sexta-feira

Capítulo VII

"É Preciso Ver os Anjos"



Uma chuva forte caía sobre a cidade deixando o trânsito congestionado. Sara estava atrasada para o trabalho. Em quase um ano em que trabalhava para os Burdon, era a primeira vez que isso acontecia. Quando entrou no quarto, D. Emília ainda estava na cama assistindo ao noticiário matutino.

- Desculpe o atraso, D. Emília, o trânsito está impossível, nem mesmo um taxi eu consegui apanhar.
- Não tem importância.

Sara olhou para a bandeja em cima de um móvel:

- Ainda não tomou seu café. Deve ter esfriado.
- Sheila quis servir-me, mas decidi esperá-la. Soube do congestionamento pela T. V.
- Mas agora chega de T.V., tem que se alimentar – disse Sara colocando a bandeja e retirando o controle remoto.
- O que vamos fazer hoje no nosso M.P.C.I.? – perguntou D. Emília.
- Ainda não pensei em nada. Tem algo em mente?
- Talvez possamos usar cocaína.
- D. Emília!!
- Estava só brincando. Mas tenho uma idéia para sexta à tarde – disse ela com ar de mistério.
- Qual é o plano?
- Por enquanto é segredo.
- Está ficando muito travessa!
- Sara... quero que me faça dois favores: Peça ao Feliciano que venha falar comigo em particular enquanto você almoça lá embaixo. Depois, quero que telefone ao Salgado e peça a ele que venha me ver essa noite.
- Algum segredo de estado? – perguntou ao acaso
- Com qual dos dois?
- Com o Dr. Salgado.
- Não, só quero que ele faça uma compra para mim.
- E com o Feliciano?
- Também.

Sara cercou Feliciano quando ele retornava do sótão:

- O que ela queria com você? – perguntou diretamente.
- Uma coisa muito estranha. Pediu-me para ir até um endereço que ela disse ter pego na T. V. e comprar umas roupas de banho.
- Roupas de banho?
- Isso mesmo. E depois, disse que eu devia substitui-las pelas roupas de banho que estão no vestiário da piscina antes de sexta-feira à tarde.
- E o que vai haver sexta à tarde?
- D. Marilin vai oferecer um coquetel para um grupo de amigos à beira da piscina.
- O que estará aprontando?...
- Como disse?
- Nada... Pode ir agora Feliciano, obrigada.

O homem principiou a caminhar, mas Sara chamou-o novamente:

- Só mais uma coisa... Como D. Emília soube do coquetel?
- Ela pediu a Sheila para avisá-la quando D. Marilin fosse dar alguma festa na piscina.
- Ah, entendi...

Na quinta feira, elas desceram para estufa logo após o café da manhã, Sara havia trazido umas mudas novas e iriam replantá-las:

- Elas ficaram um pouco danificadas por causa do ônibus lotado – disse Sara tirando as pequeninas mudas de uma caixinha.
- Porque não pediu ao Feliciano para ir comprá-las?
- Gosto de escolher eu mesma. Fico fascinada com as variedades de cores e formas.
- Também devo confessar que estou adorando praticar jardinagem. Sabe que nunca havia tocado em terra antes?
- Eu sempre gostei de tocar na terra. Quando era criança, minha mãe e eu fazíamos hortas nos fundos da casa onde morávamos.
- Como era ela?
- A horta?
- Não, sua mãe.
- Ela era maravilhosa... A mulher mais fantástica que eu conheci.
- Conhecendo você, eu posso imaginar.
- Ela era muito mais... Acredita que ela alfabetizou e conseguiu trabalho para uma cidade inteira?
- Era professora?
- Não, nem possuía o segundo grau completo, e ainda por cima, era estrangeira. No entanto, era uma grande idealista, sonhadora.
- Como ela morreu?
- Foi assassinada – respondeu Sara tristemente.
- Oh, eu lamento... Não devia ter perguntado...
- Tudo bem, já faz tanto tempo. Não tenho mais nenhuma reserva em falar sobre isso. Houve um tempo em que evitava até de pensar, tamanha era a dor.
- E seu pai?
- Eu nem o conheci, ela era mãe solteira.
- Ele nunca procurou por você?
- Hoje acredito que ele nem mesmo sabia da minha existência.
- E não havia mais ninguém?
- Sim, ainda tenho tia Agnes, eu já lhe falei sobre ela. Vive no Convento lá no Paraná...
- Paraná?... Você é Paranaense?
- Sou mais Paulista agora do que qualquer outra coisa. Para ser franca, odeio aquele lugar.

D. Emília consultou seu relógio de Pulso:

- Preciso falar com Feliciano, me leve até a garagem, por favor.
- Agora?
- Já.

Na garagem, Sara teve o que poderia ser a mais inesperada surpresa de toda sua vida: um carro zero quilômetro esperava por ela!

- É lindo!... É... magnífico!
- Tem habilitação, não tem? – perguntou D. Emília.
- Tenho, mas... não posso aceitar... Um presente tão caro desses, não tem lógica!...
- Não seja boba, Sara, não estou fazendo por você. Fiz isso por mim mesma. Não terá mais desculpas para chegar atrasada.
- Não sei, nunca tive nada tão caro em toda minha vida... Acho que não saberia como guiá-lo.
- Feliciano vai orientá-la nos primeiros dias, e podemos estreá-lo hoje à tarde, que tal?
- Aonde iremos?
- Você escolhe.
- Nesse caso, eu tenho uma idéia: Eu aceito o presente se aceitar ir a um lugar comigo.
- Isso é chantagem.
- Chame como quiser, mas tem que dizer se aceita ou não.
- Sem me dizer de antemão aonde vai me levar?
- Não confia em mim?
- Nunca confiei tanto em alguém antes.

A sala era gelada e repleta de pessoas aguardando sua vez. Sara sentada ao lado de D. Emília, segurava firmemente a sua mão:

- Fique calma. Vai dar tudo certo – tranqüilizou-a.
- Eu lhe avisei mais de um milhão de vezes, que não queria saber de fisioterapeuta nenhum! – resmungou D. Emília num cochicho.
- Agora é tarde, não pode sair correndo daqui.

Da. Emília quis permanecer sozinha no consultório com o médico que faria a avaliação. Sara achou por bem não interferir, afinal, só o fato de estarem ali já a fazia sentir-se plenamente satisfeita, por enquanto. Tratava-se de mais uma batalha ganha e não queria estragar tudo com algo, que a primeira vista, não parecia importante. Ela não gostava mesmo de falar sobre a paralisia.

Depois de um longo período em particular com o médico, D. Emília mandou que a chamassem para participar dos últimos detalhes. Ficou acertado que visitariam a clínica três vezes por semana, e para os demais dias, foi-lhe prescritos exercícios para serem feitos em casa. Sara assumiu prontamente a responsabilidade dessa tarefa.

- Vamos estipular um horário e seguir a risca as recomendações – disse Sara ao deixarem a clínica.
- Eu acho tudo isso uma besteira, mas se você insiste...
- Se perseverarmos, vamos ter resultados positivos, não tenho dúvidas.

Feliciano acomodou D. Emília no banco traseiro do carro enquanto Sara colocava a cadeira de rodas no porta-malas.

- Eu quero ir dirigindo agora, Feliciano – disse ela tomando o volante.
- Vamos para casa? – perguntou D. Emília.
- Não. Vamos ao cabeleireiro.
- Não precisa tirar a cadeira do porta-malas, Sara – disse D. Emília – Estaciona numa sombra que eu fico ouvindo música enquanto você faz o cabelo.
- Mas não sou eu quem vai fazer o cabelo. É a senhora.


Naquela noite ao voltar para casa, Sara sentiu-se constrangida ao estacionar o carro novo na vaga estreita do modesto prédio onde moravam. Sabia que todos iam comentar maliciosamente, mesmo porque, ao lado do dela estava o carro do marido, de segunda mão e ainda por cima, precisando de muitos reparos de funilaria.

Leo e as gêmeas já se encontravam em casa quando ela chegou. Contou-lhes sobre o carro e a reações foram unânimes: Todos desceram correndo para a garagem.

- Que lindo, mamãe!... Parabéns! – exclamou Nicole.
- Deve ter custado uma fortuna! – calculou Nátali.
- A velha gosta mesmo de você! – observou Leo.

Sara olhou atentamente para os três. Era incrível como ela os conhecia tão bem! Já havia profetizado de antemão qual seria a reação de cada um deles.

- Eu relutei muito em aceitar o presente, e confesso que não me senti muito bem em chegar aqui dirigindo-o.
- E porque não? – perguntou Nátali – Ela é milionária, e esse carro não deve representar para ela mais do que um pé de alface.
- É isso mesmo, meu bem – concordou Leo – E depois, ninguém pode ficar envergonhado por ter ganhado um presente caro e bonito.
- Eu sei como se sente mamãe – disse Nicole – As pessoas vão comentar mesmo, mas e daí?... Não deve dar atenção a elas, você merece cada pedacinho desse carro, pelo seu trabalho e dedicação. Você tem muito valor e D. Emília sabe disso. Quer conservá-la, e não sabe usar outra coisa que não seja o dinheiro. Ela pode ser uma velha rabugenta, mas não é burra.
- E nem tão rabugenta mais – disse Sara – ... Talvez estejam certos, mas não posso evitar o pensamento de que o valor desse carro em dinheiro, seria mais do que suficiente para resolver nossos problemas financeiros... Mas como diria minha sábia amiga Claudine, relaxar e aproveitar não pode matar.

No dia seguinte pela manhã, Sara já começava a abençoar o presente. Preparou o café com tranqüilidade e pôde ficar mais tempo com a família do que o habitual.

Na mansão, seu dia começou com os exercícios em D. Emília, depois serviu o café a ela no jardim e rumaram para estufa. Almoçaram na copa e subiram para descansar.

- Rejuvenesceu uns vinte anos com esses cabelos curtos – disse-lhe Sara.
- Eu estranhei quando me olhei no espelho ontem... Parecia que estava vendo outra pessoa. Só hoje eu gostei do que vi.
- Estou até pensando em inscrever a senhora num desses programas de namoro pela T. V....
- Você não se atreveria!!
- Ainda estamos jogando, não estamos? – perguntou Sara com um sorriso travesso – E se eu disser que isso é uma regra do jogo?
- Eu diria que é uma insana e mandaria interná-la – disse D. Emília fingindo-se furiosa.
- Dizem que só os que foram felizes no primeiro casamento, não tornam a casarem-se.
- Eu não fui feliz no casamento se é isso que quer saber – disse ela – Não foi nada além de um calvário que durou mais de trinta anos.
- Nunca foi feliz, nem por um momento?
- Só nos primeiros anos até descobrir toda a verdade.
- Verdade?...
- Ele nunca me amou, só estava interessado no meu dinheiro.
- Como pode ter certeza?
- Só o dinheiro pode ser mais poderoso do que um grande amor, ao ponto de prevalecer na escolha de um homem.
- Ele amava outra mulher?
- Sim, mas não teve coragem de assumi-la. Preferiu o poder, a posição social e ficou comigo.
- E porque a senhora aceitou-o?
- Eu só vim á saber disso anos depois. Quando fui falar com ele, deixou cair a máscara. Disse-me o quanto estava arrependido em deixá-la, e que ainda amava-a.
- E depois disso, o que aconteceu?
- Pediu-me a separação, mas eu não concedi. Prendi-o a mim da maneira mais cruel que encontrei. Transformei sua vida num inferno até sua morte.

Essas palavras soaram rudes e ao mesmo tempo sôfregas.

- ... Foi com sua morte que eu descobri que havia me iludido todos aqueles anos. Não era doce o sabor da vingança; foi amargo o tempo todo.

Sara estava atônita com as revelações de D. Emília. Agora podia compreender muitas coisas, mas ainda faltava um capítulo daquela história. Talvez estivesse nele o fundamento obscuro da relação entre ela e o filho.

Uma agitação lá embaixo se fez nitidamente ouvir no sótão.

- Vem, Sara, vamos para a janela que o Show vai começar.

Na piscina, um grupo de pessoas bebia, ria e falava alto. Não demorou muito até que começaram a cair na piscina. E foi então que o tumulto começou. Homens e mulheres se entreolhavam espantados ao descobrirem que seus trajes de banho derretiam-se ao contato com a água, transformando-se num tipo de gel transparente, deixando-os completamente nus.

No sótão, Sara e D. Emília convulsionavam-se em gargalhadas.


4 comentários:

  1. Prezada Bia, mais um ótimo capítulo. Grande notícia a do livro, sendo publicado não esqueça de nos avisar para estarmos na fila dos autógrafos, ok?
    Abç,
    Adh

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  2. Parabéns Bia!!!! Grande percepção dessa editora, concerteza o romance vai ser um sucesso! Espero que logo tudo se concretize! E só faço uma exigência que o meu exemplar do livro venha autografado! rsrsrs
    Mas um capítulo surpreendente... Ansiosa pelas novas emoções! Ótima semana pra você!!! Bjusss

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  3. Passei novamente para ficar em dia com a trama...
    Se forem suspensas as publicações para que saia o livro, que é o que desejo, avisa para que eu reserve um exemplar...
    Um abraço e felicidades.

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  4. Bia,já fiz diversos comentários a respeito de seu trabalho,porém não consigo enviar,disseram que o problema está para ser resolvido,pois aconteceu com outros blogueiros.Eu conheço um pouco da boa literatura e posso dizer com segurança que sua obra está muito boa,pois ela nos chama para continuar e isto é um ótimo termômetro.Parabéns! Um grande abraço!Marli Boldori do Naco de Prosa

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco