatar-me – informou ela.

Houve um instante de silencio.

- Espere um momento, por favor.

Alguns minutos depois, os pesados portões de ferro abriram-se automaticamente. Um velho vestindo um terno escuro surgiu do lado de dentro. Aparentava ter uns setenta e poucos anos, tinha os cabelos totalmente grisalhos, o rosto afilado e olhos profundos atras de grossas lentes ligeiramente esverdeadas.

- Bom dia. Sou Feliciano, o motorista – apresentou-se ele.
- Muito prazer – disse ela estendendo-lhe a mão – Eu sou Sara Romanelli.

O homem esticou o pescoço e deu uma olhada para o lado de fora:

- Não veio ninguém da agência acompanhando-a? – perguntou.
- Oh, não, não vim através de nenhuma agência. Soube da vaga pela esposa do Dr. Alberto Souza Mello que é muito minha amiga.
- Não poderia ter melhores referencias – declarou ele com um sorriso animador – Dr. Alberto é uma excelente pessoa.
- Eu concordo plenamente com o senhor – disse ela.

Feliciano deu uma olhada para os sapatos de salto alto que Sara usava:

- Devia ter trazido o carro – disse ele em tom de desculpas – É uma longa caminhada até a casa.
- Não tem importância – afirmou ela correndo os olhos pela propriedade – Esse lugar me parece tão agradável que só me dará prazer seguir caminhando.

Não era só agradável, era exuberante! Eles seguiram pela alameda que levava à mansão, e a cada passo, novas imagens surgiam diante de seus olhos. A construção ficava no ponto mais alto e à direita do terreno. Construída em formato de “U”, possuía dois pavimentos em estilo clássico romano. Gigantescas colunas sustentavam o pavimento superior, formando amplas varandas em quase toda sua volta. A imensa piscina retangular e as demais dependências de lazer estavam localizadas ao centro do “U”. Do telhado, sobressaia-se o que parecia ser um sótão com mansardas voltadas para a piscina. A garagem e as dependências dos empregados ficavam à direita da construção principal, num pavilhão à parte; um corredor coberto ligava-o à entrada de serviços. Tudo isso rodeado de belos jardins e gramados verdejantes. Ao fundo e a esquerda da propriedade, havia um bosque de pinheiros; bancos de ferro fundido pintados de branco estavam espalhados estrategicamente, como se os moradores dali apreciassem sentarem-se à sombra das árvores.

Sara parou por um momento para olhar o bosque, Feliciano notou o fascínio em seus olhos:

- Quando o Dr. Burdon adquiriu esse terreno, já existiam esses pinheiros e resolveu mantê-los ali exatamente como estão até hoje. Era o seu lugar preferido.
- É sem dúvida um lugar adorável – disse Sara.

Eles entraram pela entrada de serviços e seguiram até a sala de estar.

- Pode aguardar por um momento? – pediu Feliciano gentilmente – Por sorte Dr. Rômulo ainda não saiu para o trabalho, vou ver se pode lhe receber agora.
- Obrigada.

Ele desapareceu por uma porta e segundos depois estava de volta:

- Ele está ao telefone, mas irá recebê-la em poucos minutos. Sente-se e fique à vontade. Aceita um café?
- Já tomei o meu café, obrigada.
- Neste caso, vou voltar aos meus afazeres. com licença.

Ele refez o caminho de volta e Sara se viu sozinha na imensidão daquele ambiente. Todo seu apartamento caberia dentro daquela sala e ainda sobraria espaço; não pode evitar a comparação. Uma empregada vestida num impecável uniforme cor-de-rosa passou de longe com uma bandeja que parecia ser o café da manhã de alguém. Seguiu escada acima e Sara ficou a ouvir o eco dos seus passos cada vez menos sonoros.

Os minutos iam passando e ela começou a sentir-se mais relaxada, podia observar mais atentamente a sua volta. Deslumbrada seria o termo correto para definir como se sentia diante de tanta beleza. A sala se achava repleta de objetos de arte. Um acervo de quadros, que ela sabia pertencerem a grandes mestres da pintura contemporânea compunha a decoração, enriquecendo ainda mais o ambiente.

Ela aproximou-se de um quadro afim de observá-lo de perto. Tratava-se da figura de uma negra em primeiro plano; ao fundo, uma paisagem seca e árida de chão rachado unia-se ao céu azul e límpido. A postura da negra era de quem acabara de olhar para traz, para o que havia deixado: no rosto, uma expressão melancólica, e num olho, uma lágrima solitária. Ela estudava cada detalhe minuciosamente e ao mesmo tempo, tentava decifrar a mensagem contida do autor. É só uma mulher enterrando o passado para sempre, como eu fiz um dia – pensou ela. Aproximou-se ainda mais para verificar a assinatura: Cândido Portinari.

- Desculpe fazê-la esperar, Sra. Romanelli – disse uma voz forte atras de si.

Ela voltou-se um tanto assustada.

- Perdoe-me não quis assustá-la.
- Eu é que peço desculpas... Estava distraída.
- Aprecia as artes?
- Sim, aprecio muito... E o Senhor também pelo que posso ver – acrescentou.
- Não, nunca fui muito voltado para isso. Meu pai era um grande admirador das obras de arte. Era capaz de mover céus e terras para adquirir uma – disse ele com o olhar fixo no quadro.
- Posso avaliar quão sensível era ele... O Senhor deve ser o Dr. Rômulo, não é mesmo?
- Sim, vamos até o meu escritório, por favor.

Dr. Rômulo possuía um rosto másculo, de traços marcantes e angulosos, mas ao mesmo tempo, harmoniosos. A pele com um bronzeado aveludado, e os cabelos dum castanho tão claro, que mais um tom acima, seria tomado por loiro. Era alto, de porte elegante e ela pensou que ele poderia brilhar em qualquer tela de cinema do mundo.

Sara teve a nítida impressão de que já o conhecia. Era como se ele lembrasse-lhe alguém, mas não conseguia saber ao certo. Talvez tivesse visto seu rosto nos jornais ou em alguma revista, por isso lhe parecia tão familiar.

O escritório era decorado com simplicidade, entretanto, charme e equilíbrio pareciam dialogar-se. Ele indicou uma cadeira à ela e ocupou a sua, atrás da escrivaninha. Ia dar início a uma conversa que ele já trazia de cor e salteado, e pensou como aquilo tudo tinha se tornado tão cansativo.

- Bem, Sra. Romanelli, acho que devo ir direto ao assunto. Necessito de uma pessoa para ficar com minha mãe no período diurno, uma vez que nesse período os empregados estão ocupados demais para essa função. Não será necessário dormir no emprego, ela habitualmente dorme a noite toda sem problemas, se certas medidas forem tomadas.
- Ainda bem – disse ela aliviada – Do contrário, não poderia ficar com o emprego. Sou casada e tenho duas filhas. Meu marido não concordaria...
- É enfermeira, Sra. Romanelli?
- Não, mas... Quando era jovem eu auxiliava minha tia a...
- Ótimo! – disse ele – As enfermeiras são técnicas demais e não daria certo.

Sara sentiu-se novamente aliviada.

- ... Vou poupar tempo por mim e pela senhora – continuou ele – Depois de ouvir tudo, se resolver não ficar, eu vou entender. Minha mãe vive presa a uma cadeira de rodas desde que... desde que aconteceu a paralisia. Vinha sendo cuidada por uma parenta que morava conosco. Com sua morte, no ano passado, venho tendo dificuldades em contratar alguém que se ajuste perfeitamente à função – ele fez uma pausa antes de continuar – ... Minha mãe é uma pessoa difícil, Sra. Romanelli... Não suporta ser tocada por ninguém; quando conhecer seus aposentos, entenderá do que estou falando. Tudo foi adaptado para que possa fazer sozinha, o maior número de coisas possíveis.
- Que tipo de coisas? – perguntou ela.
- Tomar banho, trocar-se, ir ao banheiro, deitar e levantar-se da cama, enfim, tudo ela faz sem a ajuda de ninguém.

Sara estava confusa, necessitava de maiores esclarecimentos.

- Não quero que pense que não estou interessada na vaga, mas ainda não entendi o que exatamente terei de fazer.
- Quero que observe atentamente todos os seus movimentos. Terá que vigiá-la o tempo todo. Cumprirá um horário das oito às vinte horas, com intervalo de uma hora para o almoço. Sheila, a copeira, ficará com ela nesse período. Só poderá deixar o trabalho depois que ela estiver acomodada em sua cama, e a cadeira de rodas retirada e trancada no quarto o lado. Deverá recolocá-la no dia seguinte. Se por algum motivo tiver de deixar o aposento, deverá trancar a porta e levar a chave consigo. Deverá avisar com um dia de antecedência, caso precise faltar, para que alguém a substitua. Terá os finais de semana livres, entretanto, tem de estar preparada para uma eventual emergência. Quando Sheila levar as refeições, deverá aguardar vinte minutos, não mais do que isso, para que ela coma e depois conferir os talheres, colocar a bandeja do lado de fora e voltar a trancar a porta. Deve lembrar-se de duas coisas vitais: Vigiá-la o tempo todo e manter sempre a porta fechada... Se desejar manter-se no emprego – concluiu ele.

Sara estava horrorizada com a frieza daquelas palavras. Sentia-se chocada demais para dizer qualquer coisa. No que realmente estaria se metendo? As palavras de Claudine lhe vieram à mente: Uma família de desequilibrados... Eu não tenho medo de cara feia – dissera ela à Claudine, no entanto estava apavorada e só pensava em sair correndo dali... Mas o dinheiro... Precisava tanto daquele dinheiro...

- Tem alguma pergunta a fazer, Sra. Romanelli?

Ela agitou ligeiramente a cabeça para concentrar-se na resposta.

- Eu... bem... Estive pensando se tudo isso é realmente necessário...
- Não a subestime Sra. Romanelli. Ela é paralítica, mas é muito esperta. Tentará nos causar problemas na primeira oportunidade. Como é muito independente, todos acabam abrindo a guarda e é exatamente isso que ela espera que aconteça.

“Ela”. Ele parecia falar de qualquer outra pessoa, menos de sua própria mãe, tamanha era a impessoalidade.

- ... Não precisa responder agora, prefiro que avalie com cuidado antes de decidir, mesmo porque, não admitirei falhas e a responsabilizarei se algo sair errado.

Sara levantou-se, deu alguns passos em direção à porta, chegou a tocar a maçaneta e num impulso, voltou-se para ele:

- Concorda com um período de experiência por um mês, sem vínculos empregatícios? – perguntou.
- Eu lhe dou três meses. Quando começa?
- Amanhã.

À noite, enquanto lavava a louça do jantar, contou ao Leo sobre o emprego, mas omitiu certos detalhes. Ele protestou terminantemente:

- Empregada doméstica de grã-fino?... Não posso concordar com isso!
- Não vou ser empregada doméstica, e ainda que fosse, por acaso seria um trabalho menos digno do que outro qualquer?
- Não!... Claro que não! Eu não quis dizer isso... Só que você é minha mulher e...
- Sou sua mulher, mas não é capaz de perceber como me sinto – retrucou ela – ... Olha para mim, Leo!... Estou ficando velha... Sinto que estou murchando a cada dia...

Sara enxugou as mãos no avental, acendeu um cigarro e puxou a fumaça com força. Não tencionava discutir com ele, só queria fazê-lo entender. Quando voltou a falar, buscou brandura na voz:

- ...Quando decidi trabalhar fora, achei que estava fazendo pelas meninas; queria ter a certeza que elas concluiriam a Universidade... Mas agora eu sei que não é só por elas... É por mim também. Desejo a segurança que só um salário pode me dar. Quero poder fazer planos e provar a mim mesma que sou capaz... Pode entender isso?

Ele fitava-a com certa angústia no olhar.

- Nunca a incentivei a trabalhar fora porque conheço o seu passado, sei o quanto sofreu desde menina... Tencionava lhe dar tudo que merece e vou conseguir. Ainda não me sinto um fracassado.

O significado daquelas palavras surtiu nela um misto de ternura a impaciência:

- Não é culpado pelo meu passado, Leo, e não tem que compensar-me por nada! – disse ela duramente – Tem que fazer as coisas por você mesmo, aprimorar-se, tornar-se reconhecido pelo seu trabalho. Mas tem que dar um passo de cada vez.

Ela fez uma pausa para recuperar o controle:

- ... Sei que tudo que faz é por mim e pelas meninas, mas nessa sua ânsia de nos proporcionar uma vida melhor, sempre acaba metendo os pés pelas mãos... Por pouco não perdemos nosso apartamento... Essas coisas não podem mais acontecer conosco...

Ela parou de falar. Talvez doesse mais nela em dizer aquelas palavras do que nele em ouvi-las. Vinha evitando ser tão direta há anos, mas chegara o momento, não tinha como evitar. Só desejou que ele dissesse alguma coisa, aquele silêncio estava consumindo-a.

- Não vai dizer nada? – perguntou ela por fim.
- O que quer que eu diga?... Que sei como se sente? Que sinto muito?
- Não. Quero que diga que ainda me ama e que vai apoiar-me no meu novo emprego.
- Sabe que eu a amo... E quanto ao meu apoio, vai tê-lo. Só acho que poderia ter escolhido outra profissão qualquer...
- Ora, Leo, eu não possuo nenhuma qualificação, e além do mais, vou ganhar o dobro do que ganharia atrás da escrivaninha de um escritório qualquer!

Ele olhou-a demoradamente.

- Acho que estou com ciúmes da velha.
- Prometo não mimá-la tanto quanto a você... Eu juro.

Leo acariciou-lhe levemente o rosto com o dorso da mão:

- Sobre o que disse de estar ficando velha, ainda é a garota mais atraente que eu conheço.
- Vai ter que me provar isso.

Naquela noite, eles fizeram amor como da primeira vez e pela manhã, Sara sentia-se leve e bem disposta. Tomaram o café da manhã, despediram-se das gêmeas e desceram juntos pelo elevador. Leo levou-a ao ponto de ônibus e beijaram-se calorosamente na despedida.

Na mansão, Feliciano esperava por Sara:

- Dr. Rômulo pediu-me que mostrasse a casa para a senhora – informou ele – Deve conhecer certos aposentos.
- Perfeitamente.

Feliciano levou-a por todos os aposentos do pavimento térreo. Quando passavam pela área da piscina, Sara olhou para o sótão, para as grossas grades de ferro na janela. Foi então que ela teve a nítida impressão que alguém os observava atrás das cortinas:

- O que há lá em cima, Feliciano?
- É o quarto de D. Emília.
- D. Emília. – repetiu ela – Sabe que é a primeira vez que eu ouço o nome dela?

Como ele não respondeu, ela arriscou outra pergunta:

- Por que todas aquelas grades na janela?
- Não queira saber tudo de uma vez, Dona Sara.

Ele fugira da resposta e ela sentiu-se desconfortável, pois isso a fazia parecer uma bisbilhoteira e não era verdade. Tinha que conhecer os fatos se haveria de cuidar de D. Emília.

- Quando vou conhecê-la? – quis saber Sara.
- Logo. Sheila está preparando-a.

O que exatamente ele queria dizer com “preparando-a”?

Eles entraram pela entrada de serviços e atravessaram a área social no interior da mansão. Tomaram as escadarias que levava ao pavimento superior, Feliciano descrevia-lhe cada cômodo. Ao passarem por uma porta fechada, ele explicou:

- Aqui é o quarto que o Dr. Burdon ocupava. Ninguém entra aqui, a não ser o Dr. Rômulo que possui as chaves.
- E quem cuida da limpeza?
- Ninguém cuida da limpeza.
- Entendo...
- E aquele – continuou ele apontado para outra porta no extremo oposto do corredor – Era o quarto de D. Emília. Ninguém também entra lá, e Sheila é quem cuida da limpeza – adiantou-se ele, e Sara sentiu-se corar.

Em seguida, pegaram mais um lance de escada que levava ao sótão e Sara parou por um momento:

- A casa não está adaptada para uma cadeira de rodas? Não vejo nenhuma rampa ou elevador... Como ela faz para...
- D. Emília nunca sai do sótão – informou ele.
- Como assim? – exclamou ela mais indignada do que desejou – Não posso compreender que...
- Não tire conclusões precipitadas, D. Sara. Foi sua escolha viver lá em cima e aqui ninguém ousa contrariá-la.

As palavras dele eram duras e pareciam mais um aviso. Sara fez silenciosamente o resto do trajeto. Ao chegarem à porta ele tomou uma chave, destrancou e abriu-a. Sheila se retirou no mesmo instante em que eles entraram. Sara deu uma rápida olhada pelo apartamento. Quando conhecer seus aposentos entenderá do que estou falando.

A cama era bastante baixa, assim como os armários. Havia corrimões de metal chumbados por toda a extensão das paredes, na mesma altura dos armários. No banheiro, tudo parecia ainda mais estranho. A começar pelo fato de que não havia nenhuma porta que o isolasse do dormitório; o vaso sanitário e o bidê tinham os formatos anatômicos, como poltronas vazadas. Uma cadeira estava dentro do Box de banho fixada no chão com parafusos, e o chuveiro localizava-se logo acima. Tudo ali era num nível mais baixo: o espelho, o lavatório, o toalheiro, os registros, etc. Não havia nenhum adorno; nem rádio, nem televisor, nada. Só um aparelho de ar condicionado embutido na parede.

D. Emília estava lá sentada em sua cadeira de costas para eles; parecia olhar pela janela. Não fez nenhum movimento, tão pouco se virou para olhá-los; agia como se não estivessem ali. Feliciano falava tecnicamente, explicando a Sara os últimos detalhes:

- Esse botão perto da porta é uma campainha que soa simultaneamente na garagem e na cozinha. Deverá acioná-lo se necessitar de minha presença ou a de Sheila – concluía ele.
- E aquele outro? – perguntou Sara, referindo-se a outro botão perto da cama.
- É outra campainha que soa nos aposentos de Sheila. D. Emília aciona-o quando precisa que Sheila traga a cadeira para ir ao banheiro durante a madrugada.
- Ah...
- Bem, acho que é só – disse Feliciano – Devo voltar aos meus afazeres... Boa sorte, D. Sara.

Vou precisar.

Ele saiu e Sara se viu sozinha com D. Emília. Colocou sua bolsa em cima de um móvel e foi se aproximando devagar:

- Meu nome é Sara Romanelli... Eu vou ciud... vou lhe fazer companhia.
- ...

Ela aproximou-se mais um pouco, já dava para ver parcialmente o seu rosto. Não se tratava da mulher fragilizada, depressiva que ela imaginara. Havia qualquer coisa nela que Sara não conseguia definir ao certo. Uma altivez, certo orgulho no olhar quase arrogante.

Os cabelos prateados preso num coque na altura da nuca lhe conferiam um ar severo, duro. Sara deduziu que ela deveria ter mais de setenta anos, entretanto, não aparentava tão velha assim. Via-se logo que fora uma mulher belíssima em sua juventude.

Ela ia tentar mais uma apresentação:

- Eu sou a pessoa que seu filho contratou para...
- Eu sei quem você é! – cortou-a secamente, e ao mesmo tempo fez uma manobra rápida com a cadeira, podo-se totalmente de costas para ela.
- Se teremos de passar a maior parte do tempo juntas – insistiu Sara – não seria melhor que procurássemos nos entender?
- ...
- Pensei que poderíamos conversar... Quem sabe, nos conhecermos melhor...
- Você quer, por favor, calar essa boca! – gritou a velha.
- Não pode fingir que não me vê! – gritou Sara, mais alto ainda – Eu estou aqui!
- Não! Você não esta!

Então é isso – pensou ela – Quer jogar duro comigo!... Pois bem, eu estou no jogo!

Sara permaneceu calada até o momento em que Sheila destrancou a porta e entrou com o almoço de D. Emília.

- Pode deixar, Sheila – disse, tomando a bandeja – Eu sirvo D. Emília.

A moça arregalou os olhos e permanecia imóvel.

- Pode ir agora – ordenou Sara – Volte depois para buscar a bandeja do lado de fora.

Sara colocou a bandeja sobre a pequena mesa que estava num dos cantos do quarto. Depois, foi até ela, e de surpresa, pegou a cadeira e empurrou-a até a mesa:

- Vou ajudá-la com o almoço...

Não teve tempo de dizer mais nada: num golpe rápido, D. Emília atirou a bandeja ao longe. Houve um tilintar de louças se quebrando.

Sara não disse nada. Foi até a campainha e acionou-a. Segundos depois Sheila e Feliciano entravam no quarto, afoitos. Sara estava sentada, parecia tranquila.

- Por favor, Sheila, limpe tudo isso – pediu ela calmamente.

A moça recolheu tudo do chão e disse ao sair:

- Vou buscar outro almoço para D. Emília...
- Não! – ordenou Sara veementemente – D. Emília já teve seu almoço e jogou-o no chão. Não deve estar com apetite.

Sheila e Feliciano entreolharam-se aturdidos como se não acreditassem no que estavam ouvindo.

- ... Eu também não estou com apetite – acrescentou ela – Não vou descer para almoçar. Vocês podem ir agora e obrigada.

À tarde, Sara presenciou a dificuldade com que D. Emília ia ao banheiro, apoiando-se nos corrimões de metal para passar da cadeira à “poltrona-vaso-sanitário”. O momento do banho foi ainda pior; levou horas para apanhar as roupas no armário, despir-se, banhar-se, enxugar-se e vestir-se para dormir. Sara avaliou o quanto seria difícil para ela ficar nua e realizar essas coisas tão pessoais na presença de uma estranha. Afastou-se da entrada do banheiro por um momento na hora do banho, pois notou nela um vestígio de constrangimento. Deverá vigiá-la o tempo todo – lembrou-se Sara e voltou a observá-la, sem mesmo saber por quê.

Depois do jantar, ela literalmente se arrastou desajeitadamente para a cama e mal acomodada, como se pôs, adormeceu. Ou pelo menos fingiu adormecer. Sara pensou em tudo que ela fizera sozinha, essas coisas tão corriqueiras que todos fazem automaticamente, sem se darem conta. E a pior parte era que D. Emília não estava sozinha: ela estava lá bem à mão para ajudá-la, e era impedida de fazê-lo. Sentiu uma profunda melancolia ao deixar a casa.

Ao final da primeira semana, Sara sentia-se estressada; passava onze horas dentro daquele quarto, sem fazer absolutamente nada, e sem trocarem uma única palavra. Tinha que pensar num meio de reverter aquele quadro, pois para ela, não se tratava mais de um trabalho puro e simples, tornara-se um desafio.

Na semana seguinte, procurou por Feliciano:

- Tem na casa um televisor que possa me ceder? – perguntou.
- D. Emília não quer um televisor no quarto.
- Não é para ela. É para mim.

Sara entrou no quarto carregando o aparelho e começou a instalá-lo em cima de um móvel. D. Emília nem ao menos se virou para saber do que se tratava toda aquela movimentação atrás de si. Sara aumentou o volume ao máximo e ligou o aparelho. Ela sobressaltou-se na cadeira com o susto.

Durante toda a manhã, Sara falou com o aparelho, fazia comentários sobre a programação.

“Mais um seqüestro tem um final feliz no Rio de Janeiro”... – dizia o locutor do noticiário – “ ... A família da vítima não quis revelar o valor do resgate”

- Final feliz pra quem?... Para o sequestrado ou para o sequestrador? – perguntou Sara em voz alta – Esses noticiários estão parecendo programas humorísticos...
- Se quiser mesmo ver essa coisa, poderia fazê-lo num tom mais baixo – resmungou D. Emília irritadiça – E limite-se a isso! – acrescentou.

Sara esboçou um sorrisinho de satisfação. Estava surtindo efeito, afinal.

- A senhora não fala comigo – choramingou ela – Não estou habituada a ficar tanto tempo sem o som das palavras...
- Pois eu me sinto perfeitamente bem com o meu silêncio!

Sara ia dizer-lhe mais alguma coisa, mas decidiu calar-se. Chega por hoje. Ia dar-lhe doses homeopáticas, pois sabia que toda aquela rebeldia só tinha um propósito: fazê-la desistir como as outras. Entraria no jogo dela, mas até certo ponto.

Abaixou o som do aparelho e ficou calada o resto do dia planejando qual seria o próximo passo. Decidiu que procuraria novamente por Feliciano, tentaria arrancar dele mais informações a respeito de D. Emília. Tinha que descobrir o que a fez desistir da vida daquela maneira, se quisesse ajudá-la.

Ao passar pelos fundos da sala de estar, naquele final de expediente, Sara pôde ver a agitação da festa que Marilin, esposa de Dr. Rômulo, dava à seus convidados por ocasião da sua chegada dos Estados Unidos. Pessoas exuberantemente trajadas, comiam, bebiam, riam alto ao som de uma música estridente. Casais dançavam, outros se beijavam pelos cantos da sala; Marilin com uma taça de champanhe na mão, dizia à um grupo de quatro pessoas:

- Sinto que Miami é o meu lugar... Pretendo fixar residência lá, assim que os negócios de meu marido permitirem...

Ela passou rapidamente para não ser vista, e em poucos segundos, estava na área de serviços falando com Feliciano:


- Achei que podíamos dar um passeio pelo jardim para conversarmos um pouco... Está uma noite tão agradável...
- O que quer saber? – perguntou ele, surpreendendo-a.
- Bem... nada que vá lhe comprometer, eu posso lhe garantir.

Ela começou a caminhar em direção a parte posterior ao jardim principal da mansão. Ele seguiu-a. Seria direta, porém cuidadosa:

- Porque todos esses cuidados estranhos com D. Emília, quero dizer, porque devo vigiá-la o tempo todo?
- Ela tentou o suicídio por diversas vezes, nas formas mais inusitadas – revelou Feliciano.
- E porque não a ingressaram num tratamento psiquiátrico?
- Dr. Rômulo até tentou por algumas vezes. Como ela se recusa a sair do sótão, o médico vinha vê-la uma vez por semana.
- E porque não deu certo?
- Como não houve progresso no tratamento, ele foi deixando de vir e desapareceu... Mas ainda me lembro do que disse ao Dr. Rômulo. Disse que não encontrou vestígio de desequilíbrio psicológico como loucura ou esquizofrenia. Ela parecia ter entrado num processo de autodestruição deliberadamente ao qual se recusava a sair.
- Seria por causa da paralisia? – cogitou Sara – Há quanto tempo está paralítica?
- Quinze anos.
- E há quanto tempo não sai do sótão?
- Os mesmos quinze anos.
- Santo Deus! – exclamou ela pasmada – Tudo bem que ela se recusa a sair, mas deviam ter encontrado um meio de...
- Tentamos de tudo – disse ele – Mas sua vontade prevalece sempre, não importa o que façamos.
- Tão debilitada e tão poderosa...
- Mais poderosa do que a senhora possa imaginar – acrescentou Feliciano.
- Diga-me uma coisa, Feliciano, o que os médicos disseram quanto à paralisia?
- Outro mistério. Os médicos não chegaram á nenhuma conclusão.
- Como foi que ela ficou paralítica?
- Está ficando tarde, D. Sara – disse ele de repente – Tenho que voltar. D. Marilin está dando uma festa, podem estar precisando de mim.
- Tem razão, já tomei muito do seu tempo, desculpe-me... Também tenho que ir para casa, estou muito cansada... Obrigada por tudo.

Nos dias que se seguiram, Sara adquiriu outras táticas. Havia um banheiro para ela ao lado do apartamento, mas passou a usar o de D. Emília. Um dia quando chegou pela manhã, disse casualmente:

- Acordei tão atrasada hoje, que não tive tempo nem de tomar um banho... Se a senhora não se importa, vou tomar aqui mesmo no seu banheiro.

Dizendo isso, começou a se despir com tamanha desenvoltura, que ganhou um olhar espantado de D. Emília. Era a primeira vez que ela olhava-a.

Logo depois, Feliciano bateu à porta; estava acompanhado de um velho muito magro e meio encurvado. Trazia uma pasta preta nas mãos.

- D. Sara – disse Feliciano – Esse é o Dr. Salgado, ele tem assuntos urgentes a tratar com D. Emília. Poderia deixá-los às sós, por favor?

Sara mostrou-se hesitante, parecia relutar em deixar os aposentos.

- Está tudo bem – tranquilizou-a, Feliciano – Dr. Salgado acionará a campainha quando terminar.

Ela deixou o sótão e se dirigiu para a copa; serviu-se de um copo de água gelada e sentou-se à mesa. Sheila estava limpando os fiapos de algumas vagens:

- Vou ter que preparar o almoço sozinha – reclamou Sheila – A cozinheira deu cano novamente, está com o marido doente.
- Eu vou ajudá-la – disse Sara, levantando-se – Não tenho mesmo nada para fazer agora.
- O Dr. Salgado está lá em cima, não está? – perguntou Sheila.
- Está. Quem é ele, Sheila?
- É o procurador de D. Emília. É ele quem cuida de todos os negócios das tecelagens pra ela.
- D. Emília ainda se interessa pelos negócios? – indagou Sara admirada.
- Se interessa??... Que ninguém me ouça, mas ela ainda é a manda-chuva de todos! – enfatizou.
- Está me dizendo que ela é a presidente das empresas?
- Se ela é a presidente, eu não sei, só sei que outro dia eu ouvi a D. Marilin dizer ao Dr. Rômulo: “Logo vamos precisar da assinatura da velha até para fazer sexo!” – disse Sheila simulando uma imitação de Marilin.
- E esse Dr. Salgado, ele vem muito aqui?
- Às vezes. Ficam lá em cima trancados fazendo não sei o que.
- Então com ele ela fala? – perguntou Sara com certa ironia.
- E como fala!... Ficam lá por horas à fio!

Uns gritos na sala chamaram a atenção de Sara:

- Que gritaria é essa?
- Deve ser a Dora que está chegando da rua depois da noitada – informou Sheila.
- À essa hora!... Mas ela ainda é uma menina!
- Caiu de novo no vício. Parece feitiço, ela se cura, e volta, se cura, e volta...
- E eu que pensava que tinha todos os problemas do mundo, quando na verdade, eu possuo todas as bênçãos que nenhum dinheiro pode comprar.
- Do que você está falando, Sara?
- De outras formas de riqueza.

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Naquela noite, Sara abençoou mil vezes a família que tinha. Eram tão felizes e se amavam tanto, que todas e quaisquer dificuldades que tivessem que enfrentar, perderia a intensidade quando eles se uniam em busca de soluções. Essa era a única forma de vida que eles conheciam.

Depois do jantar, Sara ligou para Agnes, desejava contar-lhe sobre seu trabalho e tantas outras coisas. Depois que fora instalado o aparelho telefônico no convento, ela não mais lhe escrevia cartas. Falavam-se numa média de duas a três vezes ao ano; era mesmo uma pena que as freiras só tinham permissão para falarem por dez minutos com seus familiares.

Leo notou o ar melancólico dela ao desligar:

- Devia ficar contente ao falar com ela, mas parece triste – observou ele.
- É que ela me pareceu... Inquietante. A voz estava trêmula.
- Pode estar doente – cogitou Leo.
- Não está, perguntei-lhe sobre isso. Não mentiria para mim.
- Quer ir até lá?
- Não Leo, ainda não é o momento. Tem o meu trabalho, e depois temos que quitar o apartamento... Quem sabe no ano que vem – finalizou ela.
- Outro dia, li qualquer coisa no jornal sobre exportação de jeans na sua cidade... Não tem interesse em saber?
- Nem um pouco. Tia Agnes ainda continua sendo a única coisa que me interessa naquele lugar.
- Por isso mesmo deveria ir visitá-la pelo menos uma vez. Ela adoraria conhecer as gêmeas... e a mim também, é claro, você não acha?
- Acho que é muito convencido.


3 comentários:

  1. Bia,fiquei encantada,e pode acreditar,pois sou uma roedora de livros.Continue,já estou na espera para ler mais.Parabéns! Um grande abraço!

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  2. Oi Bia!
    Pressinto que o desenlace não tarda, e que Sara e D. Emília terão (tem) algum elo... Vamos ver!
    Bjão,
    Adh

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  3. Olá Bia! Acho que o próximo capítulo tem muito a revelar!

    Bjusss.

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco