domingo

LIVRO 2 - Capítulo I




"É Preciso Ver os Anjos"



- Por favor, senhor, pode me informar como faço para chegar nesse endereço? – perguntou Sara mostrando o papel a um passageiro que acabara de desembarcar.

- É um pouco complicado – disse o homem – Mas vou lhe mostrar onde deve apanhar o ônibus para chegar até lá.

- Obrigada. – agradeceu ela seguindo o estranho pela saída da rodoviária.

- É a primeira vez que vem a São Paulo? – perguntou o homem.

- É.

- E o que está achando?

- Nunca vi tantas pessoas em toda minha vida!

- Ainda não viu nada.

- Para onde vai toda essa gente?

- Quem é que sabe? – deu de ombros – Centenas delas chegam a São Paulo todos os dias e a cidade os recebe calada.

- Acha que ela reclamaria se pudesse falar? – perguntou Sara achando graça.

- Talvez. Mas como não pode falar, acho que vai explodir algum dia. Chegamos.

- Obrigada por ter me ajudado – disse Sara estendendo a mão ao estranho.

- Não foi nada – disse ele friamente – Tomara que encontre o que veio buscar aqui.

- Encontrarei – afirmou ela – Isso é, se a cidade não explodir antes.


A pensão era um casarão antigo em péssimas condições de conservação. Havia tinta fresca na fachada, mas não parecia ter sido aplicada com rolos ou pincéis, e sim, parecia mais que alguém havia atirado a tinta de uma longa distância, tamanha eram os escorridos pela calçada. Logo na entrada, havia uma placa: “Há vagas para moças de fino trato.” Sara deu uma olhada para sua roupa amarfanhada, seus sapatos empoeirados e pensou se ela se enquadraria naquelas exigências. Mas entrou assim mesmo.

Uma mulher enorme aparentando uns quarenta anos estava à recepção. Ela estranhou a figura extravagante daquela mulher: Tinha cabelos exageradamente amarelos presos no alto da cabeça; grossas mechas displicentes caíam-lhe pelo rosto quase lhe tampando a visão. A maquiagem também era exagerada, com cílios postiços longos e encurvados, o batom vermelho berrante. Usava enormes brincos pendentes e argolas douradas cobriam do pulso ao cotovelo, o braço roliço.

Sara disfarçou a má impressão e tentou parecer o mais natural possível:


- Boa Tarde... Procuro um quarto para alugar...

- É maior de idade? – perguntou a mulher sem responder o cumprimento.

- Sim, acabei de completar dezoito.

- Tenho uma vaga para moça de família que não fuma, que seja educada e trabalhe fora. Não gosto de ninguém zanzando pelos corredores durante o dia. Se esse for o seu caso...

- Sim, senhora... eu... quero dizer... Acabei de chegar à São Paulo, ainda não tenho trabalho, mas vou conseguir em breve, tenho certeza – afirmou Sara, confiante.

- Todas dizem a mesma coisa – disse a mulher encarando Sara de cima a baixo – De onde você vem, menina?

Ela corou. Levantou e abraçou a mala à sua frente:

- Do... Paraná.

- Hãm... sei... – disse a mulher espichando o beiço inferior – Muito bem. Costumo dar duas semanas de prazo para as novatas arranjarem emprego. Se não estiver trabalhando até lá, darei a vaga à outra.

Sara pensou por uns dez segundos.

- Eu aceito. Vou ficar os quinze dias.

- Pagamento adiantado – informou a mulher

- E quanto custa?

A mulher bateu com a caneta numa folha de papel com a tabela de preços pregada à parede. Sara olhou para o papel e fez os cálculos mentalmente; depois tirou um maço de notas embrulhadas num lenço que trazia nos seios. Separou algumas e colocou em cima do balcão.

A mulher pegou as notas e enfiou numa gaveta. Em seguida, apanhou duas folhas de papel e entregou a Sara.

- Sabe escrever?

- Sim senhora.

- Uma você preenche com os seus dados e me entrega. A outra é o regulamento que terá que cumprir. Leia com atenção, pois não vou aceitar reclamações depois.

Sara apanhou os papéis e começou a ler enquanto a mulher saia de traz do balcão e se dirigia à porta dos fundos:


- Plinio! – berrou ela.


Um rapaz negro de rosto delicado, metido num macacão sujo da mesma cor de tinta da fachada, surgiu de repente:

- A senhora me chamou Dona Dirce?

- Não, seu imbecil! Gritei seu nome só pra me lembrar o quanto você é idiota! É claro que eu chamei!... Leve a bagagem da moça para o quarto dezesseis.

- Sim senhora.

Cada quarto era ocupado por quatro moças. Além das camas, somente quatro armarinhos pequenos com espelhos nas portas e algumas cadeiras. Os únicos dois banheiros ficavam no final do corredor; eram minúsculos e coletivos.

Sara arrumou suas roupas no armário, sentou-se na cama e se pôs a pensar qual seria seu próximo passo. Não demorou muito, e as suas companheiras de quarto começaram a chegar. Dirigiram um cumprimento breve e informal a ela, como se a presença dela ali sentada à cama fosse a coisa mais natural do mundo. Elas falavam alto, riam e diziam coisas completamente desconhecidas a ela. Tudo era tão novo e envolvente, que Sara sentiu uma agradável sensação de bem estar; estava realmente adorando toda aquela movimentação.

Dentre todas as moças, havia uma que Sara notou logo ser a mais falante e extrovertida. Trocava de roupa enquanto relatava seu dia no escritório; colocou-se nua na presença de todas sem o menor constrangimento. Mais tarde, ela se aproximou de Sara:


- Oi, eu sou Claudine e você?

- Sara.

- Muito prazer. Você é sempre assim tão calada?

- Estava gostando de ouvir vocês...

- Chegou hoje?

- Cheguei.

- Eu estou aqui há dezoito meses – disse Claudine – Vim de Belo Horizonte para estudar, mas a universidade estava uma chatice sem fim e eu tranquei a matrícula... O pior foi que meu pai descobriu tudo e cortou minha mesada. Como não tive tempo suficiente para arrumar um marido rico, arrumei um emprego.

- Porque decidiu ficar? Poderia voltar para casa...

- Prefiro contrair uma doença incurável! – exclamou Claudine – Voltar e ter que engolir aquela mosca varejeira da minha madrasta?... Só se eu bater com a cabeça!

- Você é engraçada...

- Se não levar na base do bom humor, a barra pesa – argumentou Claudine – ....Mas e você, Sara, de onde é?

- De Re... do Paraná – corrigiu em tempo – Vim para procurar trabalho e estudar também... quem sabe.

- O que você fazia lá no Paraná?

- Eu costurava.

- Tem uma confecção aqui perto...

- Não! – protestou Sara – Prefiro qualquer outra coisa, menos costura.


Sara percebeu que havia exagerado no tom e resolveu acrescentar:


- ... É que estou um pouco enjoada de costurar.

- Então pode tentar um escritório... Sabe datilografia?

- Um pouco. Tia Agnes me ensinou na máquina do convento...

- Esteve num convento??

- Oh, não! Tenho uma tia freira. Ela mora num convento e me deixava datilografar alguns papéis para ela.

- Mas não tem diploma?

- E precisa?

- Bem, é melhor você dizer que tem, ninguém pede para ver mesmo. E de máquina elétrica, a manual está ficando ultrapassada e está sumindo dos escritórios modernos.

- E se me pedirem um teste?

- Nesse caso você explica que não saiu muito bom porque você abriu o pulso ajudando uma velhinha a subir no ônibus, qualquer coisa assim. Essas histórias sempre comovem, e depois que conseguir o emprego, treine as escondida na hora do almoço.

Dita por Claudine as coisas pareciam incrivelmente fáceis, mas no íntimo, Sara sabia não ser assim. De qualquer maneira, estava gostando da conversa. Atrás daquele humor todo, havia um otimismo contagiante; simpatizara-se muito com ela. Eram extremamente diferentes, mas se era mesmo verdade que os opostos se atraem, tudo indicava que uma grande amizade acabara de nascer.

- Só tenho duas semanas para conseguir um emprego, se não, Dona Dirce vai ceder minha vaga para outra – disse Sara apreensiva.

- Ela disse isto?? – perguntou Claudine enfaticamente.

Sara assentiu com a cabeça.

- Aquela elefanta alegórica! – exclamou Claudine irritada – Não liga para ela, não passa de uma desquitada frustada. Fala como se uma vaga nessa espelunca fosse disputada a tiros!

- De qualquer maneira vou começar a procurara amanhã mesmo – disse Sara.

- Pode contar comigo para o que precisar. Se eu souber de alguma vaga lá na Construtora, eu lhe aviso.

- Obrigada, Claudine – Sara fez uma pausa antes de continuar – Conhecer você foi a primeira coisa boa que me aconteceu desde que cheguei.

- É provável que eu possa dizer a mesma coisa em relação a você.


Por vários dias, a rotina de Sara era a mesma: comprar o jornal, recortar os anúncios de emprego, perambular pela cidade e voltar ao final da tarde com os pés doloridos e certa dose de decepção. No décimo dia, porém, conseguiu fazer um teste numa indústria farmacêutica e fora aprovada. Mal podia esperar à noite para contar a Claudine:

- O salário não é grande coisa – dizia ela a Claudine – Mas não me importo. Está ótimo para começar.

- E o que vai fazer lá? – perguntou a amiga.

- Não sei direito. Acho que vou trabalhar com remédios – disse ela.

- Bom, pelo menos, poderá ficar doente à vontade – disse Claudine em tom de brincadeira.

- Você é maravilhosa, Claudine!... Encontra sempre uma palavra animadora.

- Precisamos comemorar – sugeriu Claudine – Plinio me disse que está passando um filme ótimo no cinema. Chama-se Dr. Givago, é um romance... Que acha de irmos os três?

- Eu, você e o Plinio? – perguntou Sara um tanto admirada.

- E porque não?... Sabe, antes de você vir morar aqui, Plínio era meu único amigo. Ele está um pouco enciumado depois que você chegou.

- Claro... Eu entendo. Ele deve estar me odiando por isso – disse Sara

- Oh, não! O Plinio não é desse tipo. Seria incapaz de odiar alguém. Nem mesmo a elefanta que explora e humilha-o o tempo todo, ele consegue odiar.

- Não entendo porque ele ainda se mantém tão dedicado a ela – disse Sara.

- É porque não conhece a história dele – explicou Claudine.

- Do que está falando?

- Do passado de Plinio – disse Claudine – No ano passado – começou ela – Eu encontrei-o encolhido na porta do prédio da construtora. Estava frio, chovia muito e eu tive pena dele. Levei-o a uma lanchonete e lhe paguei um lanche. Enquanto comia, ele me contou sua história... Ele é o mais velho de sete irmãos; moravam numa favela e a mãe fazia faxina para sustentar a família enquanto ele tomava conta dos irmãos menores. Ele tinha sete anos nessa época. O pai era alcoólatra e vivia desempregado. Ele me contou que gostava de arrumar o barraco e deixar tudo limpinho desde pequeno... Por isso mesmo o pai vivia provocando-o, chamando de marica, e volta e meia, vestia nele os vestidos de suas irmãs e fazia-o andar pela favela para ser caçoado pelos vizinhos.

- Jamais pude imaginar que ele tivesse sofrido tanto – disse Sara pesarosa – Não vejo nele nenhuma mágoa...

- E não é só isso – continuou Claudine – Ele me disse que sonhava todas as noites que estava matando o pai... Daí passou a amarrar os próprios pulsos à cama antes de dormir com medo de um ataque de sonambulismo. Até que um dia, o pai obrigou-o a tomar meia garrafa de cachaça; disse que era para “ver se ele virava homem”. Ele desmaiou e quando acordou saiu de casa. Viveu quatro anos na rua; passou fome e frio e dormia por aí em bancos de praças e abrigo de ônibus até eu encontrá-lo e traze-lo para cá.

- Ainda bem que Dona Dirce concordou em dar emprego a ele – disse Sara.

- “Concordar” não é bem o termo. Eu diria “aproveitar” – disse Claudine.

- Como assim?

- Ela não quis dar nenhum emprego a ele. E é claro que eu sei que é porque ele é negro. Mas quando ele disse que ficaria pela cama e comida, aí a coisa mudou.

- Está me dizendo que ele trabalha como um louco e agüenta tanto desaforo por cama e comida?

- Isso mesmo.

- Meu Deus!... Isso é desumano... É...

- É pior do que isso, minha amiga. É cruel! – enfatizou Claudine.

- E eu que pensei que já havia visto toda maldade desse mundo!

- Porque está dizendo isso? – perguntou Claudine.

- Porque eu também tenho uma história para lhe contar... A minha.


A noite foi divertida. Depois do cinema, eles passearam pelas redondezas. Plinio era alegre e educado, e daquele momento em diante, tornaram-se inseparáveis.

Certa vez, Claudine acordou Sara no meio da noite:

- Sara, acorde! – cochichou ela.

- O que aconteceu? – perguntou sonolenta.

- Vamos lá para os fundos. Plinio tem uma garrafa de vinho e um maço de cigarros.

- Mas é proibido fumar aqui.

- É exatamente por isso que vamos fazer. Se não, que graça teria?

Sara vestiu seu roupão e seguiu-a até os fundos da casa. Plinio ajudou-as a pular o muro que dava para um terreno baldio. A noite estava linda e havia bilhões de estrelas cintilantes no céu.

- Minha mãe gostava de olhar o céu numa noite estrelada como essa. Dizia que ele era bom conselheiro.

- Porque será que Deus colocou tantas estrelas lá em ciam se nenhum homem poderá contá-las? – perguntou Claudine.

- Eu acho que vocês já estão bêbadas e vendo estrelas em dobro – respondeu Plinio

- Vocês dois!... Não dá para falar sério com vocês – reclamou Sara.

- E porque falar sério? – perguntou Claudine – Vamos beber e falar bobagens como todo mundo.

- Vamos comemorar – Sugeriu Plinio.

- O que vamos comemorar? – perguntou Claudine.

- Bem, eu vou comemorar meu novo emprego – disse Sara levantando o copo.

- E eu vou comemorar porque hoje é sábado e amanhã é o meu dia de folga. Vou estar livre da elefanta – disse Plinio repetindo o gesto de Sara.

- E eu comemoro antecipadamente o marido rico que eu vou arrumar e nunca mais terei de trabalhar – disse Claudine unindo seu copo.

- Rico, mas com outras qualidades, também – disse Sara.

- Não seja ingênua, Sara – disse Claudine tomando vagarosamente um gole do vinho – A melhor qualidade de um homem, não está na pessoa dele, e sim no bolso dele!

- Pois para mim um homem tem que ser gentil, carinhoso e interessante... E tem que estar apaixonado por mim, é claro! – concluiu Sara sonhadora.

- Vocês duas vão acabar solteironas, isso sim – falou Plinio.

- E você, Plinio, como é a mulher perfeita para você? – perguntou Sara.

- Certamente não é como nenhuma de vocês duas – disse ele em tom de brincadeira.

- Ah, estou falando sério! – protestou Sara.

- Eu também.

- Somos “moças de fino trato” – Disse Claudine imitando a dona da pensão.

- Deixa a elefante pegar as “moças de fino trato” bebendo e fumando num terreno baldio!– zombou Plinio.

- Hoje não corremos esse risco. Ela está com uma daquelas “visitas” que chegam na calada da noite – disse Claudine em tom de mistério.

- Não me diga!! – exclamou Sara – Ela está com um homem?

- Está – afirmou Claudine – Amanhã, ela dirá que é o irmão ou um primo distante. É sempre assim.

- Que hipócrita!... E eu que pensei que ela fosse uma santa!... Exige tão boa conduta de nós e, no entanto... – Sara mostrou-se indignada.

- Uma safada, isso sim! – enfatizou Plinio.

Sara olhou para o céu:

- Está quase amanhecendo. Acho melhor voltamos para o quarto e dormimos um pouco.

- Antes vamos fazer um juramento – sugeriu Claudine estendendo a mão – Não importa o que aconteça, estaremos sempre juntos.

- Um por todos e todos por um – disse Plinio juntando sua mão.

- Colocaremos nossa amizade em primeiro lugar e acima de todos e quaisquer interesses – falou Sara colocando sua mão por cima da deles.

- Enquanto vivermos – finalizou Plinio


Um mês depois, Sara já havia se adaptado à rotina do novo trabalho. Descobriu depressa porque as moças caçoavam tanto dela: riam de suas roupas, do seu modo de falar, enfim, tudo era motivo para rizinhos às suas costas. Aprendeu que o que ela chamava de vidrinhos eram frascos, caixinhas, eram estojos, remédios, medicamentos e assim por diante. Ouvia tudo com atenção, não que se importasse com as chacotas das moças, mas porque queria aprender o máximo possível. Sua função era colocar os frascos já com o medicamento dentro do estojo, colocar a bula e fechar. A esteira passava rápida e já fora avisada: se deixasse passar muitos estojos vazios, podia lhe render uma suspensão.

O chefe da seção, Dr. Pierre, um francês de cinquenta e poucos anos, calvo e barrigudo, era um homem grosseiro e de péssimo humor. Volta e meia, ela ouvia comentários maliciosos das moças no vestiário na hora do almoço:

- Hoje ele está terrível!

- Pior ainda do que já é!

- Vai ver a mulher não quis dar para ele essa noite.

- Sabe por que ele gosta tanto de mandar na gente? Por que a mulher manda nele em casa. Já repararam como ele fica quando ela aparece por aqui? Sim benzinho... Pois não benzinho...

- Parece um cachorrinho obediente.

- E deve ter passado a noite trancado no banheiro por ter feito xixi no tapete!...

Ela nunca participava desses comentários, vivia calada e ainda não tinha feito nenhuma amizade. Realizava seu trabalho e ponto final.

Certo dia, próximo ao horário de saída, Dr. Pierre, como sempre fazia, andava de um lado a outro supervisionando a linha de produção minuciosamente. Quando chegou perto de Sara, porém, parou por alguns segundos para observá-la. Ela já havia notado essa atitude antes e suspeitou que ele talvez não estivesse satisfeito com sua produção. Quando soou o apito, as moças correram para o vestiário, Dr. Pierre aproximou-se dela:

- Você é nova aqui, não é? – perguntou ele.

- Sim, senhor. Vou completar um mês na semana que vem.

- Estive observando-a. Está sempre calada, não me causa problemas e tem produzido mais do que as outras – disse em tom paternal.

- Obrigada – respondeu ela corando com o elogio.

- Minha secretária vai sair de férias segunda-feira, gostaria de substituí-la? – perguntou ele.

- Eu?!... Não sei se posso...

- Porque não? É só por um período, e se sair bem, posso lhe conseguir uma vaga no escritório central quando minha secretária voltar.

Afinal ele não era tão ruim assim.

- É que... Não sei datilografia muito bem – decidiu não mentir.

- Isso não é problema. Se souber um pouco já está bom – disse ele animadoramente – Apresente-se no meu escritório segunda-feira pela manhã, mas não conte nada as outras por enquanto... Sabe como é esse negócio de rivalidade entre vocês. Algumas já estão aqui há bastante tempo e...

- Naturalmente, Dr. Pierre, eu entendo.

Ele fez menção de sair, mas voltou-se ao lembrar de algo:

- Tem mais uma coisa: Não precisará mais vestir essa avental branco, nem esse gorro na cabeça. Se vista normalmente e solte os cabelos... Quero dizer... tem que parecer apresentável para trabalhar como secretária.

- Sim senhor.

Sara voltou para a pensão radiante. À noite contou tudo a Claudine, mal podia conter sua excitação, mas a amiga não parecia compartilhar de sua euforia.


- Não sei não, Sara... Temo por você, é muito inocente. Se fosse comigo, saberia como lidar com ele, mesmo que estivesse mal intencionado, mas você...

- O que há de errado comigo? – perguntou Sara ressentida – Não acredita que ele possa realmente ter gostado do meu trabalho?

- Eu acho que ele gostou foi de você, isso sim! – falou Claudine francamente – Mas não importa o que eu acho, deve tentar. De outra maneira, nunca saberá.

- Porque está tão desconfiada? – quis saber Sara.

- Porque num dia você me diz que ele é a própria encarnação do demônio, e agora quer me convencer de que ele é um santo homem?... O que quer que eu pense?

Claudine suspirou profundamente. Estava sendo muito dura com a amiga e o remorso bateu fundo.

- Perdoe-me, Sara, não devia estar lhe dizendo essas coisas. Vou torcer muito por você... Um por todos, todos por um, lembra-se?

Sara começou na sua nova função cheia de entusiasmo. Atendia ao telefone, datilografava pequenas correspondências, fazia anotações e procurava lembrar-se de tudo que aprendia. No terceiro dia secretariando Dr. Pierre, não mais se lembrava da conversa que tivera com Claudine.

Naquela manhã, Dr. Pierre pediu a ela que viesse até sua sala. Estava sentado em sua escrivaninha, olhar penetrante e um estranho sorriso nos lábios.

- Está gostando de trabalhar comigo, Sara?

- Sim, eu gosto muito de trabalhar aqui – respondeu ela.

Ele se levantou, deu a volta calmamente pela escrivaninha e aproximou-se dela.

- Porque não relaxa um pouco... Sente-se aqui, vamos conversar – disse ele segurando em seu braço e conduzindo-a a uma poltrona.

Ela soltou-se num movimento brusco e involuntário. Estava começando a ficar apavorada.

- Dr. Pierre... Tenho muito trabalho a fazer...

- Isso pode ficar para depois – insistiu ele com voz galante – Não acha que precisamos nos conhecer melhor?

Ela correu para a porta, mas ele barrou a passagem.

- Vai ser boazinha comigo, não vai? Eu fui bonzinho com você – disse ele com um brilho alucinante nos olhos.

- Por favor, deixe-me passar... não...

- Não tenha medo Sara, não lhe farei nenhum mal...

Ele começou a avançar em sua direção, Sara foi afastando-se até encurralar-se na escrivaninha.

- ... É uma bela garota, Sara. Tem um corpo maravilhoso e está me deixando louco! – disse agarrando-a pela cintura.

- Tire as mãos de cima de mim seu velho nojento! – gritou ela enquanto tentava fugir desesperadamente.

- Isso garota, lute! Grite! Que é assim mesmo que eu gosto!... Ninguém vai ouvi-la com todo esse barulho. Dei ordens para que as máquinas funcionassem a todo vapor.

Sara tateou cegamente sobre a mesa à procura de algum objeto para defender-se, achou uma pedra oval que servia de peso para papéis. Num golpe rápido e certeiro atingiu-o na cabeça. O sangue jorrou.

- Saia daqui sua biscate à toa! Está despedida!

Entretanto, ela já ia longe. Passou rapidamente pelo vestiário, apanhou seus pertences e foi embora. O enjôo e a zonzeira quase a impediu de ver o letreiro do ônibus. Como pude ser tão ingênua? Devia ter acreditado em Claudine... Vai ver não passo mesmo de uma caipira inocente...

Caipira ainda poderia ser, inocente não mais. Desconfiaria de tudo e de todos dali para frente. Alguma coisa havia morrido dentro dela, ainda não sabia se era bom ou ruim, no momento só conseguia sentir o doloroso vazio.

À noite contou tudo a Claudine. Esperava críticas, no entanto recebeu consolo e compreensão nos braços da amiga.

- Aquele porco asqueroso! – exclamou Claudine possessa – Mas ele vai ter o que merece, ou não me chamo Claudine!


Dias depois uma figura de mulher estava sentada à mesa de um bar. Vestia uma saia justa e tão curta ao ponto de deixar totalmente à mostra as coxas fartas. Um decote tão profundo, que os seios abundantes pareciam que iam pular para fora da blusa a qualquer momento. A maquiagem era carregada, marcante. O batom, aplicado deliberadamente fora da linha natural dos lábios, aumentava os contornos da boca. Os cabelos displicentes, rebeldes, com umas poucas mechas presas para uns dos lados da cabeça. Usava bijuterias enormes e unhas compridas e pontiagudas pintadas de vermelho vivo.

Ela acendeu um cigarro e puxou a fumaça com sensualidade sob os olhares masculino do bar; consultou o relógio com impaciência como quem espera por alguém que não chega nunca. Nesse momento, Plinio passou pela porta de entrada e dirigiu-se diretamente a ela.

- Até que em fim! – cochichou ela entre dentes – Está atrasado, pensei que não viesse mais.

Ele não conseguiu dizer uma só palavra. Teve uma crise de risos e levou a mão à boca para não chamar a atenção dos demais.

- O que deu em você? – perguntou ela furiosa – Do que está rindo afinal?

- De você... Parece àquelas putas da estação da luz... Nunca vi nada tão vulgar!

- Pare com isso e sente-se logo aí! – ordenou Claudine – Tem certeza que é aqui?

- Absoluta. Ele vem aqui todos os dias depois do expediente.

- Está tudo pronto com você? – Perguntou Claudine.

- Tudo pronto.

- Não quero que perca nenhum lance – orientou-o

- Ainda temos alguns minutos, podemos repassar o plano – sugeriu Plinio.

- Ótimo – disse ela – Tem certeza que há quartos lá em cima?

- Claro!... Conheço bem essa espelunca de quando eu vivia nas ruas. É só soltar uma “graninha” na mão do alemão e ele entrega a chave.

- Nesse caso, quando eu conseguir levá-lo lá para cima, você corre ao telefone. Acha que haverá tempo dela chegar até aqui? – perguntou Claudine.

- Levará uns vinte minutos de taxi. Você controla no relógio.

- Cuide para que não seja visto subindo as escadas quando voltar do telefonema – recomendou Claudine

- Deixa comigo.

Os dois não desgrudavam os olhos da porta. Estava quase na hora.

- Não acha que exagerou no visual? – perguntou Plinio – Ele pode desconfiar e botar tudo a perder.

- Eu conheço bem o tipo – respondeu Claudine ajeitando os peitos – É disso que eles gostam.

Um homem trajando um terno azul-marinho meio amarfanhado acabara de passar pela porta. Assobiava alto uma canção.

- Olha lá, Claudine, é aquele! – anunciou Plinio – Vá logo e boa sorte!

- Vou mesmo precisar. Meu Deus, como é horroroso!... E ainda por cima, aquele curativo ridículo na cabeça!

Ela caminhou apressadamente em direção ao homem, quando chegou mais perto, virou a cabeça para um dos lados numa atitude de distração e trombou-se deliberadamente com ele. Sua bolsa e tudo que havia dentro foram ao chão.

- Oh! Que desastrada eu sou! – disse ela abaixando-se para recolher os objetos; mostrava as pernas o máximo que podia.

O homem se pos prontamente a ajudá-la:

- Perdoe-me senhorita... Não tive a intenção...

- Oh, eu sei que não! – exclamou ela melosamente – Quebrou algumas coisinhas, mas pelo menos foi a primeira vez que um cavalheiro tão distinto me chama de senhorita... E eu nem precisei fazer muito pra isso...

Ele estava visivelmente derretido pelo elogio.

- O que poderei fazer para recompensá-la? – perguntou ele insinuante.

- Me deu uma sede de repente – disse ela passando a língua pelos lábios – Que tal me pagar uma bebida?

Claudine puxou-o pelo braço até uma mesa num dos cantos do bar. Sentou-se encostada na parede, o homem ocupou a cadeira ao lado.

- Sente-se aqui mais perto bonitão – sugeriu – Eu não mordo, não... A menos que você me peça, é claro.

Ele empurrou sua cadeira até encostar na dela, enlaçou-a pelos ombros e começou a acariciar seu braço nu. Estava adorando ser cortejado por aquela mulher maravilhosa. Era a primeira vez em toda sua vida que não precisou correr atras de uma: ela tinha caído espontaneamente bem no seu colo e como era linda!

- O que vai beber, benzinho? – perguntou ele quando o garçom se aproximou.

- Acho que vou querer champanhe... Eu adoro champanhe... Francês!

- Não tem champanhe francês aqui, benzinho – cochichou ele no ouvido dela.

- Não tem champanhe francês! – exclamou ela em voz alta – Mas que pena!... Logo hoje que tenho todos os motivos do mundo para comemorar...

- Temos algumas garrafas escondidas lá dentro – informou o garçom discretamente – Sabe com é... São para os fregueses especiais da casa.

O homem pensou no que diria a esposa que controlava cada centavo seu. Pagaria os olhos da cara por um champanhe que sabia que era falsificado. Mas isso não tinha a menor importância agora. Estava vivendo um sonho e aquela garota valia cada tostão gasto. Pensaria numa justificativa depois:

- Nesse caso, champanhe para dois – pediu ele.

- Traga a garrafa – acrescentou ela.

O garçom trouxe a bebida e serviu duas taças. Claudine mergulhou o indicador em sua taça e introduziu na boca dele.

- Ainda não me disse seu nome, benzinho – disse ele lambendo o dedo dela.

- Que distraída, eu sou!... Nem me apresentei. Pode me chamar de... Zizi. É o meu apelido. E o seu?

- Pierre.

- É francês? – perguntou ela fingindo admiração.

- Tão legítimo quanto esse champanhe!

Ele puxava-a para tentar beijá-la, Claudine se deixava chegar com os lábios bem perto dos dele e depois recuava num jogo de sedução.

- Está me deixando louco... Porque não me deixa beijá-la logo de uma vez? – perguntou ele com os olhos injetados.

- Aqui não... Gosto de fazer o meu show entre quatro paredes – disse insinuante.

- Então vamos logo lá para cima – suplicou ele.

- Lá para cima?

- O Alemão tem uns reservados lá em cima.

- Hum... Que interessante!...

- Espere só um pouquinho aí que eu vou apanhar a chave.

Ele se levantou e dirigiu-se ao dono do bar. Claudine olhou para Plínio e levantou discretamente o polegar. Plinio deixou o lugar em disparada em direção ao telefone público.

O quartinho era imundo e o banheiro cheirava urina; Claudine teve que fazer um esforço enorme para não vomitar. A cama, mexida e com lençóis encardidos, ficava bem ao centro e só. Nenhuma outra mobília, além da cama, deixava explícito para que fim destinava-se o lugar. Pierre foi logo tirando a roupa mal adentraram o quarto.

- Calma!... Para que tanta pressa! – disse ela – Não gosta de fazer um joguinho antes?

- Gosto de tudo que você gostar, benzinho...

- Então deita aí e fique quietinho que o show vai começar.

Claudine tirou um lenço negro da bolsa e vendou os olhos dele.

- Estou adorando isso, benzinho, você é incrível!...

Depois, tirou sua gravata e com ela amarrou-o pelos pulsos na cama. Só então começou a despi-lo. Quando estava completamente nu, ela correu até a porta e abriu-a um pouco. Plinio já estava lá munido de sua câmara fotográfica. Rapidamente, Claudine tirou a blusa e a saia e ajoelhou-se em cima da cama junto dele. Tratou de esconder o rosto e empinar o traseiro enquanto Plínio batia as fotos. Falava com Pierre o tempo todo a fim de distraí-lo, e quando Plinio finalmente sinalizou que tinha acabado, ela saltou da cama e vestiu-se rapidamente. A demora fê-lo resmungar:

- O que está havendo, doçura?... Porque essa demora? Não vê que estou fervendo...

- Vou até lá embaixo ver se o alemão tem um pote de geleia de morangos – informou ela docemente.

- Vai comer geleia numa hora dessas? – protestou ele.

- É que eu gosto de comê-la de um jeito muuuuito especial...

- Hum... Já entendi... Safadinha, hem!

- Fique aí quietinho que eu prometo que vai ter uma surpresa e tanto!

- Adoro surpresas.

Claudine deixou o quarto rapidamente, desceu as escadarias correndo, passou por Plinio e tomou-o pelo braço:

- Vamos sair logo dessa lixeira antes que eu comesse a vomitar o meu fígado.

Alcançaram a porta no exato momento em que uma mulher enrugada e magricela entrava no bar com uma faca de cozinha na mão. Plinio e Claudine pararam por um momento do lado de fora do bar a fim de se certificarem de que tudo sairia como planejado. A mulher se dirigiu diretamente a escada: berrava aos quatro ventos, furiosa. Algumas pessoas tentaram segurá-la, mas ela se desvencilhou e continuou subindo.

- Larguem-me seus filhos de uma puta que o meu negócio não é com vocês! Onde está ele?... Onde está aquele depravado que eu quero cortar-lhe os bagos!

Dentro do taxi eles comemoravam o sucesso da empreitada:

- Zizi?? – Plinio se contorcia em gargalhadas.

- Foi o que veio na hora – disse Claudine – Esquecemo-nos completamente que eu tinha que ter um nome... Mas isso não importa, o importante é que conseguimos. Agora é só mandar revelar as fotos que você tirou e mandar anonimamente para a seção na fábrica.

- Fico imaginando a reação das moças quando olharem essas fotos.

- Temos que imaginar a reação de Sara quando contarmos a ela, isso sim.

- Acha que ela não vai aprovar?

- Vai ficar furiosa!

No pensionato contaram tudo a Sara sem omitir nenhum detalhe. Ao terminarem, porém, ela permaneceu calada. Olhava estranhamente para os dois; parecia analisar o que acabara de ouvir.

- Sei o que vai dizer – disse Claudine quebrando o silêncio – Que fomos longe demais, não é isso?

- Não. Eu só estava aqui pensando se ela chegou mesmo a machucá-lo como disse que faria.

- Acho que não – tranquilizou Claudine – Aquelas pessoas devem ter evitado o pior, com certeza.

- Ora, Sara, não vai ficar com peninha dele agora, vai? – perguntou Plinio – Ele não teve pena de você.

- Não é nada disso. Só estava tentando imaginar o tamanho do curativo dessa vez.

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Sara estava diante do encarregado de recursos humanos de uma metalúrgica. Ele examinava a ficha de solicitação de emprego que ela acabara de preencher:

- Estou vendo aqui que você só teve um registro com duração de apenas um mês... Porque foi demitida?

Acertei a cabeça do meu chefe com uma pedra.

- Foi redução de pessoal – respondeu ela lembrando-se das orientações de Claudine.

- Está me dizendo que lhe contrataram e um mês depois decidiram que tinham que reduzir o pessoal? – perguntou desconfiado.

- Isso mesmo – respondeu ela.

O homem encarou-a diretamente nos olhos e pôs-se a estudá-la. Quando a viu pela primeira vez, havia decidido que tinha a vaga perfeita para ela, mas agora... Sara permanecia impassível, não fornecia nenhuma pista do que estava escondendo. Ele pensava no que realmente havia acontecido. Ficou tentado a fazer-lhe mais perguntas para ver se ela caia em contradição, mas depois desistiu. Estava a anos naquela função e habituara-se às mais ardilosas mentiras que as pessoas diziam para conseguir um emprego. Ele colocou a ficha dentro de uma pasta e cruzou as mãos sobre a mesa:

- Sinto muito, Sara, mas não tenho nada para você no momento – informou ele amistosamente – Ficarei com sua ficha se surgir algo eu mandarei lhe chamar. Quem sabe não aparece logo uma vaga e...

- Quem sabe – repetiu ela apática. Depois se levantou e deixou a sala.

Mais tarde, Sara conversava com Claudine:

- Não adianta Claudine, com esse registro de apenas um mês na minha carteira, não vou conseguir nada.

- Então queime a sua carteira.

- O que foi que disse?

- Queime-sua-carteira – soletrou Claudine pausadamente – Queime e tire outra.

- E posso fazer isso?

- Claro que pode! Se perdesse não teria que providenciar outra?

- Acho que sim.

- Então está salva.

Sara tratou de providenciar outra carteira profissional no dia seguinte. Tinha que começar do zero. Comprar o jornal, recortar os anúncios e sair à procura de trabalho antes que acabasse por completo o pouco de dinheiro que ainda possuía.

Em posse do documento e dos anúncios, estava pronta para sair. Foi até seu armário, puxou a gaveta até o fundo e tomou um choque: O dinheiro desaparecera. Vasculhou tudo, e nada.

- Oh, não! Só me faltava essa!

Desceu as escadas correndo a procura da dona da pensão:

- D. Dirce, o meu dinheiro desapareceu do meu armário. Acho que fui roubada – disse ofegante.

- Como pode fazer uma acusação dessas? – perguntou a mulher secamente – Precisa primeiro ter certeza. Vai ver largou por ai em algum lugar...

- Não! – protestou Sara – Estava no fundo da minha gaveta, sei bem onde guardo meu dinheiro.

- Não adianta esbravejar! – gritou a mulher duramente – Não pode acusar ninguém sem provas. E depois, nunca houve um só caso de roubo na minha pensão.

- A senhora não vai fazer nada? – perguntou indignada.

- E o que espera que eu faça?

- Nada – Respondeu ela com amargura – Não podia mesmo esperar que fizesse alguma coisa.

Um pouco mais tarde, Plinio bateu à porta do quarto de Sara:

- Eu ouvi tudo, Sara. Como aquela gorda safada teve a coragem de ser tão insensível?

- Porque justamente comigo? – lamentou-se ela.

- Você não foi a única, já houve outros casos de roubos por aqui... Mas a elefanta não vai admitir nunca, é claro.

- Eu não sei o que vou fazer agora... Sem dinheiro, sem trabalho...

- Vamos esperar por Claudine. Juntos, saberemos o que fazer.

No final da tarde, as moças começavam a chegar. Sara olhava uma a uma e pensava se alguma delas era quem tinha roubado-a. Procurava indícios nos olhares, nas conversas ou algo novo que tivessem comprado. Claudine foi a última a chegar e foi logo a procura da amiga; estava sorridente.

- Nem imagina a boa notícia que eu tenho para você! – Claudine parecia mesmo radiante.

- Bem que estou precisando de uma boa notícia.

Claudine observou-a atentamente:

- O que aconteceu? ...Parece triste.

- Primeiro me dá a boa notícia, depois eu te conto tudo – disse Sara – Mas vamos conversar lá embaixo na varanda. Plinio está esperando por nós.

Sara trancou seu armário e o de Claudine e levou as chaves. Claudine estranhou a atitude da amiga, porém decidiu que falariam disso depois; queria logo dar a boa notícia:

- Soube hoje que a arquivista lá da construtora pediu demissão – disse Claudine excitada – Ela comunicou que vai se casar e deixou a vaga livre. Eu já falei de você com o chefe de recursos humanos.

- Acha mesmo que eu tenho uma chance?

- Claro que tem!... É certo que tem muitas candidatas, mas se eles gostarem de você poderão contratá-la... E depois não estão exigindo experiência anterior e não há muito trabalho de datilografia, só uma etiqueta ou outra que terá que datilografar.

- E quando devo me apresentar?

- Amanhã mesmo. Irá comigo pela manhã.

- Parabéns, Sara. – cumprimentou Plinio.

- Hei, Espere aí! Ainda não fui contratada, mas confesso que só a possibilidade de conseguir um emprego já melhora meu humor depois do dia péssimo que tive hoje.

- A propósito, vão me contar agora o que aconteceu? – perguntou Claudine – E pelas caras de vocês, já vi que não vou gostar nada, nada do que vou ouvir.

- Roubaram todo meu dinheiro – informou Sara sem rodeios.

- Foi por isso que trancou os armários?

- Foi.

- Desconfia de alguém?

- Não. Fui falar com D. Dirce achando que ela pudesse me ajudar, mas ela reagiu muito mal. Até pareceu que era eu a ladra!

- Eu ouvi tudo – disse Plinio – A elefanta gorda quer encobrir o roubo para evitar o escândalo como das outras vezes.

Claudine deu uma olhada para se certificar de que não havia ninguém por perto:

- Então vamos agir por conta própria – disse ela – Vamos armar a ratoeira e pegar a ratazana.

- Só que dessa vez, não farão nada sem mim, quero participar efetivamente – declarou Sara – Mesmo por que, acabo de ter uma idéia ótima!

Acertado os detalhes, os três se separaram para não chamar muita atenção e só tornaram a se encontrar durante o jantar, mas não tocaram mais no assunto.

Na manhã seguinte, Sara não conseguia decidir-se sobre o que vestir:

- Não acha que vão me achar uma caipira? – perguntou ela a Claudine.

- Não acharão se não se sentir como uma.

- O que quer dizer?

- Quero dizer que tem de abandonar esse complexo de inferioridade. Ser ou não caipira é antes de tudo um estado de espírito, e não ter nascido aqui ou ali – argumentou Claudine – Você é bonita, inteligente, tem desenvoltura. Só precisa ser mais confiante.

- Eu não sou como você...

- E claro que não, e nem precisa ser. Basta ser você mesma.

Claudine tirou um vestido rodado de fino tecido branco com bolas azuis do armário de Sara, e estendeu-o em cima da cama:

- Vista esse – disse ela – Lhe cai perfeitamente bem.

- Não acha muito esvoaçante... muito...

- Marcante?... Acho. E é por isso mesmo que lhe cai bem.

A construtora ocupava os três últimos andares inteiros de um grande edifício na Avenida Paulista. Sara deslumbrara-se com os ambientes amplos e arejados:

- Você não me disse que era tão luxuoso – resmungou ela ao descerem do elevador.

- O que esperava, uma linha de produção?

Claudine conduziu-a até a entrada do departamento de recursos humanos.

- Eu volto daqui – disse Claudine – O resto é com você, amiga.

- Estou nervosa – disse Sara estalando os dedos.

- Lembre-se do que eu lhe falei: seja você mesma. Na maioria das vezes, somos melhores do que achamos que somos. E os outros sabem disso.

Claudine desceu pela escada até o andar de baixo e rumou para a contabilidade, onde exercia a função de Secretária Júnior. Realizou algumas tarefas e subiu novamente a saída do departamento para esperar pela amiga. Sara estava lá dentro há mais de duas horas. Claudine, impaciente, decidiu voltar para contabilidade antes que seu chefe percebesse sua ausência. Nesse momento, Sara apontou na porta.

- Até que em fim! – exclamou Claudine – Pensei que não fosse sair mais!

- A culpa é sua – replicou Sara.

- Não entendi.

- Disse para eu ser eu mesma... Minha história é longa, não dá para ser resumida feito uma conversinha de elevador.

- Eu não acredito!... Contou sua história a ele?

- Contei, ué.

- E aí? Conseguiu a vaga pelo menos?

- Devo admitir que você tem razão, as vezes.

- É mesmo? Em que, por exemplo?

- Os outros sabem quando somos os melhores.

- Agora está muito metida para o meu gosto – disse-lhe Claudine dando-lhe uma cotoveladinha.

- Estou aprendendo... com você.


Naquela noite, Sara escreveu uma carta calorosa para tia. Tinha recebido carta dela há uma semana e ainda não havia respondido. Agora, porém, tinha boas notícias a contar.

Os dias corriam tranquilamente, Sara estava adorando o novo emprego; agora sabia por que Claudine gostava tanto de trabalhar na construtora. As outras moças eram amistosas e colaboradoras entre si; os homens educados e respeitadores. Limitavam-se a arriscar uma olhada ou outra quando elas transitavam pelos departamentos.

Sara matriculara-se num curso noturno de datilografia e ia direto do trabalho. Chegava atrasada para o jantar, mas Claudine guardava seu prato aquecido no forno. Certa noite, enquanto assistiam T.V., Sara subiu até o dormitório, e em seguida desceu e cochichou no ouvido de Claudine:

- Nossa ratazana mordeu a isca.

- Tem certeza?

- Absoluta.

As duas subiram sem chamar muita atenção. No dormitório, fingiam prepararem-se para dormir quando Arlete e Diana chegaram, uma após a outra. Claudine imediatamente correu até a porta, trancou-a e retirou a chave. Depois, dirigindo-se a elas disse objetivamente:

- Um maço de notas de dinheiro desapareceu do armário de Sara. Isso quer dizer que uma de nós três está em poder do dinheiro.

- Está nos chamando de ladras? – perguntou Arlete.

- Ainda não, mas é o que vamos descobrir em breve.

- Como sabe que não foi alguém de outro dormitório? – argumentou ela.

- Porque Claudine tem colocado as notas todos os dias antes do jantar e eu as retiro pela manhã quando todas ainda estamos aqui – respondeu Sara.

- E nesse período – completou Claudine – o armário tem ficado propositadamente aberto.

- E durante o jantar? – insistiu Arlete – Quem garante que alguma moça de outro dormitório não possa ter entrado aqui e roubado o dinhei

- Eu garanto! – exclamou Plinio saindo debaixo da cama de Sara – tenho vigiado todas que sobem e descem durante o jantar e quando estão na sala de T.V. E posso assegurar que nenhuma outra moça entrou aqui a não ser vocês.

- Eu não vou admitir esse tipo de acusação! – gritou Arlete ofendida – Isso que acabaram de dizer não prova nada!

- Tem razão – concordou Claudine – É por isso que vamos revistar o dormitório inteiro. Também não gostamos de acusar ninguém sem provas.

- Se não encontrarmos nada – assegurou-lhes Sara – pediremos desculpas pelo constrangimento e encontraremos outra maneira de resolver o caso.

Dizendo isso, os três começaram a vasculhar tudo cuidadosamente: Gavetas, bolsas, pertences, cada cantinho do dormitório.

- Hei! Não tem o direito de remexer nossas coisas! Vou chamar D. Dirce...

Eles continuavam a revistar tudo ignorando o protesto de Arlete. Diana sentada à cama, observava tudo calada.

Sara introduziu a mão dentro do bolso de um casaco, sentiu algo, e puxou para fora.

- Está aqui – disse ela.

Arlete levantou o braço em sinal de protesto:

- Um momento! – bradou ela – Como sabe que esse dinheiro é seu? Dinheiro é tudo igual!

- Nós anotamos o número das séries das notas – adiantou-se Claudine – Tudo que temos que fazer agora é conferir.

Os números bateram. Não havia mais dúvidas, era mesmo o dinheiro que haviam colocado como isca. Seguiu-se um embaraçoso silêncio no dormitório. Sara e Claudine trocaram um olhar frenético, tinham que ser cautelosas dali em diante. Claudine foi quem falou primeiro:

- Estamos esperando que você diga alguma coisa, Diana... Afinal o casaco é seu.

Arlete se adiantou na frente de Diana:

- Ela não vai dizer nada enquanto não tivermos certeza que isso não é uma armação de vocês.

Então Diana explodiu num choro descontrolado. Sara sentiu pena dela; das duas, ela lhe parecia a mais correta. Era também a mais tímida.

- Olha Diana – começou Sara – Nós só queremos entender... Você nunca nos pareceu uma pessoa capaz de fazer isso...

- Eu concordo com Sara – disse Claudine – Se estava precisando de dinheiro, podia ter pedido emprestado...

- Eu não fico com o dinheiro! – gritou Diana repentinamente – Eu não ficaria com algo que não me pertence... Jamais! – Estava com o rosto banhado em lágrimas.

- Então porque se apoderou dele? – insistiu Claudine – O que fez com ele?... Não estamos entendendo...

Diana levantou-se da cama, deu algumas voltas de lá para cá. Parecia relutante. Estava acuada, não via outra saída a não ser contar toda a verdade: o pesadelo que vinha vivendo a mais de um ano.

Ela voltou a sentar-se e começou a falar num murmúrio:

- Há pouco mais de um ano, eu conheci um rapaz e começamos a namorar. Ele me parecia uma boa pessoa e... Eu engravidei e quando ele soube, disse que não tinha nada a ver com isso e desapareceu.

- Até aí tudo bem – disse Claudine – Mas o que isso tem a ver com...

- Deixe-a acabar de contar – interferiu Sara

- ... Eu estava sozinha, não podia contar a minha família no interior... Meu pai morreria de desgosto. Então procurei D. Dirce, contei a ela e ela me levou a uma parteira e pagou o aborto – Ela fez uma pausa antes que pudesse continuar –...Desde então, ela vem me chantageando, abrigando-me a fazer coisas... Tenho roubado para ela.

Podiam esperar qualquer coisa, menos aquela revelação bombástica. Todos estavam pasmados. Claudine se mostrou mais chocada do que os demais:

- Eu não posso acreditar!... Que coisa mais repulsiva! – exclamou ela atordoada.

- Ela é ainda pior do que pensávamos – acrescentou Plinio.

- O que faremos agora, Claudine? – indagou Sara.

- Não sei... Temos de pensar cautelosamente...

- Não podemos apresentar queixa a polícia – argumentou Sara – É quase certo que ela desmentiria a história de Diana e não duvido nada que ainda a incrimine.

- Você tem razão – concordou Claudine – Temos que proteger Diana.

- Tem algo em mente? – perguntou Sara.

- Talvez. Vamos nos reunir amanhã antes do jantar e planejaremos o que fazer – decidiu Claudine – Mas temos de ficar de boca fechada por enquanto.

- Amanhã – afirmou Claudine determinada – Amanhã depois do jantar, nós a pegaremos. Agora vamos dormir.

No dia seguinte, as quatro subiram logo depois do jantar. Sara dirigiu-se à Arlete:



- Não precisa ficar se não quiser – disse ela – Se ficar, acabará se envolvendo.

- Já estou envolvida. Não posso simplesmente fingir que não sei de nada. Além do mais, já decidi que vou deixar a pensão.

- Depois de tudo que vai acontecer aqui hoje, é provável que todas nós tenhamos que procurar outro lugar para morar.


Claudine chamou a atenção de todas:


- Estão prontas?

- Estamos – responderam em coro.

- Quem vai lá embaixo?

- Eu vou – ofereceu-se Arlete.


Arlete desceu as escadarias correndo, estava aflita:


- D. Dirce! D. Dirce! – gritava pelos corredores.

- O Que foi menina! Que afobação é essa?

- Venha depressa até o dormitório. Sara e Claudine estão se atracando!.

- Diabos!... Mais essa agora!... Bem que eu avisei que muito esfrega, esfrega, um dia esfola! – resmungou a mulher subindo pesadamente as escadarias.

Ao chegar à porta, correu os olhos rudemente maquiados pelo dormitório e ficou furiosa. As moças estavam sentadas ordeiramente nas respectivas camas e pareciam calmas:

- Que brincadeira é essa? – falou ela em tom alto e desagradável – Pensam que eu não tenho mais o que fazer?

- Não é brincadeira, D. Dirce – adiantou-se Claudine – Temos um assunto urgente a resolver com a senhora. Entre por favor.

A mulher resolveu entrar, ia pagar para ver. Sara correu até a porta, trancou-a e se apoderou da chave.

- O que está acontecendo aqui? – perguntou ela.

- Já vai saber – respondeu Sara


Claudine levantou-se:



- A senhora vem obrigando Diana a roubar sob chantagem – afirmou ela taxativa.


A mulher empalideceu. Colocou as duas mãos à cintura:


- Isso é uma calúnia deslavada dessa... dessa...

- Não adianta negar, D. Dirce – disse Sara firmemente – Diana nos contou tudo, e entre ela e a senhora, é certo que acreditamos nela.


A mulher bufou em cólera.


- Então as quatro se uniram para me acusar, não é? Pois não vou admitir isso dentro da minha própria casa! Quero as quatro fora daqui agora mesmo...

- Sairemos com prazer – concordou Claudine tranqüilamente – Mas antes vamos à polícia dar queixa dos roubos.


O sangue esvaiu-se do rosto da mulher.


- Po... lícia – balbuciou ela – Não é necessário... sempre podemos entrar num acordo... Não quero o nome do meu estabelecimento nos jornais...

- E o seu retrato nas páginas policiais. Isso não deve ser nada bom para os negócios – prosseguiu Sara rodeando-a.


A mulher levantou o queixo imponente numa atitude desesperada de controlar a situação:


- Eu cubro os prejuízos, apesar dessas acusações serem falsa – disse ela lançando um olhar fulminante para Diana – Se vocês preferem acreditar numa pobre miserável que não tem onde cair morta a mim que tenho meu próprio negócio...

- Pare com esse cinismo! – explodiu Diana – Me obrigou a roubar Sara para dar a seu amante que se meteu em encrencas com dívidas de jogo!... Isso eu posso provar, gravei nossas últimas conversas com um pequeno gravador escondido em minhas roupas.


Era um blefe e todas sabiam disso, fazia parte do plano. Entretanto, pela palidez de D. Dirce, constataram que funcionou perfeitamente bem.

Claudine decidiu dar uma basta logo de uma vez para aquele teatro de péssimo gosto e partir para a segunda parte do plano:


- Aceitamos a devolução do dinheiro de Sara, mas não é só isso. Desistiremos de ir à polícia se aceitar nossas condições.

- Que condições? – perguntou desconfiada.

- Em primeiro lugar – disse Claudine – Vai ter que pagar um salário ao Plinio, mas não um salário qualquer, um salário decente.

- Mas...

- Espere até eu terminar! Depois dirá se concorda ou não. Em segundo, deverá tratá-lo com todo o respeito e nunca mais irá berrar com ele. Deverá dizer: “bom dia Plinio”, “obrigada Plinio” e assim por diante.

- Isso é uma brincadeira suponho...

- Não é, não. E tem mais: Deve elogiá-lo sempre na frente das pessoas. Dizer como ele arruma bem os dormitórios, limpa os banheiros e põe a mesa com tanto capricho.

- É bom lembrar, que também não poderá dar mais funções à ele do que será capaz de realizar – acrescentou Sara.

- Bem lembrado – disse Claudine – Agora, vamos a que diz respeito a nós.

- Eu não vou aceitar mais nenhuma condição! Isso é um abuso!

- É pegar ou largar – determinou Claudine.


Os olhos da mulher eram duas lanças prontas a atingi-las:


- Podem falar. Acabe logo com essa ladainha – disse ela soltando um suspiro de impaciência.

- Pois bem – disse Claudine – De hoje em diante, queremos fazer nossas refeições no dormitório... servidas pela senhora.

- E também queremos ter liberdade para entrar e sair sem controle de horário – acrescentou Sara.

- ... E isso inclui todas as outras moças também.

- ... E não queremos mais que nos dirija a palavra.

- ... A menos que seja extremamente necessário.

- ... E terá que variar o cardápio de vez em quando.

- ... Peixe na segunda e massas aos domingos.

- ... Acho que seria melhor...



- Chega!... Já chega com isso.



- Bem, eu acho que chega. – disse Claudine – O que acha, Sara?

- Por mim, está bom.

- Então é só.


- Eu... aceito – gaguejou ela – Mas não pensem que ficará assim por muito tempo! – concluiu em tom de ameaça, virou as costas e saiu.

Elas puderam finalmente respirar aliviadas depois que D. Dirce deixou o dormitório. Tudo saíra como o planejado.

De repente, Diana levou as duas mãos à face e se pôs a soluçar; o corpo todo chacoalhava freneticamente. Sara ajoelhou-se aos pés da moça a fim de consolá-la:

- Acalme-se Diana, não precisa mais chorar... Está acabado, ela teve o que merecia...


Diana descobriu o rosto. Estava inundado pelas lágrimas de tanto rir.



3 comentários:

  1. Mais um belo capítulo em que o suspance continua a marcar.
    Continue sua deliciosa e maravilhosa historia.

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  2. Olá!
    Mais uma guinada na vida de Sara. Vejamos o que virá po aí!
    Bjão,
    Adh

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  3. Olá Bia!!! Ansiosa por saber o que os proximos capítulos reservam... Bjusss

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco