terça-feira

Capítulo XIV

"É Preciso Ver os Anjos"



No hotel, Sara tomou um banho demorado e pediu um jantar leve. A caixa ainda estava à mesa de cabeceira, tal qual ela trouxera de Redentor. Olhava fixamente para ela com o coração aos pulos. Tinha buscado tanto por isso, e agora que estava ao alcance de suas mãos, sentiu medo da descoberta. Sabia que qualquer que fosse a revelação que estivesse lá dentro, estava, de alguma maneira, relacionada àquele crime. E pela primeira vez desde então, relembrou os últimos acontecimentos relativos à morte de D. Emília:
                   

Sara desceu as escadarias correndo a caminho do quarto de Sheila. Estava transtornada; lembrou-se que teve de parar a poucos passos para vomitar. Não suportou a imagem de D. Emília sentada à cama, os braços inertes ao longo do corpo, os olhos abertos e opacos. A camisola branca tingida com o sangue que escorrera do ouvido direito; e a arma do Dr. Rômulo, a mesma que ela tomara das mãos de Dora, estava jogada no chão.
                   
No quarto de Sheila o som da T. V. estava alto. Ela esmurrou, esmurrou, com toda sua força até que a porta abriu:
                            
-  Sara?!... O que aconteceu?
-  Chame a polícia... D. Emília... Ela foi assassinada.

                   
A policia chegou minutos depois. O detetive Valdir que presidia a operação questionou-as por quase uma hora e depois as dispensou. Sara foi para copa com Sheila, não se sentia disposta a assistir a retirada do corpo pelos médicos legistas. Sheila tentou localizar Marilyn pelo telefone, mas parecia que todas as amigas dela estavam no mesmo lugar, e incomunicáveis. Tentava agora localizar Dr. Rômulo, também não obteve sucesso:

-  Já tentei todos os lugares possíveis – disse ela – Não sei mais o que fazer para  encontrá-lo.
-  Alguma coisa me diz que não conseguirá – disse Sara.
-  Por que está dizendo isso?
-  Eu o vi fugindo da mansão quando encontrei D. Emília.
-  O que está me dizendo?? – Sheila arregalou os olhos.
-  Isso mesmo que você ouviu. Vi quando ele arrancou com o carro...


-  Ora, ora, então temos um suspeito! – Disse uma voz atrás delas.

Elas viraram-se abruptamente. O Detetive Valdir tinha entrado sem que elas percebessem.

-  Disse ainda pouco que não tinha mais nada a declamar, D. Sara... Ocultar fatos da polícia é crime, a senhora sabia?
-  Por acaso estava sendo interrogada oficialmente sem a presença de meu advogado? – perguntou ela.
-  Não, senhora... Mas quem mente uma vez, mente duas – ironizou.
-  Eu não menti, apenas disse que não tinha mais nada a declarar... ao senhor.
-  Em todo caso, é sempre bom lembrar que não deve deixar a cidade, pode ser chamada para interrogatório a qualquer momento.
-  Não vou me esquecer – disse ela secamente.

Ele saiu e as duas voltaram a ficar sozinhas.

-  Essa não! – desabafou Sara – Porque não fiquei com a boca fechada!
-  Ia ter que contar à polícia de qualquer maneira – argumentou Sheila – Não poderia ocultar uma coisa dessas, acabariam descobrindo.
-  Mas não assim, dessa maneira. Tinha que ser mais bem analisado. Se pelo menos você soubesse de mais alguma coisa...
-  Tudo que eu sabia já contei a eles – afirmou Sheila.
-  Você se importa em repetir tudo novamente? – pediu Sara – Talvez se lembre de algo que pode ser importante.
-  O que eu sei é que todos saíram pela manhã e permaneceram fora o dia todo. Até Feliciano saiu para levar o carro de D. Emília para revisão a pedido dela e só retornou depois que você já havia deixado a mansão. D. Marilyn chegou logo depois e comunicou que não jantaria em casa. Em seguida, pediu ao Feliciano que a levasse à casa de uma amiga jogar cartas, pois não queria dirigir à noite. Nessa hora, todos os outros empregados já haviam ido embora, então terminei com a cozinha e fui para meu quarto.
-  E que horas eram?
-  Quase oito da noite.
-  O carro do Dr. Rômulo estava na garagem? – perguntou Sara
-  Não sei, não deu para eu ver. Já havia escurecido.
-  Também não me lembro de ter visto quando voltei agora à noite, estacionei na entrada de serviços – disse Sara – Acha possível que ele possa ter chegado quando ainda estava na cozinha sem que você tenha notado?
-  Pode ser que sim, nem sempre escuto quando eles chegam. Ele pode ter chegado e ido direto para o quarto...
-  Ou direto para o sótão - acrescentou Sara.
-  Não, isso não. Eu teria ouvido o tiro.
-  Tem razão – concordou ela – Seja o que foi que aconteceu, sabemos que foi entre oito e nove e quinze da noite quando cheguei... Tempo mais que suficiente.
-  Pode não ter sido ele. Alguma outra pessoa pode ter entrado na mansão, uma tentativa de roubo frustada, talvez – argumentou Sheila.
-  Não acredito nessa hipótese – disse Sara – Um ladrão não subiria até o sótão, e além do mais, tranquei a porta quando saí.
-  Feliciano pode ter estado lá e se esquecido de trancar a porta – especulou Sheila.
-  E a arma?... Estava no cofre e ele não foi arrombado – disse Sara.
-  Tem razão.


Nesse momento, elas ouviram um tumulto vindo da sala. Marilim havia chegado e parecia estar em plena crise.

-  Vá socorrê-la Sheila, por favor – pediu Sara – Eu vou para casa, estou exausta.


Ao estacionar na garagem, Sara descobre apavorada que está sem sua bolsa. Devo ter deixado cair quando estava a caminho do quarto de Sheila. Tenho que voltar lá para apanhá-la ainda hoje, pois amanhã corro o risco de deparar com Dr. Rômulo.
                   
Ela decidiu subir para o apartamento e falar com as meninas antes de voltar à mansão. Isso daria tempo para concluírem os trabalhos por lá e não teria mais que deparar com a figura desagradável daquele detetive. Mas as gêmeas não estavam, tinham deixado um bilhete lembrando a mãe que estariam na festa de amigo secreto no sítio aquela noite. Aproveitou para tomar um banho recuperador e comer alguma coisa. Depois, ligou para Claudine e pediu a ela que comunicasse o Plínio. Pensou em ligar para o Leo, mas talvez não fosse uma boa idéia acordá-lo no hotel. Esperaria pela sua ligação ao amanhecer.
                   
                   
De volta à mansão, ela estava agachada vasculhando o canteiro de azaléias a procura da bolsa:

-  Está procurando por isso? – perguntou a voz forte que vinha de trás.


Sara virou-se e deparou com Dr. Rômulo com sua bolsa nas mãos. Estava com as roupas amarfanhadas e visivelmente embriagado. Ela pôde sentir o cheiro de uísque à distância.

-  Sim, eu... Devo ter deixado cair quando...
-  Quando me viu fugindo daqui, não foi isso que disse à polícia?
-  Eu não disse a eles. Estava falando com Sheila e o detetive Valdir ouviu por acidente – justificou-se.
-  Mas a senhora não tem dúvidas nenhuma que fui eu quem a assassinou, tem? – perguntou ele, aproximando-se dela.

Ele parecia convidá-la para um jogo de gato e rato. Talvez fosse melhor enfrentar tudo logo de uma vez:

-  Ouvi quando discutiram no sótão há poucos dias – disse ela – Não pode negar que lhe fez ameaças.
-  Então, me viu saindo daqui essa noite e tirou suas conclusões? – Estava mais próximo agora, parecia cercá-la.
-  O que mais eu poderia pensar?... A arma é sua, estava trancada no cofre em seu escritório...
-  Ela sabia o segredo daquele cofre! – gritou ele.
-  Deus do céu, ela era paralítica!
-  Mas a senhora, não! Não sei como fez isso, mas arrancou o segredo dela, não foi?
-  Eu?? – gritou horrorizada
-  Sim, a senhora!

Sara estava ofegante. Aquela acusação a desmantelara por completo. Tinha que ir embora dali o quanto antes, mas ele queria mais:

-  É tão suspeita quanto eu Sra. Romanelli...  Disse isso à polícia?
-  Está embriagado, não sabe o que está dizendo... Eu não teria motivos para...
-  Que tal meio bilhão de Dólares?
-  Dólares... do que... está falando... – gaguejou ela.
-  Do testamento, Sra. Romanelli! É disso que estou falando!
-  Testamento?!...
-  Não banque a boa moça comigo que não vai funcionar... Vai tentar convencer-me que não sabia que ela incluiu-a no testamento como sua herdeira?
-  Eu não sei nada de testamento algum! – declarou veemente – E não acredito no senhor, está blefando...
-  Porque não pergunta ao seu marido? Ele sabia de tudo... Por falar nele, onde ele esteve há algumas horas?
-  Leo está no Rio... fazendo um curso... não poderia... – disse meio confusa em pensamentos – Mas o que é que eu estou falando... Não vai conseguir me confundir!
-  A senhora é quem não vai botar as mãos nesse dinheiro, pois vou contestar aquele testamento!...  Saiba que tenho meios para provar na justiça que tipo de pessoa é. Não conseguiu nada como amante de meu pai, então minha mãe lhe pareceu uma presa fácil, não foi?... Aquela velha idiota! Julgava-se acima do bem e do mal, e, no entanto, se deixou enganar pela primeira espertinha que cruzou seu caminho. Mas não cante o hino da vitória, Sra. Romanelli... Não ainda!

Sara estava atordoada com aquelas palavras. Ele tinha enlouquecido. Todos tinham enlouquecido... Talvez fosse ela quem estava enlouquecendo...

-  Eu... não sei o que está acontecendo aqui, mas certamente o senhor também não sabe... Como pode chamar-me de amante de seu pai? Ele já havia morrido há anos quando vim trabalhar na mansão...
-  Como explica todas aquelas bugigangas que estão lá em cima?
-  Do que está falando agora? – perguntou debilmente.


Ele tomou-a pelo braço com violência e arrastou-a por todo o living. Depois, pela escada acima, e, finalmente, parou diante da porta. Arrombou-a com um dos pés e empurrou-a para dentro do quarto.

-  É disso que estou falando!
                   
Demorou um tempo para que seu cérebro pudesse processar o que os olhos viam. A primeira impressão foi de que alguém tivesse preparado uma armadilha para incriminá-la.

-  O... que é isso? – gaguejou.
-  Eu é que lhe pergunto – disse ele – Demorei um pouco para me lembrar onde tinha visto esse nome. Até o dia em que a vi pintando no jardim com minha mãe, e então me lembrei.

Lentamente ela começou a dar voltas em torno das paredes do quarto do Dr. Burdon. Os seus quadros, todos aqueles que ela havia pintado numa época difícil de sua vida, estavam ali dependurados naquelas paredes de alto a baixo. Inúmeros outros estavam no chão. Um ocupava lugar de destaque: o das gêmeas ainda bebês.
                   
Não era uma armadilha, era uma infeliz coincidência e podia ser acusada de assassinato por isso!

-  Por isso ele desapareceu tão repentinamente – murmurou para si mesma.

                   
Nesse momento, sentiu o odor forte de mofo penetrando em suas narinas e começou a enjoar. Tinha que ir lá para fora, precisava de ar puro ou poderia desmaiar a qualquer momento.
                   
Ele seguiu-a por todo o trajeto de volta, exigia uma explicação:

-  Não pode ir embora assim sem me dizer nada!
-  Não importa o que eu diga, não vai acreditar mesmo.
-  Está confessando sua culpa Sra. Romanelli!

Ela parou, virou-se e encarou-o de frente:

-  O senhor também sabe como ninguém tirar conclusões precipitadas. Mas está enganado se acha que eu me importo com o que pensa à meu respeito. Eu não ligo à mínima para o que pensa!... Eu pintei sim, aqueles quadros. Pintei e vendi-os para alguém que dizia apreciar o meu trabalho. Para mim, ele era apenas Seu João, um desconhecido que apareceu do nada e desapareceu dois anos depois sem deixar nenhuma pista.

Ele sorriu ironicamente.

-  Meu pai não era idiota para comprar um monte de quadros que não valiam nada... Só se tivesse um bom motivo para isso.
-  Não me sinto insultada ouvindo isso. Eu só aprecio opiniões de pessoas de bom gosto – concluiu ela seguindo seu caminho

Sara entrou no carro e deu a partida no motor:

-  Tem mais uma coisa – disse ela antes de arrancar – Não precisa perder seu tempo em pedir a anulação do testamento. Alberto irá tratar dos trâmites legais da doação.
-  Doação? Que doação?
-  Da parte que me cabe. Vou doá-la ao senhor.

Ele olhou-a intrigado.

-  ... Mas com uma condição: Quero sua autorização para tratar do sepultamento de D. Emília. Posso contar com isso?
-  Eu nuca vou entender você – afirmou ele.
-  Ainda não me respondeu – disse Sara.

Ele estudou-a por alguns segundos:

-  Pois muito bem – disse ele por fim – faça como quiser.
                   
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Sara enfiou-se debaixo dos lençóis, mas não conseguiu pregar o olho. Escutou as gêmeas chegar, os últimos comentários sobre a festa e a seguir, o bater de porta do quarto. Faltava pouco para amanhecer, esperaria Leo ligar e depois seguiria para o Instituto Médico Legal.
                    
Falou por uns quinze minutos com o marido, depois escreveu um bilhete para as gêmeas que ainda dormiam.  Preparava-se para sair quando o telefone tocou. Era Plínio:

-  “Sara, até que enfim consigo encontrá-la” – disse ele – “Estou aflito, não sei se cancelo a festa de inauguração...”
-  Não cancele, apenas modifique – disse ela.
-  “Mas qualquer coisa que fizermos, não fará sentido sem D. Emília...”
-  Ela irá.

                   
O velório aconteceu na enfeitada sala de cinema. Sem peça teatral, corte de fita, apresentação da placa de bronze que permaneceu coberta com um manto preto em sinal de luto. Entre os presentes, estavam uns poucos amigos e parentes dos pacientes, além do corpo de médicos e enfermeiros. A família de Plinio compareceu em sua totalidade.  Dr. Rômulo, D. Marilin, Dr. Salgado e os demais empregados chegaram pouco antes de sair o cortejo e lhes foi concedido a primeira fileira de bancos. Um jovem médico proferiu um comovido discurso e terminou por dizer:

“Essa mulher, apesar de pertencer a classe dos mais favorecidos, não fechou os olhos diante dos fatos. Mulher de alma nobre e generosa, mostrou que se importava com aqueles que não tiveram a mesma sorte. Provou que pertencia ao povo, e hoje não poderia estar em outro lugar, senão, no meio do seu povo para seu último Adeus.”

4 comentários:

  1. Prezada Bia, que lances sensacionais na história. Não vejo a hora do desenlace.
    Grande abraço,
    Adh

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  2. Sempre venho aqui ler as postagens, gosto muito de tudo!
    Um feliz natal e um ano novo cheio de realizações que deus esteja todos os dias de vossas vidas vos iluminando, que a saúde e a paz sejam o maior presente, são os votos de Arturo e família.

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  3. Feliz Ano Novo, Bia, espero que com boas notícias! Entre elas, o livro!!!
    Abç,
    Adh

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  4. Nossa Bia! Momentos emocionantes... Ansiosa pelo desfecho dessa história! Bjusss

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco