quinta-feira

CAPÍTULO VI

"É Preciso Ver os Anjos"


Um ano havia passado desde que desembarcaram em Redentor das Pedras. Sara melhorara e até tinha engordado um pouco, parecia a mesma menina saudável que sempre fora. Seus dias, agora eram mais interessantes. Agnes passou a levá-la em seus compromissos filantrópicos; ajudava a tia a cuidar dos doentes, alimentar as crianças e os velhos. Ela realmente estava adorando aquilo; Agnes, por sua vez, tinha descoberto um novo talento na sobrinha. Sara revelou-se uma auxiliar perfeccionista e incansável que nunca deixava uma tarefa por terminar. Elas percorriam todas as casas em busca dos necessitados:

- Ainda não acabamos, tia Agnes. Falta trocar o curativo daquele velhinho do final da rua.
- Mas temos que ir agora, tenho um compromisso no convento. Trocaremos o curativo amanhã...
- De jeito nenhum! Pode ir que eu vou depois.
- Já está escurecendo. Não posso deixá-la sozinha...
- Então, espere, oras!

Num final de tarde, Agnes e Sara tinham acabado de chegar de suas andanças. Ingrid fizera chá de erva-doce com bolo de fubá para aguardá-las. Sara apanhou um pedaço de bolo e saiu para o quintal, Ingrid aproveitou para falar com a irmã:

- Agnes, tive uma idéia.
- Gosto das suas idéias.
- Eu poderia alfabetizar as crianças daqui. Já que não tenho como ganhar dinheiro, poderia ocupar o meu tempo com uma coisa útil, o que acha?
- Você acha que consegue? – Perguntou Agnes entre um gole e outro, de chá – Fala bem o português, mas alfabetizar implica em conhecer bem a gramática.
- Eu sei disso, mas posso utilizar os livros de Sara. Não tive sucesso com ela que já está alfabetizada e era a primeira da classe. Na verdade, ela sabe mais do que eu, mas essas crianças... Elas não sabem nada!
- Tem razão. E Sara poderá lhe ajudar – sugeriu Agnes.
- Eu pensei nisso – admitiu Ingrid – No entanto, mudei de idéia. Ela é só uma criança para tamanha responsabilidade.
- Estou certa que ela adoraria colaborar. Considere isso.
- Vou considerar – afirmou Ingrid – Estou feliz em saber que posso contar com seu apoio.
- Quando pretende começar?
- Imediatamente.
- Mas onde fará isso? Aqui não tem espaço. – outro gole de chá.
- No seu posto de saúde.

Agnes começou a tossir. Havia engasgado com o chá.

- Não pode estar falando sério! – exclamou aos tropeços – As paredes ainda não estão prontas, nem há como cobri-lo!... Como fará nos dias de chuva?
- Não te contei? – perguntou Ingrid com um ar maroto – Nós vamos terminar uma parte e cobri-la!
- O que quer dizer com “nos”?
- Quero dizer: “eu e você”.
- Não sabemos assentar tijolos, nem fazer telhado – afirmou Agnes
- Não deve ser tão difícil assentar tijolos... E para o telhado, não usaremos telhas, vamos cobri-lo com sapé; tem muito aqui pela região. Vamos colhê-los e colocar para secar. Faremos a estrutura do telhado com troncos finos de eucalipto e depois amarraremos o sapé seco em feches... Não te parece fácil?
- Sim, Claro, é facílimo! – ironizou ela.
- Agnes, eu estou falando sério!
- Eu também.
- Por favor, Agnes!... Como vamos saber se dará certo ou não, se não tentarmos?

Agnes suspirou e disse:

- Bem, uma vez que você já decidiu por mim, que mais eu posso dizer?

Ingrid sorriu eufórica.

- Teremos sucesso, eu sei disso... Começaremos com as crianças, e depois, com os adultos... Tem tanta gente analfabeta nesse lugar. Como poderão pensar em mudar de vida, se a grande maioria, se quer, sabe assinar o próprio nome?...

Agnes não pôde deixar de se emocionar com a irmã. Ingrid estava excitada e não parava de falar. Os olhos irradiavam um brilho que Agnes conhecia muito bem: um brilho de esperança.

- ... Se você soubesse a tristeza que sinto ao olhar para esses rostos tão cheios de desesperança... Tão desprovidos de sonhos.
- Sei disso, minha irmã – disse Agnes com voz embargada – Conheço teu coração nobre e isso me enche de orgulho... Além do mais, estou adorando vê-la assim, tão cheia de vida.
- Eu também. Pela primeira vez, desde que cheguei, estou me sentindo viva outra vez.
- Isso me deixa muito feliz – disse Agnes num sorriso – Pelo que tudo indica, faremos grandes coisas por aqui!
- Você cuida do estômago, e eu da mente. Não é uma boa idéia?
- E como é!

O sol morno caminhava em fuga a se esconder atrás das colinas. Do quintal, Sara pode ouvir o doce entoar de risos que vinha da casa. Seu coraçãozinho de menina encheu-se de alegria; sentia-se feliz, afinal.


A sala que serviria de escola ficou pronta. Uma das paredes foi improvisada para o quadro negro; elas confeccionaram bancos e pequenas mesas com madeiras extraídas lá mesmo. O chão era de terra, porém, batido e regularizado. Agnes viajou para São Martinho, e voltou com doações de cadernos, lápis, borrachas e algumas cartilhas. Sara estava radiante com os preparativos, e para Ingrid, essa era a maior recompensa. Mãe e filha foram pessoalmente de casa em casa comunicar o inicio das aulas. Não deixaram de visitar uma casa se quer. A principio, as pessoas lhes pareceram um tanto frias, distantes; outras desconfiadas. Ingrid ficou um pouco desapontada, com receio de que não desse certo, afinal, alguns na cidade ainda hostilizavam-na: costumavam fechar as portas quando ela passava. Contudo, tratou logo de afastar o pessimismo e ir em frente. Convencia a si mesma que era somente uma questão de tempo. E que em breve, adquiriam confiança nela, e mandariam seus filhos à escola. Pensando assim, tocou os preparativos adiante, e dias depois, tudo estava pronto para a inauguração. Quão grande foi a sua surpresa, quando no primeiro dia de aula, faltou banco e sobraram crianças.

Não demorou muito para que os adultos começassem a formar filas na porta da “escola”: queriam saber quando iriam começar a aprender a ler e escrever. Assim, deu-se inicio também, o curso noturno para adultos.
Sara preparava com entusiasmo as aulas juntamente com a mãe, e tudo corria bem. Porém, com o passar dos dias, ficou claro para Ingrid que teria que ir muito além de ensinar o beabá àquela gente. Seria necessário muito mais, como noções de higiene, primeiros socorros e culinária alternativa. Ela ansiava em ensinar-lhes tudo que sabia; que era pouco, muito pouco na verdade, mas que podia fazer a diferença entre a vida e a morte. Transmitia-lhes informações simples, porém preciosos e vitais de sobrevivência.

Alguma coisa estava tomando novo formato naquele lugar esquecido, entretanto, algo ainda a incomodava: a falta de trabalho, e consequentemente, a falta de dignidade.
Certa manhã, Ingrid estava no quintal dando milho às galinhas, como sempre fazia antes de ir para a escola. Agnes ficara de apanhar Sara para irem visitar uns doentes e estava atrasada. Ingrid sentia pena da irmã; com os preparativos da escola, Agnes quase não tinha tempo para mais nada. Ela sentia-se culpada e responsável por isso. No entanto, essa manhã, torcia para que a irmã chegasse logo, pois tinha algo de sumo importância a discutir com ela.
Agnes chegou em cima da hora dela sair para a aula:

- Estou te achando um pouco abatida – observou Ingrid.
- Só estou atrasada – desconversou – Sara está pronta?
- Está tomando o café.
- Vou apressá-la – disse Agnes.
- Pode voltar mais cedo hoje para conversarmos? – perguntou Ingrid
- Vou tentar – prometeu – Olhando melhor, você também está abatida... O que houve?
- Nada demais. Apenas não dormi à noite – disse Ingrid.
- Você não tem juízo – repreendeu Agnes – Está trabalhando mais de dezesseis horas por dia e ainda passa a noite em claro!
- É que estive pensando... Crio que achei a saída.
- De que saída está falando?
- Trabalho.
- Hum... Nesse caso, vamos falar agora mesmo! – disse Agnes conduzindo a irmã para dentro da casa.
- Agora não dá – recusou Ingrid – O assunto é demorado. Falaremos com calma quando voltar. Te espero para o almoço.

Para o almoço, Ingrid preparou galinha ensopada com legumes e salada de folhas, tudo colhido ali mesmo no seu quintal. O arroz e o feijão eram trazidos por Agnes. De sobremesa, bananada: com bananas que ela colhera às margens do rio.
Ingrid expôs os seus planos tão logo se puseram à mesa. Agnes ouviu-a atentamente sem interrompê-la, parecia interessada. Quando terminou de falar, Ingrid estava ansiosa em saber a opinião da irmã:

- Então, o que acha? – perguntou ela.
- É uma excelente idéia, mas como irá colocá-la em prática?
- Ainda não sei. Mas, vou encontrar uma maneira, isso você pode apostar!
- Não vou apostar – disse Agnes – Você está me saindo melhor do que a encomenda!... Eu costumava ser a mais inteligente quando éramos garotas. O que será que aconteceu?
- Esse tempo já passou. A vida tem me ensinado a ser ousada... E é por isso que eu vou encontrar a solução.
- Não há como fazer isso sem um tostão, Ingrid. Tem que ter um pouco de dinheiro pelo menos – argumentou Agnes – Se ao menos eu pudesse te arranjar algum, mas no momento isto é impossível. Não estou nem conseguindo alimentar toda essa gente... A pequena pensão que recebo da ordem não dá nem para os remédios... Os donativos estão ficando cada vez mais escassos... Se não fosse a comida que temos desviado do...

Agnes parou subitamente de falar! Ela e Sara trocaram olhares de cumplicidade. Ingrid percebeu de imediato:

- O que está havendo? – Perguntou desconfiada.
- Na... nada... Por quê?...
- Vocês estão roubando comida do convento, é isso?

Houve um embaraçoso momento de silencio. Agnes e Sara pararam de mastigar; olhavam-na com olhos estagnados, os lábios afrouxados. Ingrid aguardava uma resposta.

- Não, Ingrid... Eu... eu disse desviando...
- E não é a mesma coisa? – indagou Ingrid com severidade.
- Bem...

Agnes olhou mais uma vez para a sobrinha em busca de socorro. Estava meio aflita, meio envergonhada; gaguejava esperando a palavra certa que não veio. Sara, por sua vez, tentava pensar rápido numa explicação convincente para ajudar a tia. Mas Ingrid não pôde mais segurar a farsa e explodiu numa gargalhada!

- Por Deus!!... Vocês estão roubando comida do convento!!!... Não posso acreditar!... Isto é fantástico!... É... é... genial!...

Ela não pode continuar. Seu corpo todo sacolejava, lágrimas corriam livres pelas suas faces e ela pensou que poderia ter uma convulsão a qualquer momento.

- Foi idéia de Sara – acusou Agnes.
- Mas você concordou – defendeu-se Sara

Ingrid não conseguia se controlar. Ria mais e cada vez mais alto.

- Não sei do que está achando graça – ralhou Agnes – Não é engraçado, é trágico!
- Ora, Agnes... Você já parou para pensar que as freiras fizeram votos de pobreza?... Imagine!... Votos de pobreza num lugar miserável como esse... E vocês estão pretendendo deixa-las pobres de verdade... Não é engraçado?
- E você acha que eu já não pensei nisso? – perguntou Agnes em tom sério.

Ela estava estranha, com a mesma expressão abatida que Ingrid vira em seu rosto pela manhã.

- ... É fácil fazer votos de pobreza, quando se tem a mesa farta... Sabe de uma coisa, Ingrid, eu testemunhei muita fome por essas minhas andanças e aprendi que primeiro precisamos encher o estômago de um faminto, para depois lhe falar de Deus.... Não pense que estou criticando a ordem a qual pertenço, é todo o sistema que não funciona... O político, o religioso, tudo, enfim – concluiu Agnes num suspiro.

Ingrid parara de rir. Não achava mais graça no discurso sôfrego da irmã. Aquelas palavras de desabafo mexeram profundamente com ela:

- Nunca a vi falando dessa maneira... Confesso que estou um pouco assustada – falou consternada – Não pode se sentir culpada... Tem feito tudo que está ao teu alcance.
- Tenho sido repreendida pela Madre Superiora... Não paro mais no convento, nem à missa das seis tenho comparecido – disse Agnes
- Oh! Eu sinto muito, minha irmã... Eu não sabia. Sei que sou a culpada...
- Não diga tolices, Ingrid!... Sabe que não é do meu temperamento ficar trancafiada em quatro paredes e fechar os olhos a tudo o mais que está a minha volta.
- E o que fará, agora?
- Qualquer coisa, menos ceder. Estou sozinha na obra, agora... Não conto com a ajuda de mais ninguém no convento – confessou.

Nem de longe Ingrid imaginava que a irmã estava atravessando momentos tão conflitantes, e desejou muito ajudá-la; só não sabia como:

- Não podem puni-la por estar alimentando e curando essas pessoas... Não seria justo!
- Cada um possui o seu próprio senso de justiça, Ingrid... Mas não vamos ficar lamentado o que ainda não aconteceu. E depois o máximo que pode acontecer, é eu ser exonerada da ordem... E essa é uma possibilidade muito remota, espero.
- A não ser que descubram que estamos roubando comida de lá, não é mesmo, tia Agnes?

Desta vez, as três gargalharam!

- Deus que me perdoe – disse Agnes quase sem fôlego – Mas esse arroz que estamos comendo está em lugar errado...
- Pois eu acho que ele está em lugar certo! – disse Ingrid em lágrimas.
- ... E pensar que a Madre Terezinha me chamou de rebelde, agitadora... e achou que estava me ofendendo...
- Mal sabe ela!...
- ...imaginem só se ela descobrir, que além de tudo isso, sou também ladra!... Posso desmaiar de rir só de imaginar a cara dela...
- Estou pensando na penitência que o Bispo te daria...
- Certamente eu teria de jejuar por um ano inteirinho!...
- Para cobrir o prejuízo.

Agora eram as três que não conseguiam conter o riso.



Naquela noite, no curso noturno para adultos, Ingrid pediu às mulheres que aguardassem na sala após o término da aula:

- Obrigado por terem atendido o meu pedido – disse ela em voz alta – Tenho uma pergunta a fazer-lhes: Quem de vocês gostaria de trabalhar?

Houve um tumultuoso alvoroço; as mulheres gritavam “eu” “eu quero” “eu também”
- Acalmem-se, por favor! – pediu Ingrid – Se não fizerem silêncio, não ouvirão o que tenho a dizer.

O silencio veio imediatamente às palavras de Ingrid. As mulheres olhavam-na atentas e ouvidos aguçados.

- Quero que ergam o braço as mulheres que tiverem máquinas de costura em casa.

Ingrid ficou extremamente surpresa ao constatar que a grande maioria delas estava com os seus braços levantados!

- Ótimo! – exclamou ela – Vou colher o nome e endereço de todas; quando estiver tudo acertado, irei procurá-las.
- Professora... – chamou uma voz ao fundo – Eu não tenho máquina de costura, mas preciso muito trabalhar. Tenho cinco filhos e meu marido adoeceu por causa das minas.
- Eu também. – disse uma senhora idosa – Meu filho que cuidava de mim ficou paralítico por causa das minas.
- Não tem com o que se preocuparem – assegurou-lhes Ingrid – Por enquanto, são somente planos, mas, se derem certo, e eu sei que dará, haverá trabalho para todas. Agora, podem passar pela minha mesa para fornecer-me os seus dados e depois voltem para suas casas. Convocarei outra reunião em breve... Se Deus quiser!


Depois que a última mulher saiu, Ingrid permaneceu ali sentada; as mãos cruzadas sustentavam o queixo. Ela olhava fixamente para a luz incandescente do lampião à gás. Sua mente fervilhava num torvelinho de pensamentos. A reação favorável das mulheres tinha aguçado ainda mais o seu desejo de realização. Seu cérebro era um emaranhado de engrenagens enlouquecidas. Tenho que descobrir um meio... Deve haver uma maneira para eu comprar os tecidos... Se ao menos existisse alguém que eu pudesse pedir um empréstimo... se... se...
O sono e o cansaço estavam dominando-a e seus pensamentos começavam a se embaralhar. Decidiu que deveria ir para casa e descansar. Amanhã voltarei a pensar no assunto.
Levantou-se, empilhou os livros e ajeitou a mesa. Levou a mão até o lampião a fim de apagá-lo. Foi então que um brilho reluzente fez seu coração disparar:

- Como não pensei nisso antes?


Ingrid fechou a escola e saiu pela noite escura a caminho de casa. Estava saltitante como uma criança. Fez e refez mentalmente todos os cálculos, repassou cada item do seu plano. Iria colocá-lo em prática imediatamente, não esperaria nem mais um dia. Já havia esperado tempo demais, e, além do mais, estava pressentindo que um novo horizonte se abria para Redentor das Pedras. Isso aqui ainda vai virar uma grande cidade! – profetizou ela – Mal posso esperar para contar à Agnes!
Passava da meia-noite quando ela chegou a casa.

Às seis horas da manhã do dia seguinte, Ingrid já estava no quintal regando a horta. Ainda teria que preparar o café e fazer uma arrumação na casa antes de ir para escola. Agnes não desceria a colina naquela manhã, e Ingrid pensou que talvez não fosse uma boa idéia ir até o convento para contar-lhe o que andava planejando. Receava causar mais problemas à irmã. Por mais ansiosa que estivesse, tinha quer esperar até à tarde.

Agnes chegou quando Ingrid estava sovando uma bola de massa para pães:

- Como foi lá no convento? – quis saber Ingrid.
- Madre Terezinha escreveu ao Bispo a meu respeito... Agora só resta aguardar.
- E você o que fez?
- Escrevi a ele, também, por vias das dúvidas, oras, bolas!
- Oh! Agnes!... Você é terrível!... – disse Ingrid balançando a cabeça – É tão bem-humorada. É por isso que é minha irmã predileta.
- Eu tinha que me defender de alguma maneira – disse Agnes. Depois, mudou de assunto – Você causou uma verdadeira revolução ontem na escola. Acabei de saber da reunião com as mulheres.
- Tão rápido?
- Além de bem-humorada, sou também bem informada.
- É justamente sobre isto que quero lhe falar – disse Ingrid com os olhos brilhantes – Sei como comprar os tecidos – anunciou.

Ingrid exibia a mão à altura do rosto de Agnes. No dedo anelar, um anel em ouro dezoito quilates com duas grandes esmeraldas em forma de gota, cravejadas de diamantes à sua volta.

- O anel que ganhou de mamãe? – Agnes arregalou os olhos – Está pensando em vender a única lembrança que possui dela?
- Agnes!... Lembrança a gente guarda no coração – argumentou Ingrid – E depois é para uma boa causa, ou não?
- Sim, eu sei, mas está com você há tanto tempo...
- Pois é, e eu nem havia me dado conta disso... Esteve o tempo todo no meu dedo e eu só percebi que podia fazer dinheiro com ele ontem à noite... Você não pode avaliar como eu estava ansiosa para te contar!

Agnes deixou-se contagiar facilmente pelas palavras entusiásticas de Ingrid. Apresentar qualquer argumento nesse momento, a faria sentir-se pequena e mesquinha. A irmã estava disposta a desfazer-se do único objeto de valor, não só monetário, mas de um indiscritível valor sentimental; tudo em prol de um sonho. E o que havia de mais emocionante, era o desejo que ela acalentava de compartilhar desse sonho com outras pessoas.
Agnes tomou uma decisão:

- Bem, nesse caso pode ficar com o meu também – disse ela tirando do dedo, um anel gêmeo ao de Ingrid.
- Oh! Agnes... Nem sei o que dizer... Você é maravilhosa!
- Eu acho que você tem toda razão: É para uma boa causa!

Ingrid apanhou os dois anéis, limpou-os e embrulhou-os num lenço.

- Viajo amanhã mesmo a São Martinho para vendê-los e comprar os tecidos – disse ela radiante.
- Amanhã não será possível, Ingrid... Não tenho nenhum dinheiro para te dar. Essa epidemia de gripe acabou até com os meus últimos tostões. Terá que esperar a liberação da minha pensão na semana que vem...
- Eu já pensei nisso, também – interrompeu Ingrid – Eu vou de carona.
- De carona? Não pode ir de carona, é muito perigoso. Não permitirei que faça isso!
- Não se preocupe tanto, Agnes, eu sei me cuidar e afinal, não é tão longe assim. Eu vou, faço o que tenho que fazer e volto no mesmo dia – insistiu ela.
- Como não vou me preocupar? – replicou Agnes – Talvez não consiga vender os anéis no mesmo dia, e nesse caso, não terá dinheiro nem para voltar para casa, nem para passar a noite... Além do mais, se esquece que ainda é uma mulher jovem e bastante bonita para atrair a atenção de algum homem mal intencionado.

O argumento de Agnes fê-la corar; há muito não se via como uma mulher bonita. Estava com trinta anos e era verdade que aparentava bem menos, porém, tinha envelhecido mentalmente. A simples idéia de ser tocada, ou simplesmente, apreciada por um homem, lhe era inconcebível. Só havia se entregado uma única vez em toda sua vida e fora por amor. Um amor arrebatador, no entanto, arrependera-se amargamente.
Ingrid levou a mão à face tentando disfarçar o embaraço:

- Imagine Agnes... Quem olhará para mim?... Eu não corro esse risco.
- Não sei, não...
- É hábito, aqui, as pessoas viajarem de carona – disse ela – Eu mesma já vi várias mulheres viajarem de carona e nunca soube que alguma tivesse sido atacada.
- Você é mesmo teimosa! – reclamou Agnes – E ainda diz que Sara se parece com papai.
- Por falar nela, cuidará dela para mim?
- Claro, fique tranqüila. Voltará amanhã mesmo, promete? – pediu Agnes
- Espero que sim – disse ao acaso.
- Como “espera” que sim? – repetiu Agnes furiosa – Você tem que voltar amanhã!... Onde passará a noite caso não venda os anéis?
- Tem igreja em são Martinho, não tem?
- É claro que tem!
- Então, nesse caso estou salva. Um velho e bondoso padre não vai recusar pernoite a uma boa cristã como eu – disse ela em tom de brincadeira – Há muito que estou precisando ir à igreja.
- Então, aproveita para rezar. – concluiu Agnes, vencida.

Ingrid só estava com um problema: o que faria com as crianças na escola? Desde que começara a dar aulas, não faltara um único dia, se quer. As crianças adoravam ir à aula e seria desapontador fazê-las voltarem para casa. E ainda tinha os adultos, talvez não voltasse a tempo. Estava discutindo o assunto com Sara:

- Não se preocupe, mamãe, eu dou aulas a elas no se lugar.
- Sara!... Você só tem dez anos!
- Tenho quase onze. E eu sei perfeitamente dar aulas àquelas crianças! – afirmou convicta.

E era verdade. Nos últimos meses, ajudava a mãe a elaborar exercícios a serem passado em sala de aula, corrigia as provas e os cadernos dos alunos. E ainda ajudava a tia com os doentes. Quando não, reunia as crianças menores que ainda não estavam em idade escolar no quintal da casa, e dava-lhes folhas e lápis de cor para elas desenharem. Depois pregava os desenhos de seus pequenos “alunos” nos troncos das árvores. Ingrid não tinha nenhuma dúvida de que ela era realmente capaz de substituí-la. Talvez não fosse uma má idéia:

- Está bem, eu concordo. Mas tem que me prometer que não deixará nenhuma criança sair antes do horário. E na hora do lanche, cuide para que nenhuma saia sem que perceba, e também...
- Mamãe! – interrompeu-a – Eu sei de tudo isso... Acha que sou alguma irresponsável?
- Não, querida – disse docemente – Não acho, não. E é por isso que eu a amo tanto.
- Eu também amo você.


Ingrid se deu conta repentinamente, de como a filha tinha amadurecido tão precocemente. Tinha deixado de ser criança ali, naquele lugar. Estava deixando para traz uma etapa linda da vida. Tornara-se adulta antes do tempo e agia como tal. Sara não brincava mais com bonecas, nem de amarelinha, pular corda, de roda... Oh! Deus. Quando foi que ela parou de fazer essas coisas? – perguntava-se e não conseguia lembrar. Juntas tinham atravessado momentos sombrios pela sobrevivência e Sara não podia se dar ao luxo de ser criança.

O dia amanheceu lindo, e visto pelos olhos de Ingrid, parecia ainda mais bonito. Ela se arrumou com esmero: escolheu um dos vestidos que trazia guardado, sem uso, para uma eventual ocasião que exigisse uma roupa nova. Prendeu os cabelos e colocou um chapéu de abas pequenas. Aplicou um pouco de batom; mais só um pouco. Teve o cuidado de colocar os anéis dentro de um pé de meia e prendê-la com um alfinete dentro do bolso do vestido. Depois deu uma última olhada no espelho e gostou do que viu. Era a primeira vez que saia de Redentor e tinha que confessar que estava um pouco insegura. Era normal, dizia a si mesma. Vai passar logo.

Sara deu um assobio ao ver a mãe tão bem arrumada.

- Você está linda!
- Acha mesmo? – perguntou Ingrid fazendo pose – Não posso me apresentar desarrumada para fazer negócios... Além do mais, quem compraria jóias de uma mulher maltrapilha?
- Do jeito que está bonita, vão querer vender jóias a você.
- Não seja exagerada, Sara!

Ingrid esperou que Agnes chegasse, fez as últimas recomendações a Sara e depois beijou as duas na despedida. Não quis que a irmã a levasse de furgão até a estrada, preferiu ir caminhando para aproveitar o calor aconchegante da manhã. Estava feliz, não queria perder nenhum lance daquela aventura. Cumprimentava sorrindo as pessoas que ia encontrando pelo caminho, até que chegou.
O primeiro automóvel passou e não parou ao seu sinal. E mais um. E outro. Começava a ficar preocupada, mas não desistiria, tentaria mais um pouco.
Outro veículo vinha se aproximando, um caminhão. Hesitou por um momento, tinha que decidir em fração de segundo. Levantou o braço assinalando. O veículo foi diminuindo a velocidade e parou junto dela.

- Pra onde vai, moça?- perguntou o homem do interior da boléia.
- São Martinho – respondeu ela.
- Sobe.

Ingrid subiu na boléia com certa dificuldade e sentou-se bem junto à porta. Sentia-se pouco à vontade ao lado do estranho. Teria preferido um casal com filhos, mas se haviam poucas coisas no mundo que não se pode escolher, esta era uma delas. Empenhara-se tanto em convencer Agnes, e agora nem ela mesma tinha certeza se teria sido uma boa idéia viajar de carona. O que está feito, esta feito.
Em dado momento, notou que o homem queria conversa, mas ela virou o rosto para sua direita, fingia apreciar a paisagem. Sem resultado:

- É melhor sentar mais pra cá, “Dona”. Essa porta abre nas curvas. – advertiu o homem grosseiramente.
- Não tem... trava de segurança? – perguntou ela sem a menor intenção de sentar-se mais próxima a ele.
- “Tê” tem, mais não funciona. Sabe como é... Caminhão velho... Pouco ganho...

Ela preferiria fazer o trajeto em silêncio. Não estava com a menor intenção de manter um diálogo com aquele homem que lhe lançava olhares enviesados de alto a baixo, como se estivesse estudando-a nos mínimos detalhes. Entretanto, não responder a ele, pareceria mal agradecida. Então, abriu sua bolsa, retirou uma caderneta e um lápis e simulou umas anotações. Mais uma vez, não funcionou.

- Vai fazer o quê em São Martinho?
- Vou... visitar um parente – mentiu.
- É casada?
- Sou. – outra mentira.
- Também sou.

Ele alternava os olhares entre ela e a estrada.

- ... Apesar de que às vezes até esqueço... Vivo no mundo viajando... sozinho...
- ...
- Se eu fosse seu marido, não te deixava ficar por ai pegando carona...

Agora ela desejava desesperadamente não estar ali. Fora precipitada ao achar que estava preparada para se defender das possíveis investidas de um homem. Podia sentir o rubor queimar-lhe as faces. As pernas estavam trêmulas e tinha que forçá-las para baixo para que seus calcanhares não tamborilassem.

- Eu... nós não tínhamos dinheiro para a passagem e eu tinha que viajar... Meu marid...
- Hei, boneca!... Não precisa mentir pra mim. Não “tô” vendo nenhuma aliança aí no seu dedo... Mas, como é mesmo que disse que chamava?
- Não disse.
- Eu sou Gabriel e você?

Demônio com nome de anjo.

- Ingrid.
- Ingrid!... É gringa, não é? Vi logo pelo sotaque. Sabe que é a primeira vez que eu fico tão perto de uma gringa?

Ela queria desaparecer, tornar-se invisível. Não agüentava mais aquela conversa tão despropositada, mas tinha que agir com prudência:

- Pode... por favor, me deixar no primeiro posto?... Tenho que voltar... Acho que esqueci algo – pediu ela tentando disfarçar o nervosismo.
- Tá querendo fugir de mim, hem?

O homem olhava-a com um sorriso demoníaco, lábios arroxeados, dentes apodrecidos. Ingrid sentiu-se enjoar e um líqüido quente e amargo brotou em sua boca.

- ... Se um peixão como esse caiu na minha rede, eu não vou deixar escapar... E depois, se a boneca disse que queria ir pra São Martinho, é pra lá que eu vou te levar... Mas antes, vamos dar uma paradinha ali à diante... se é que me entende...

Ele esticou o braço até ela e tocou em suas coxas por baixo do vestido.

- Não toque em mim, seu asqueroso!! – gritou ela com todas as forças de seus pulmões. Ao mesmo tempo, empurrava-o, com violência.
- O que é gostosa?... Pensou que a carona ia sair de graça?

Com uma mão ele dirigia e com a outra bolinava nela. Tentava por todos os meios tocar-lhe os seios. Dizia palavras obscenas, ria alto como num ritual de terror. Ela lutava, chorava e se debatia. O caminhão começou a ziguezaguear pela estrada. Num movimento brusco, ele a trouxe para junto de si agarrando-a pelo vestido e rasgando-o na altura do busto. Ingrid, num ato quase irracional, cravou-lhe as unhas num olho.

- Sua puta vadia!

Ele uivava com a fúria de um animal ferido. O sangue viscoso jorrou de imediato e ele começou a perder o controle do veículo. Tudo estava acontecendo em frações de segundos e a ela só havia uma saída: Pular

Um comentário:

  1. Continuo preso ao enredo. Passei para deixar um abraço e cumprimentar pela sequência...

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco