quinta-feira

Capítulo VIII

"É Preciso Ver os Anjos"




Dr. Rômulo examinava uns papéis em seu escritório, Sara aproximou-se da porta sem se fazer notar:

- Dr. Rômulo... O senhor mandou me chamar?
- Ah, sim, entre, Sra. Romanelli.

Ele juntou tudo, colocou num canto da mesa e dirigiu-se a ela:

- Quanto tempo trabalha aqui Sra. Romanelli?
- Um ano e três meses.
- Tem férias vencidas, portanto?
- Sim senhor.
- Quando pretende tirá-las?
- Estive pensando em não tirá-las... Pelo menos por enquanto.

Ele fitou-a com olhos questionadores.

- ... Sheila vem me cobrindo bem nos finais de semana, mas trinta dias é muito tempo...
- Eu pensei em contratar uma substituta para a senhora...
- Não! – exclamou Sara impulsivamente – Quero dizer, acho que D. Emília não está preparada para ficar com outra pessoa e receio não ser uma boa idéia.

Ele estudava-a tão atentamente que ela sentiu-se num microscópio.

- Porque está fazendo isso? – perguntou ele – Não me parece uma pessoa dissimulada, interesseira, e, no entanto, tem operado alguns milagres por aqui. Até conseguiu transformá-la numa pessoa generosa... O que pretende afinal?

Ela sentiu o rubor queimar-lhe as faces:

- Eu não entendi sua pergunta – mentiu.
- Ora, Sra. Romanelli, ninguém sai por aí presenteando os empregados com um automóvel zero quilômetro... Também não me parece normal que um empregado abra mão do que lhe é de direito em prol do seu empregador.

Agora ele fora direto ao ponto. Julgava-a uma espertinha qualquer dando o golpe numa pobre velha paralítica!

- Acho que não ficou claro um ponto – disse tentando manter a calma – Eu não estou abrindo mão de minhas férias em prol do meu empregador, que no caso, é o senhor, e sim por D. Emília. E quanto ao automóvel, não a induzi a dar-me, nem mesmo estava disposta a aceitá-lo. Não hesitaria em devolvê-lo agora mesmo.
- Tranqüilize-se, Sra. Romanelli. O dinheiro é dela, pode fazer uma fogueira com ele, ou comprar o afeto de algumas pessoas... Eu realmente não me importo.

Sara respirou fundo procurando controlar-se, pois não tinha idéia qual rumo tomaria aquela conversa, mas pressentiu que estava prestes a tocar num vespeiro.

- Está sendo injusto comigo e com ela... Não precisou comprar meu afeto, ela o tem gratuitamente. Mas sei que o senhor não é capaz de entender isso.

Ele deixou escapar um suspiro de arrependimento.

- Desculpe-me... Não foi minha intenção ofendê-la – disse em voz baixa – É a mim que ela odeia não o resto do mundo.
- Não sabe o que está dizendo, uma mãe não pode odiar um filho, é contrário a própria natureza... O amor pode ter se perdido em algum trecho do caminho, mas ainda está lá. Devem resgatá-lo.

Sara notou o impacto que essas palavras surtiram nele. Ele levantou-se e foi até a janela. O olhar parecia perdido no horizonte.

- Ela lhe contou, não foi?
- Contou?... Não...
- Nem sempre foi assim... Eu era um garotinho, mais ainda me lembro do seu carinho. Ela contava histórias para eu dormir como qualquer outra mãe. Dava-me um beijo de boa noite e ficava sentada aos pés da cama, olhando-me como se eu fosse a coisa mais importante do mundo... A maior conquista da sua vida! Gostava de exibir-me para suas amigas como um troféu, e vivia repetindo o quanto se orgulhava do filho... O tão esperado herdeiro dos vaidosos Burdons! – concluiu ele com um sorriso débil nos lábios.
- Quando foi que tudo isso acabou? – perguntou Sara.
- As brigas com o meu pai foram se tornando cada vez mais violentas, e um dia ela entregou-me a uma governanta alegando que não tinha mais paciência com crianças. E eu tornei-me órfão de mãe viva... Fui criado por essa governanta e foi tudo que eu tive.
- E seu pai?
- Ele tentava compensar-me de todas as maneiras possíveis... Meu pai me amou muito, mas não me deu respostas. Dizia que eu não era culpado, que era a ele que minha mãe odiava... Hoje eu sei que ela estendeu esse ódio através de mim. Para ela, eu represento a continuação dele.

Aquelas revelações diziam muito, mas não a convencia totalmente. Eram simplistas demais para justificar tantos desencontros e desafetos. Mas ela descobrira uma coisa: ele não podia contar-lhe mais nada, pelo simples fato de que também não sabia. Nem mesmo a amante do pai ele mencionara.

Ele voltou a sentar-se. Questionava-se o que o levara a fazer tais confissões a uma quase-estranha. Que poderes mágicos ela possuía para fazê-lo sentir-se tão à vontade ao ponto de revelar-lhe coisas que não havia revelado nem mesmo à sua mulher?

Sara avaliou o quanto ele estaria constrangido e pode compreendê-lo:

- Pode não acreditar, mas eu realmente me interesso pelo bem estar de vocês dois – disse ela com sinceridade – ... Quando vim trabalhar aqui, não fui capaz de limitar-me a cumprir somente as funções as quais o senhor me delegou. Eu me envolvi emocionalmente com D. Emília, e julguei que podia fazer mais por ela do que simplesmente vigiá-la. Meu interesse em conhecer os fatos não é movido por uma curiosidade pura e simples... E eu lhe sou muito grata por ter confiado em mim e ter me revelado coisas tão íntimas.

Ele observava-a com simpatia. Não conseguia compreendê-la plenamente, mas admirava-a. Não pelo bem que vinha fazendo à sua mãe, mas pela sua audácia, pelo seu quase atrevimento. Ela não era uma empregada qualquer, havia nela qualquer coisa extraordinariamente inexplicável, mas que os colocavam no mesmo patamar, apesar das diferenças sociais.

- Eu vou providenciar para que sejam pagas suas férias juntamente com o próximo salário.
- Obrigada.

Sara levantou-se e dirigiu-se até a porta.

- Sra. Romanelli! – chamou-a. – ...Acredito que esteja ajudando minha mãe sem nenhum interesse, mas não queira conseguir o impossível. Não force nenhuma aproximação entre eu e ela... Eu já refiz o percurso de volta por todos os trechos do passado e não havia nada a ser resgatado.

Sara fitou-o em silencio por um momento. Depois, assentiu com a cabeça e saiu.

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D. Emília estava deitada na cama, Sara flexionava suas pernas, uma de cada vez:

- Não se sente cansada de fazer isso todos os dias? – perguntou D. Emília.
- Eu não, e a senhora?
- Eu não sinto nada, como poderia me cansar?

Sara parou por um instante para examinar as pernas de D. Emília:

- Notou como os músculos estão ficando mais fortes? – perguntou ela tocando-lhe com as pontas dos dedos.
- Eu não consigo ver nenhuma diferença.
- Porque não deixa de ser tão ranzinza e concorda comigo pelo menos uma vez?
- Se eu não provocá-la, corremos o risco de cairmos no tédio.
- Eu já suspeitava disso.

Ela colocou D. Emília na cadeira e começou a servir-lhe o dejejum.

- Ainda não tomei as cápsulas – lembrou D. Emília
- Não precisa mais dessas vitaminas, já toma banho de sol todos os dias. Porque ainda insiste em tomá-las?
- Não sei. Acho que é o hábito..
- Um dia desses vou levá-la ao médico.
- Nem pensar! Não estou doente.
- Sei que odeia médicos, mas um check-up não custa nada, e o melhor remédio ainda é a prevenção.
- Eu tenho uma saúde de ferro, não foi assim que disse? Pois bem, se eu me sentir doente eu lhe aviso.
- Promete?
- Palavra de escoteiro! Sara...
- Hum...
- O que vamos fazer agora que o inverno chegou?
- Vou pensar em alguma coisa.
- No ano passado, disse que não podíamos cuidar das plantas porque elas dormem nessa época do ano, e acabamos vendo T. V. por três meses.
- Isso não é verdade – retrucou Sara – Passeamos algumas vezes. Fomos ao teatro, ao cinema... E conversamos muito também. Mas podemos fazer algo diferente hoje.
- O que, por exemplo? – perguntou D. Emília animada.
- Poderia levar-me para conhecer o seu quarto.

Ela contraiu-se na cadeira.

- Meu quarto é aqui.
- Sabe que estou falando daquele que está trancado há anos lá embaixo.
- Não há nada lá que valha à pena ser visto – disse ela driblando o tom de voz.
- Sheila me contou que ainda está do mesmo jeito que a senhora deixou. E que há uma verdadeira coleção de vestidos de noite que usou nas décadas de cinqüenta e sessenta.
- Sheila é uma linguaruda!
- Ela não fez por mal, eu é que estava curiosa. Fico imaginando quantas coisas belas a senhora guarda naquele quarto... Não quer me mostrar?

D. Emília depositou o copo de suco de laranja em cima da mesa e girou a cadeira um pouco para a direita.

- Não sei se estou preparada para entrar lá.
- Disse a mesma coisa quando estava para deixar o sótão, e no entanto, enfrentou tudo com coragem – insistiu Sara.

Ela ainda hesitava.

- O elevador não tem parada no piso dos quartos, como chegaremos até lá? – argumentou ela.
- Feliciano a carrega pela escada e eu levo a cadeira – propôs Sara.

D. Emília assentiu com a cabeça:

- Está bem. Iremos após o almoço – concordou ela e depois começou a rir.
- O que foi? – perguntou Sara intrigada.
- Você... Pediu para eu 'levá-la' ao meu quarto. Não é engraçado?

Sara procurou por Feliciano na hora do almoço. Ele estava na garagem encerando o carro de D. Marilin:

- D. Emília vai entrar lá? – ele arregalou os olhos.
- Eu pedi a ela. Porque está tão espantado?

Ele tentou disfarçar:

- Por nada... é que faz tantos anos... Ela jurou que não entraria mais naquele quarto desde que...
- Desde que?...
- Desde que ficou paralítica – completou ele.

Sara concluiu que a paralisia poderia ser o elo que estava faltando; e que Feliciano sabia tudo a respeito.

- Feliciano, trabalha há muito tempo para os Burdons, não é mesmo?
- Quase cinquenta anos. Casei e enviuvei duas vezes e ainda estou aqui – disse ele com uma dose de orgulho na voz.
- Sabe como D. Emília ficou paralítica, não sabe?
- Eu... não...
- Acha que eu tenho feito mal a ela?
- Não, de maneira nenhuma! Ela nunca esteve tão bem...
- Então porque não me conta acerca da paralisia? Ainda tenho vinte minutos de horário de almoço.

Ele apanhou um feche de estopa e começou a esfregar entre os dedos das mãos, nervosamente. Sara aguardava que ele começasse a falar.

- Naquela noite – começou ele – D. Marilin começou a passar mal, estava no sétimo mês de gravidez da menina Dora. Dr. Rômulo estava no exterior, tratando de negócios e o Dr. Burdon ainda não havia chegado da tecelagem... Eu fui sozinho levar D. Marilin para a maternidade, pois D. Emília se recusou a me acompanhar e subiu para o seu quarto. Etelvina, a antiga copeira, terminava com a louça do jantar quando Dr. Burdon chegou e perguntou por todos. Ela contou-lhe tudo, inclusive que D. Emília recusara-se a acompanhar a nora para a maternidade. Ele ordenou que ela se retirasse para seus aposentos e subiu furioso para o quarto da esposa.

Feliciano fez uma pausa, necessitava de coragem para continuar. Mas Sara tinha urgência de conhecer o resto daquele relato:

- E o que aconteceu no quarto? – perguntou impaciente.

Feliciano suspirou:

- Uma fatalidade. Ou melhor, duas fatalidades.
- Como assim?
- Quando cheguei, vi o carro do Dr. Burdon na garagem e fui procurá-lo para dar a notícia que a menina Dora havia nascido prematura e o estado dela era delicado... A neta era tudo o que ele mais queria nesse mundo...

Nos olhos de Feliciano, duas lágrimas pareciam teimar em rolar.

- ... Como não o encontrei em seu quarto, bati no quarto de D. Emília. Então, ouvi choro dela e entrei – Feliciano enxugou o suor da testa com a estopa suja de cera – ...Ela estava no chão sem poder ser mexer. Do outro lado do quarto, estava Dr. Burdon estirado, morto.
- Mas afinal, o que aconteceu naquele quarto? – perguntou aflita.
- D. Emília me contou que eles discutiram, ele a acusou de tramar a morte da criança, uma vez que era a única pessoa na casa a socorrer D. Marilin, e se recusou... Dr. Burdon era cardíaco e teve um ataque. Ela me contou que tentou buscar seus remédios em seu quarto, tentou chegar até o telefone, mas não sentia as pernas. Gritou por Etelvina, mas ela não ouviu... Ela permaneceu lá, sentada no chão, por mais de trinta minutos assistindo o marido morrer com olhos acusadores fixos nela.
- O que aconteceu depois?
- Dr. Rômulo foi chamado. Com a filha em estado crítico no hospital, ele enterrou o pai. A relação dele com a mãe que já era ruim ficou pior... Ele acusou-a de simular a paralisia para não socorrer o pai e deixá-lo morrer. “Assassina! Você queria vê-lo morto!” gritava Dr. Rômulo desnorteado. D. Emília gritava que ele nunca deveria ter nascido e que era filho do mal...
- Santo Deus!... Eu estou perplexa! Agora posso entender o porquê de tanto ódio... Agora eu sei por que ela escolheu se trancar lá em cima...
- Dias depois – continuou Feliciano – D. Emília despediu Etelvina e ordenou que todas as fotografias do Dr. Burdon fossem tiradas da casa e queimadas, mas Dr. Rômulo guardou-as no quarto que o pai ocupava. Depois, ela contratou um arquiteto para modificar o sótão e eu a carreguei lá para cima de onde ela só saiu com a senhora.
- Dr. Rômulo nunca esteve lá?
- Umas duas ou três vezes, somente. Ele tentou uma aproximação anos depois, chamou alguns médicos para ela, tentou convencê-la a sair, mas nada deu resultado... Nada a fazia voltar atrás, só pensava em pegar sua cadeira e rolar escada a baixo, ou cortar os pulsos com os talheres. Tentou envenenar-se com tranquilizantes e também jogar-se pela janela. Parece ter desistido do suicídio agora que a senhora está aqui.
- Tudo isso é muito triste...
- Agora a senhora pode avaliar o que fez por aqui. É uma enviada de Deus, D. Sara... Não tenho dúvidas quanto a isso.

Sara abaixou a cabeça pensativa. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Sentia-se estranha.

- Você acredita em destino, Feliciano?
- Eu acredito, a senhora não?
- Acho que eu acredito em justiça.
- Eu também penso que os culpados devem pagar.
- Não estou certa se existem culpados nessa história... Parece-me que todos são vítimas.

Sara tinha que refazer-se para poder voltar ao sótão. Não queria que D. Emília notasse quão chocada estava. Por isso mesmo, fez um tipo de pacto de silêncio com Feliciano; não mais voltariam a tocar naquele assunto.


O quarto de D. Emília era encantador: amplo, arejado e uma atmosfera romântica pairava no ar. Os móveis eram brancos e produziam uma combinação harmoniosa com o rosa-antigo das poltronas e cortinas. Na penteadeira, adornos como espelho de mão e escovas de cabelos dourados estavam cuidadosamente colocados em meio a frascos de perfumes, alguns pela metade, outros quase no fim.

Sara lançou um olhar para a mesa de cabeceira. Além do Abajur, um livro com uns óculos de leitura sobre ele repousava estrategicamente próximo à cama; parecia sugerir que alguém voltaria a qualquer momento para continuar a leitura. Todo o aposento estava impecavelmente limpos. Sara sabia que Sheila entrava lá duas vezes ao mês para fazer a faxina e presumiu que D. Emília, possivelmente lhe dera ordens para manter tudo exatamente no mesmo lugar.

No closet, manequins vestiam os trajes de gala que D. Emília vestira nas mais diversas ocasiões sociais. Ela apresentava-os um á um a Sara com um breve comentário:

- Este vestido eu usei em 1952 numa recepção que oferecemos à Condessa Margarith – disse ela referindo-se a um vestido branco, longo, com o corpete todo bordado em pérolas e lantejoulas.
- E esse azul? – perguntou Sara.
- Esse... Deixa eu me lembrar... Ah! Foi em 1958. Eu usei-o no Teatro Municipal para a apresentação de um balé russo. Foi um grande acontecimento na cidade.

Sara notou o saudosismo naquelas palavras. Ela estava emocionada, porém tranquila. Era como se descobrisse de repente, que havia momentos de grande satisfações à serem recordados, não somente acontecimentos sombrios.

- Porque guardou todos os vestidos? – quis saber Sara.
- Eu não guardei todos, só os que foram significativos para mim.
- Momentos felizes?
- E infelizes, também. Está vendo aquele ali vermelho com golas brancas? Eu estava usando-o quando descobri sobre a amante de meu marido. Eu nunca mais o usei, mas mantive-o bem ao alcance das minhas vistas, para nunca mais me esquecer que o homem ao qual entreguei a minha vida e a minha juventude, havia me traído... E nunca me amara como me fazia acreditar.
- Como foi que descobriu?
- Ouvi uma conversa por acaso entre dois funcionários antigos da tecelagem e subornei-os a me contar tudo que sabiam.
- E eles aceitaram prontamente o suborno?
- Nem precisei de muitos esforços. Você não imagina o que as pessoas são capazes de fazer por dinheiro.

Sara não tencionava deixá-la desenterrar velhos rancores e se sentir amargurada.

- E o que tem aqui dentro? – perguntou ela referindo-se a uma caixa redonda forrada com papel florido.
- Abra e veja.

Sara tirou cuidadosamente a tampa. Dentro havia um chapéu cinza claro e um par de luvas de camurça da mesma cor. Ela retirou-os da caixa, colocou o chapéu em sua cabeça e mirou-se no espelho. Olhava petrificada para sua imagem refletida.

- O que foi, Sara?
- Nada... foi só uma lembrança. Não importa – disse ela retirando o chapéu e recolocando-o na caixa.
- Não quer me contar?... Não me conta quase nada a seu respeito – cobrou D. Emília – Me faz acreditar que não sou boa ouvinte.
- Não é isso... Não há muitas coisas interessantes na minha vida que valha à pena serem lembradas – argumentou ela – Valem mais à pena serem esquecidas...

D. Emília fitava-a insistentemente

- ...Eu devia ter uns nove anos, mas ainda me lembro como se tudo tivesse acontecido ontem. Eu voltava da escola, quando vi uma mulher saindo de nossa casa... Era muito elegante e estava usando luvas e chapéu como esses aqui. Quando entrei em casa, encontrei minha mãe chorando. No dia seguinte, deixamos a casa, a vida tranquila que tínhamos e rumamos para um lugar horroroso, onde passamos por todas as formas de sofrimentos imagináveis... Minha mãe foi assassinada lá. Ela nunca me contou, mas eu sei que tivemos que fugir por causa daquela mulher.

D. Emília mostrou-se pesarosa às revelações de Sara:

- Quem era a tal mulher? – perguntou.
- Eu não sei. Minha mãe nunca me contou. Acho que quis me poupar.
- Quem assassinou sua mãe?
- Houve um conflito por causa da posse de umas terras e ela se colocou na frente de fogo para defender os posseiros. Era gente humilde e trabalhadora contra poderosos... Foi atingida por uma bala. Morreu no dia seguinte na sala de curativos do posto de saúde que ela mesma construíra para os posseiros.
- Que idade você tinha quando isso aconteceu?
- Quatorze anos.
- Uma criança ainda... Como deve ter sofrido...
- Sim, muito. Mas eu não quero mais falar sobre isso – decidiu ela – Viemos aqui atrás de diversão e é o que vamos fazer. Mostre-me seus sapatos... Não! Mostre-me seus perfumes. Quero saber que tipo de fragrância a senhora usava.

D. Emília exibia sua coleção de perfumes enquanto revelava suas mais raras procedências: Franceses, italianos, orientais. Sara admirou-se ao constatar que a maioria dos amadeirados ainda conservavam o seu aroma com o mesmo frescor.

Havia um quadro fixado numa das paredes coberto com um lençol. Sara puxou-o num repente. Um retrato a óleo de D. Emília jovem vestindo um magnifico vestido verde esmeralda, encheu-lhe os olhos.

- É de um pintor austríaco – informou D. Emília.
- Sempre soube que a senhora era belíssima!... E ainda é.
- Não me faça rir, Sara!
- Uma fruta não perde a beleza só porque amadureceu. Ao contrário, ganha nova cor e aroma que a deixa mais sedutora ainda.
- E o que diria de uma fruta podre?
- Uma fruta podre está morta e a senhora está viva. Mas sabe que esse óleo me deu uma grande idéia? Já sei o que vamos fazer nesse inverno: Vamos pintar!

D. Emília fitava-a com uma expressão incrédula.

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Sara descarregou cavaletes, telas, tintas e pincéis na garagem e subiu para o sótão:

- Eu ainda acho que devemos desistir dessa idéia – insistiu D. Emília.
- Vamos descer logo e aproveitar a luminosidade da manhã.
- Mas está muito frio lá fora.
- Não vamos pintar ao relento. Arrumei um local na estufa, lá é bem aquecido e podemos aproveitar a luz que penetra pelas vidraças.
- Pintar exige talento, Sara, e eu não possuo nenhum!
- Como sabe? Nunca tentou.

Sara abriu os cavaletes e preparou as paletas. Folheou uma revista e optou por um tema bem simples: Um lago de águas claras no primeiro plano, e no fundo, uma vegetação tropical com uma casinha ao longe emoldurada pela imensidão do céu.

Colocou a tela no cavalete e a revista logo acima:

- Antes de tudo, tem que pegar o carvão vegetal e delinear os traços com simplicidade: O lago, a casa, e o horizonte. No momento de pintar, não se preocupe muito com as formas, concentre-se na cor e nos tons. Essa gravura servirá somente para orientá-la, não tente fazer uma cópia fiel, pois ficará pesada e sem graça. Omita certos detalhes e fixe-se no que mais lhe chamar a atenção. Deve lembrar-se que uma imagem se forma pelo jogo de sombra e de luz...
- Está falando em grego comigo.
- ... As cores quentes, como os vermelhos, amarelos e alaranjados, aproximam as imagens. Já as cores frias, como os azuis e violetas, dão profundidade. Dê pinceladas curtas e soltas para que a pintura, depois de pronta, tenha leveza e uma aparência fresca.

D. Emília segurava o carvão, indecisa:

- Por onde começo?
- Por onde quiser. O mais importante é prestar a atenção nos tons na hora de começar a pintar. Observe onde há luz e onde há sombra e vá preparando as misturas de cores, escurecendo ou clareando determinada cor com as tintas que eu coloquei na paleta... E solte-se, D. Emília, não se preocupe com o resultado, não temos nenhum júri de julgamento aqui!

Quando terminou o desenho, ela mergulhou o pincel na tinta e começou a colocá-la na tela com mãos trêmulas.

Sara fixou uma tela em seu cavalete e começou a esboçar o bosque de pinheiros, olhando atentamente para o modelo através da vidraça. De quando em quando, dava uma olhadela para o trabalho de D. Emilia sem que ela notasse. Deixe que suas emoções dirijam suas mãos – lhe dissera Seu João e ela acreditava que isso era realmente possível. Por isso mesmo, resolveu não dar muitos palpites no desempenho de D. Emília, mas estava ansiosa para ver o resultado.

Permaneceram por um longo tempo caladas; só o farfalhar de pássaros voando lá fora entre os pinheiros, rompia o silencio. D. Emília parou por um momento para se dirigir a Sara:

- Pode colocar um pouco mais de verde para eu pintar os arbustos?
- Ainda há tinta na sua paleta.
- Mas acabou o verde.
- Então pinte de outra cor.
- Pintar arbustos com outra cor que não o verde? – admirou-se.
- Foi isso mesmo que eu disse. A arte não tem nenhum compromisso com a realidade, só com os nossos sentimentos e nossa imaginação. Representar com a cor, pode revelar muito mais de nós mesmas do que simplesmente colorir.
- Sara...
- Hum...
- Eu não sei o que vai sair, mas eu estou adorando fazer isso.


Quando D. Emília anunciou que havia terminado, Sara fez uma avaliação do resultado: Ela havia pintado um primeiro plano ardente, como num dia ensolarado. Contudo, pintou o céu de um azul escuro, denso e profundo, típico de uma tempestade eminente.

Elas pintaram por todo o inverno. Aos poucos, Sara foi introduzindo a ela novas técnicas, ensinava-lhe noções de perspectiva, e ao mesmo tempo, incentivava-a a inspirar-se em cenas reais, como por exemplo, uma árvore solitária, ou um canto inexplorado do jardim. Montava composições simples de natureza morta, como rosas frescas em um jarro de porcelana; ou frutas colocadas displicentemente em uma toalha de linho branca.

Nem se deram conta e já era primavera novamente. Com a chegada dos dias quentes, Sara passou a exercitá-la na piscina. Colocava-lhe um colete salva-vidas e flexionava suas pernas enquanto ela boiava a flor da água. Passavam as manhãs na piscina e as tardes na estufa no cultivo das plantas. Com o auxílio de um livro de jardinagem, passaram a produzir alguns híbridos exclusivos de várias espécies. A cada semente nova que germinava, elas transplantavam da sementeira à pequenos vasos e depois datavam e batizavam-na com nomes de mulher.

- Temos mais uma nova espécie – disse Sara terminando com um vaso – Agora é só regar na dose certa e esperar que ela cresça forte.
- Como a chamaremos?
- Pensei em chamá-la de Ingrid.
- Ingrid?... Porque escolheu esse nome?
- Era o nome de minha mãe: Ingrid Vankovks... Não gostou dele?
- Não é isso... só... achei meio complicado.
- É húngaro. Minha mãe era húngara, nunca lhe contei isso?
- Não.
- Se achar complicado, poderemos mudá-lo...
- Oh, não, tem todo o direito de homenagear sua mãe. Eu também quero fazer uma homenagem no próximo híbrido.
- Combinamos que não daríamos nomes uma da outra nas plantas – lembrou-lhe Sara.
- Vou chamá-la de “Amizade”.
- Conhece alguém por nome “Amizade”?
- Não. Mas conheci algo que nunca havia conhecido antes: a mais bela forma de sentimento entre duas pessoas.
- Está falando de nós duas, não está?
- Estou. Sara...
- O que é?
- Cuidará para que permaneçamos amigas por mais algum tempo?
- Seremos amigas para sempre! – assegurou-lhe Sara – Porque está perguntando isso?
- Porque nunca tive nada mais verdadeiro antes.


4 comentários:

  1. Minha leitura do livro está um pouco atrasada, a atenção requer isto...
    Deixo, porém, neste capítulo, sem lê-lo ainda para não antecipar, a minha admiração pelo teu trabalho.
    Carinhoso abraço.

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  2. Li esta capítulo sem perder pitada, com verdadeiro interesse porque , o enredo e o modo como está escrito, são fabulosos. Parabens!
    beijo
    Graça

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  3. Prezada Bia, a história continua emocionante! Bjão,
    Adh

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  4. Mais um capítulo emocionante!!!!
    Até o próximo! Bjusss

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco