quarta-feira

CAPÍTULO VI


"É Preciso Ver os Anjos"



Faltavam três dias para expirar o prazo de experiência concedida por D. Rômulo e ele não fora visitar a mãe nenhuma vez nesse período. Sara ainda não havia feito grandes progressos com D. Emília; era bem verdade que trocavam uma ou outra palavra vez por outra, mas ela queria mais. D. Emília ainda não se permitia ser tocada, porém, já estava se habituando à voz dela. Sara comprava jornais todos os dias e lia em voz alta para ela, mas tomava todo o cuidado de pular as notícias trágicas; tencionava reapresentar o mundo à ela, mas não começaria pelas coisas ruins. Essas ficariam para depois. D. Emília raramente fazia algum comentário, simplesmente ouvia na maioria das vezes.

O Dr. Salgado fora visitá-la há uma semana e uma pasta azul com alguns papéis se achava em cima do armário. Sara usou-a como pretexto para iniciar uma conversação:

- Esses papéis... Não tem que examiná-los?
- Não há nada aí que possa me interessar – respondeu sem olhá-la.
- Não são papeis importantes das empresas? – arriscou Sara.
- E o que você sabe sobre as empresas? – perguntou secamente.
- Eu?... nada... só pensei que...
- Você não é paga para pensar.

Sara sentiu o furor subir-lhe no rosto, mas controlou-se. Tinha que formular a resposta de maneira que a estimulasse a continuar falando:

- Realmente não sou. Mas não posso evitar de pensar por qual motivo não elege seu filho o presidente das empresas.

Ela lançou um olhar gelado a Sara:

- Está se metendo em coisa que não é da sua conta.
- Tem toda razão – disse Sara fingindo-se embaraçada – Perdoe-me, mas é que fico curiosa, às vezes... Deve ter seus motivos, e são nobres com toda certeza...

D. Emília soltou uma gargalhada sonora. Sara mal pode acreditar.

- Acha mesmo que sou capaz de algum ato nobre?
- Acho, acho sim... E porque não?
- Eu não daria a ele deliberadamente a única coisa que não pode tomar-me – respondeu ela ainda ofegante pelo riso.

Sara aproximou-se cuidadosamente para junto dela:

- D. Emília... Quanto tempo faz que não vê o seu filho?
- Eu parei de contar o tempo, não saberia dizer.

Os olhos dela tinham um brilho que Sara notara pela primeira vez.

- Não sente falta dele?
- Não sinto falta de ninguém; nem de mim mesma. Se pudesse, nem mesmo estaria aqui.

Ela tocou num ponto que Sara ansiava abordar, mas tinha medo.

- Está falando das... das tentativas de suicídio?
- Talvez.

Sara esperava uma explosão, entretanto ela reagiu friamente à abordagem, encorajando-a a ir mais longe:

- Por que fez isso?
- É só um jogo. Eu tento me matar, e ele tenta impedir. Só estamos medindo forças.

Sara reagiu com horror àquelas palavras, mas não era apropriado demonstrar:

- Não acha um tanto quanto... macabro?
- A morte?... Não, a morte não é macabra. A morte é a inconsciência total, é o cessar de todas as coisas... E é por isso mesmo que é tão atraente.
- Viver é atraente! – exclamou Sara com determinação.
- Não na minha opinião.
- Quer jogar comigo? – desafiou Sara.
- Que tipo de jogo?
- Eu tento provar-lhe que viver é mais atraente...
- E eu tento provar-lhe que morrer é muito mais? – adiantou-se ela.
- Não, esse não é um jogo de morte, é um jogo de vida... E tem suas regras.
- Que tipo de regras?
- Quem entrar primeiro no jogo é quem irá ditá-las. E será minha vez de jogar.

Sara olhava-a na expectativa.

- E se eu não gostar das regras?
- Buscaremos juntas exceções alternativas.

D. Emília mediu-a de alto a baixo num olhar analítico; tinha nos lábios um sorriso sutil:

- É uma pessoa esperta, Sara... Muito mais do que as outras. E é por isso que ainda está aqui.
- Mas se pudesse, a senhora já teria me despedido, não é mesmo?
- Acha mesmo que ainda estaria aqui se eu realmente não quisesse?

Não deve subestimá-la...

- Não.
- Eu disse que é esperta.
- Então isso quer dizer que a senhora me quer aqui?
- Não disse isso. Apenas não me importo.
- Ainda não me disse se quer jogar – insistiu Sara.
- E por que não? Tudo é um jogo. Perdemos e ganhamos a cada momento, não faz diferença.
- Saberá reconhecer se eu ganhar?
- Terá que esperar para descobrir.


No dia seguinte, Sara procurou por Dr. Rômulo em seu escritório:

- Posso falar-lhe por um momento?
- Sim, sente-se, por favor – disse ele solícito – Veio tratar do seu registro, suponho. Eu estava mesmo pensando nisso...
- Não... o assunto que me traz aqui é outro. Do registro falaremos depois.

Ela sentiu o suor escorrer-lhe nas mãos pelo nervosismo, mas só havia uma maneira de falar: direta e claramente.

- Vim pedir sua autorização para instalar um elevador que leve até o sótão para que eu possa descer com D. Emília...
- Como é que é?
- Disse que gostaria de instalar um elevador...
- Não é necessário repetir, eu ouvi!

O homem lançou-lhe um olhar atônito, fez menção de levantar-se, mas, e em seguida, voltou à posição anterior:

- De quem foi essa idéia?
- Foi minha.
- E ela, o que pensa a respeito?
- Ela concordou. – era quase verdade.

Ele levantou-se, caminhou alguns passos com as mãos no bolso. Quando voltou a falar, foi com certa dose de aspereza na voz:

- O que ela está pretendendo agora?
- Pretendendo?... Como assim?... Acho que não entendi a pergunta...
- A senhora entendeu, sim, entendeu perfeitamente bem!... Ela a seduziu, não foi? Está usando de outras táticas comigo... Matei a charada?
- Eu não sei do que está falando – disse ela confusa – Só vim pedir-lhe autorização para instalar um elevador... Quero poder sair com ela, passear pelos jardins...
- Passear pelos jardins!... – repetiu irônico – Durante quinze anos eu fiz de tudo para que ela voltasse à vida, mas foi em vão! – ele elevou os olhos para o teto antes de prosseguir – Preferiu trancafiar-se naquele sótão, manipulando à todos da sua maldita cadeira!... E o pior de tudo, é que eu sei que ela sente um prazer doentio em fazer isso...

Ele foi até o bar e serviu-se de uma dose de uísque. Virou a bebida num só gole.
Sara pressentiu que tinha que ser muito mais persuasiva:

- Acho que está enganado – disse cautelosamente – Não é assim como pensa...
- Eu vou dizer o que eu penso – disse ele voltando-se para encará-la – Penso que as coisas devem ficar exatamente como estão!

Ele serviu-se de mais uma dose da bebida, dessa vez maior:

- Eu já estou farto de tudo isso!... Estou com tantos problemas...
- E não quer mais um rodando pela sala de estar, não é mesmo? – disse impulsivamente.
- O que está insinuando, Sra. Romanelli?

Ela havia provocado-o e era tarde demais para recuar:

- Que é muito mais cômodo manter o problema trancafiado lá em cima a continuar pensando na solução... Só que o “problema” é a sua mãe!
- Nem que eu queira, consigo esquecer-me disso! – replicou ele – A senhora não sabe nada de nossas vidas... Como pode ditar o que é certo ou errado? Só está aqui há três meses!
- Mas tenho absoluta certeza que convivi mais tempo com ela, do que o senhor em toda sua vida!
- Posso despedi-la por esse atrevimento!...
- Mas acho que não fará isso... Precisa de mim.
- É muito arrogante, Sra. Romanelli!...
- Não, eu não sou. Só sou persistente.

Sara preparava-se para sair, mas parou e pensou por alguns segundos, tinha que ser rápida:

- Tenho uma proposta a fazer-lhe. Penso que pode ser interessante a nós dois.
- Que proposta?
- Aqueles papéis que estão lá em cima numa pasta azul... São muito importantes para o senhor, não é mesmo?
- São contratos de um novo sistema tecnológicos que pretendia implantar nas tecelagens e... Mas o que isso tem a ver com...
- Se eu lhe trouxer aqueles contratos devidamente assinados por D. Emília, me autoriza a instalação do elevador?

Ela percebeu nitidamente que ele fora apanhado de surpresa.

- Quais os verdadeiros interesses por traz disso?
- Nenhum outro, além dos que eu já citei – garantiu – Tem a minha palavra.

Ele deu alguns passos numa atitude de reflexão. Parecia indeciso.

- Está bem – disse finalmente – Proposta aceita.

Sara dirigiu-se para a porta e abriu-a, mas antes de sair, voltou-se. Tinha ainda algo a dizer:

- Obrigada, Dr. Rômulo. Eu me responsabilizarei por ela. Não irá mais prejudicá-lo se eu puder impedir.


Depois disso, por vários dias, Sara tentou tocar no assunto dos contratos com D. Emília, mas não obteve sucesso; eles continuavam no mesmo lugar. Decidiu dar um tempo até uma nova chance. A chance surgiu numa tarde em que assistiam a um filme pela T.V.:

- Esses Robôs são tão esquisitos... Não existem realmente, existem? – perguntou D. Emília.
- Não, mas existem coisas bem parecidas nas indústrias modernas. Chegam até mesmo a substituir a mão de obra humana – explicou-lhe Sara.
- É por isso que o desemprego aumentou vertiginosamente – observou D. Emília.
- Pode ser, mas ninguém consegue segurar o progresso. Deve-se buscar o equilíbrio, a senhora não acha? – perguntou Sara.
- Não sei, nunca pensei nisso.
- Mas devia pensar. É algo assim que o seu filho pretende implantar nas tecelagens... Aqueles contratos tratam disso... Estive pensando se...
- Poupe seus esforços, Sara. Aqueles contratos já estão assinados há dias.

Sara não perdeu tempo, começou a tratar da construção do elevador imediatamente após a entrega dos contratos ao Dr. Rômulo. Falou com Leo a respeito:

- Pode cuidar de tudo por mim?
- Sara, você sabe que eu não gosto desses pequenos serviços... Surgem tantos problemas e os lucros são mínimos. É muito mais simples e barato contratar diretamente uma empresa especializada.
- Sei disso, mas quero que você execute a parte de obra e intermedeie a compra do equipamento, não tenho tempo para isso... Não pode abrir uma exceção para sua mulherzinha?- disse com voz melosa.
- Está bem. Vou até lá amanhã dar uma olhada, se for viável, começarei a trabalhar no projeto.

Leo começou a executar a obra na semana seguinte. Colocou um mestre de obras e passava uma vez ao dia para inspeção.
D. Emília passou a ficar incomodada com o barulho:

- Que barulho infernal é esse aí fora?
- Dr. Rômulo está realizando uma pequena reforma – respondeu Sara simplesmente.
- Logo imaginei. Isso deve ser mais um dos delírios de Marilin.
- Não gosta dela?
- É uma mulherzinha fútil que não sabe nada de coisa nenhuma. Não lhe daria nem mesmo o meu desafeto.
- E sua neta?
- Essa não passa de uma vítima. Anda mais distante da realidade do que eu nessas quatro paredes.
- Quanto tempo não fala com a Dora?
- Não me lembro. Costumava vir aqui às vezes quando era criança. Ficava ali parada me olhando... Acho que nem mesmo sabe que ainda estou aqui.

D. Emília falava com certa indiferença na voz, todavia o brilho em seus olhos era traiçoeiro. Sara sentiu pena dela.

- Ainda bem que pode vê-la da janela quando está na piscina.
- Eu os observo. Apenas isso.


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A obra ficou pronta e tinha chegado o grande dia de convencer D. Emília a sair do sótão:

- Tenho uma surpresa para a senhora – anunciou Sara logo pela manhã.
- Uma surpresa? – perguntou ela sem muito interesse – Acho que não me surpreenderia nem mesmo fazendo com que o Titanic entrasse por aquela porta.
- Pois aposto que vai ter uma surpresa e tanto! – exclamou Sara radiante.

Ela foi até a porta, destrancou e abriu-a. Depois, voltou e conduziu a cadeira porta afora, no corredor. Exibiu orgulhosa a novidade:

- Vamos sair! – anunciou.

D. Emília olhava freneticamente para aquela coisa estranha presa a cabos de aço.

- Que diabos é isso? – perguntou ela exasperada.
- É um elevador – respondeu Sara sorridente
- Eu sei que é um elevador, ainda posso reconhecer um, mas o que significa?
- Eu não disse que ficaria surpresa?... Bem-vinda de volta ao mundo!
- Não me lembro que tenha dito que queria sair.
- É a regra do jogo.
- Não tinha que ser informada antes?
- Se eu informasse deixaria de ser surpresa.

Sara fez uma manobra rápida com a cadeira para o interior do quarto:

- Tem óculos de sol?
- Óculos?...
- Sim, óculos de sol – repetiu Sara – Vai precisar de um, está desabituada com a claridade... Não tem importância, usará o meu.

Ela não pretendia dar brecha para D. Emília protestar.

- ... Vou pentear seus cabelos, não vai querer ser reapresentada ao mundo com uma má aparência...
- Sara... eu... não me sinto pronta para deixar o sótão...

Sara agachou-se aos seus pés:

- Vai ser divertido, eu prometo. Podemos passear pelo bosque de pinheiros... E depois, a senhora vai poder tomar sol, ganhar uma nova cor... Poderá até parar de tomar aquelas vitaminas que odeia tanto.

Dizendo isso, Sara foi até uma gaveta e apanhou uma escova de cabelos. Retirou os grampos que prendiam os longos cabelos de D. Emília e começou a escová-los delicadamente. Ela deixou-se pentear, foi o primeiro contato físico entre elas.
Quando terminou, Sara apanhou um xale e cobriu-lhe as pernas; empurrou a cadeira para dentro do elevador e começaram a descer. Os olhos de D. Emília passeavam por todo o ambiente, brilhantes e emocionados. Que tipo de recordações invadiam-na? Talvez algum dia ela contasse.

Sara não tinha pressa, foi empurrando a cadeira vagarosamente, não queria que ela perdesse nenhum detalhe. Quando passaram pela copa, Sheila, Feliciano e os demais empregados, estavam alinhados lado a lado pela passagem:

- Seja bem-vinda – disse Sheila em saudação enquanto os outros a cumprimentavam com um aceno de cabeça.

Ela respondeu silenciosamente os cumprimentos e ambas continuaram a trajetória buscando caminhos que não tivessem degraus. Ao chegarem próximo à saída da casa, Sara parou e colocou-lhe os óculos. D. Emília estava trêmula, parecia ter sido acometida por um pânico súbito, Sara tranqüilizou-a:

- Coragem, D, Emília vai dar tudo certo.

O clima estava suave, um sol tímido brilhava no céu, e Sara pensou que aquele dia estava perfeito para a primeira saída dela.

Elas passavam pelo chafariz cercado de roseiras a sua volta:

- Pare um pouco aqui, por favor – pediu D.Emília – Quero tocar minhas roseiras...

Ela estendeu os dedos finos e tocou as folhas ainda úmidas pelo orvalho:

- Sabe de uma coisa, Sara... Todos esses anos eu tenho observado, lá de cima, minhas roseiras florescerem... Sempre foram as minhas prediletas do jardim. Eu até mesmo contava as flores uma a uma e comparava as floradas a cada estação.
- Iremos cuidar delas juntas agora.

Depois de percorrerem por todo o jardim, chegaram ao bosque. Sara procurou um lugar plano ao lado de um banco, estacionou a cadeira e sentou-se ao lado dela. Sentia-se vitoriosa. Era possível que aquele momento significasse mais para ela do que para a própria D. Emília.

- Sente-se pronta para tirar os óculos?
- Acho que sim.

Sara retirou-lhe os óculos devagar e ela foi abrindo os olhos aos poucos se habituando à claridade.
Ficaram por um longo período em silêncio, lado a lado, como se não quisessem quebrar a paz daquele momento com o som das palavras. Mas conversar, e conversar muito com D. Emília, era parte integrante dos planos de Sara:

- Já reparou como o sol de outono deixa os pinheiros com uma cor avermelhada? - perguntou ela.
- Nunca havia notado.
- Feliciano me disse que esse lugar era o predileto do Dr. Burdon.

D. Emília endureceu o olhar, como sempre fazia toda vez que Sara tocava no nome do marido. Qualquer que fosse a fatalidade ocorrida no passado, ela não tinha dúvidas, estava ligada diretamente a ele.

Sara decidiu mudar de assunto. Levou a mão ao chão, apanhou uma pinha e retirou de dentro dos gomos a pequena semente:

- Olha D. Emília, semente com azinhas, não é linda?... O vento a faz voar longe para germinar em outro lugar, e assim, perpetuar a espécie.
- Você tem cada uma!... Como consegue reparar em coisas tão pequenas?
- Não são pequenas, são grandiosas!
- Ora Sara, essas sementinhas são menores que um grão de feijão.
- Estou falando da criação de Deus.
- Eu não acredito em Deus – afirmou categórica.
- Acredita que toda essa beleza surgiu por acaso? Toda obra tem que ter um autor.
- Eu nunca pensei nisso. Elas estão aí e pronto.
- Pois devia pensar. Todo ser humano tem o dever de refletir sobre essas coisas, uma vez que ninguém é capaz de acrescentar um só dia a mais à sua existência... O homem constrói coisas complexas e gigantescas, e no entanto, não é capaz de produzir uma só lâmina de grama... Não sugere isso alguém muito mais inteligente por traz de tudo?
- Não sei, não.
- Pois eu digo que Deus é o construtor do universo.
- Não pode acreditar naquilo que não vê.
- Mas eu o vejo!... Posso vê-Lo através das coisas que criou. Conheço até mesmo sua personalidade.
- É mesmo? – perguntou D. Emília com ar zombeteiro – E como é a personalidade de Deus?
- Bem, Ele é inteligente, criativo, organizado... e extremamente vaidoso!

D. Emília soltou uma risada alta:

- Essa foi demais, Sara!... Então, em sua opinião, Deus é extremamente vaidoso?
- Se não fosse, como explicaria tanta beleza? Só os vaidosos gostam de coisas belas.
- Você me surpreende a cada dia... Mas gosto da forma como vê as coisas, faz tudo parecer tão simples e perfeito.
- Mas tudo é realmente muito simples. Por isso é que só os pequenos sábios acreditam em Deus.
- Pois eu digo que Ele não existe. Se existisse, seria ainda pior porque estaria omisso a tanta desventura.
- Eu prefiro pensar que por algum motivo de grande sabedoria, ainda não interferiu nos assuntos daqui da terra. Mas deve ter planos para futuro... E todos nós colheremos o que plantamos.
- O juízo final?
- Ou o recomeço de tudo.
- Você realmente acredita em tudo isso, não é mesmo?
- E a senhora deveria acreditar também, pois Ele virá com certeza. Virá para arar a terra e lançar a semente renovada do homem.
- E o que me diz dos que já morreram? Estarão eles no céu?
- Não, o céu está reservado aos anjos. O homem é produto da terra... Dela foi tomado e pertence a ela.
- E aonde acha que eles estão?
- Em parte alguma, apenas voltaram ao solo. Estão inativos na morte.
- Nesse caso, só os vivos estão inclusos nos tais planos de Deus? Isso não lhe parece injusto para com os bons que deixaram de existir?
- A senhora nunca leu a bíblia, não é mesmo?
- Não, nunca.
- Se tivesse lido, saberia que Jesus ressuscitou seu amigo Lázaro, e tantos outros também. Se ele fez isso, pode trazer quem quer que seja à vida novamente.
- Ora Sara, se os mortos voltarem a viver não caberão nesse planeta...
- A mão que ressuscita separa o joio do trigo. E o campo é bastante amplo para acomodar o cereal excelente.


D. Emíliaz fitava-a de uma maneira estranha, incógnita.

- Quem lhe disse essas coisas? Por acaso foi algum Pastor Protestante?
- Foi minha tia. Ela é Freira da Ordem das irmãs Carmelitas, mas nunca acreditou nas doutrinas ensinadas no convento, e sempre foi incompreendida por isso.
- Uma rebelde?
- Uma rebelde maravilhosa e muito especial.
- Você é uma pessoa muito especial, Sara. E merece ser feliz.
- Eu me contento em viver momentos felizes, como esses que estamos vivendo agora... Também não se sente feliz?

Ela não respondeu. Apenas cerrou os olhos e sentiu a brisa suave acariciando seu rosto. Durante um longo tempo, parecia mergulhada em seus pensamentos.

- Está quase na hora do almoço. Devemos voltar – disse Sara.

Quando se aproximavam do elevador, Dr. Rômulo descia os últimos degraus da escada. Sara surpreendeu-se ao vê-lo àquela hora do dia em casa. Talvez buscasse um pretexto para ver a mãe. Com esse pensamento em mente, parou com a cadeira e o encontro se deu inevitável.

Mãe e filho trocaram um olhar rápido.

- Olá, mamãe – cumprimentou-a – Fico aliviado que tenha deixado o sótão, afinal.
- Não tem que fazer isso. Sei o quanto minha presença incomoda-o – disse-lhe ela friamente.

Ele olhou para Sara:

- Dr. Salgado virá apanhar seus documentos hoje à tarde para providenciar seu registro.
- Sim, senhor.

Ele retomou o seu trajeto.

Três dias depois, Sara encontrava-se com Dr. Salgado no escritório:

- Aqui estão seus documentos, Sara, devidamente registrados – disse-lhe ele.
- Obrigada.

Ele olhou para ela como se desejasse dizer-lhe algo mais, mas ainda buscava as palavras corretas:

- Soube que está se entendendo muito bem com D. Emília.
- É verdade, tenho feito alguns progressos com ela.
- Posso lhe dar um conselho?
- Sim...
- Deixe esta casa antes que seja tarde demais para você. Fuja o quanto antes, ou poderá se arrepender.

Dizendo isso, ele deixou rapidamente a mansão. Aquelas palavras martelavam na cabeça de Sara. A expressão aterrorizadora no rosto dele... O que realmente havia por traz daquilo tudo?

Naquele final de semana, Sara conversou com Claudine a respeito:

- Eu lhe avisei que eles são um bando de desequilibrados – disse-lhe Claudine – Não foi à toa que Alberto desistiu de advogá-los.
- Não se trata disso, Claudine, existe uma relação quase doentia entre mãe e filho... Eles se odeiam!
- Alberto me contou que ela é uma castradora. Veta todos os projetos das empresas e não permite que os negócios deslanchem naturalmente. Viviam se duelando judicialmente, ele se sentia dividido, por isso desistiu.
- Mas não é só isso... Existe alguma coisa mais.
- Quer saber o que eu acho?... Acho que o tal procurador tem razão. Se continuar se metendo no que não é da sua conta, vai acabar se arrependendo. Já está fazendo mais do que devia àquela gente. Limite-se a realizar o seu trabalho, embolsar a grana, e esqueça o resto.
- Talvez tenha razão. Não devo me preocupar tanto com coisa que não é da minha conta.


Sara procurou seguir à risca os conselhos da amiga. Passou a se preocupar somente com o bem estar de D. Emília e nada mais. Dava-lhe prazer vê-la aos poucos se interessar pela vida novamente, e isso a incentivava, a cada dia, buscar idéias novas para realizarem juntas. Sara convenceu-a a autorizar a construção de uma estufa perto do bosque e passavam lá quase todas as manhãs cultivando violetas, orquídeas e outras espécies de plantas. Em outros dias, supervisionavam o trabalho do jardineiro nos demais jardins da propriedade. Algumas vezes por semana, dispensavam o almoço e Sara preparava uma cesta de pic-nic e lanchavam tranquilas à sombra dos pinheiros.

- Está me habituando muito mal com esses sanduíches deliciosos que prepara – disse-lhe D. Emília certa ocasião.
- Só não podemos exagerar. Apesar de Feliciano ter me dito que a senhora possui uma saúde de ferro, não é bom substituir as refeições convencionais por muitos dias seguidos.
- Você melhorou bastante para quem até me deixou sem almoço.
- A senhora mereceu.
- Sabe, Sara, havia um restaurante perto do centro da cidade. Eu adorava ir lá. Tenho saudades às vezes...
- Do restaurante?
- Não, da cidade.

Sara depositou seu sanduíche de volta à cesta:

- Pode ficar aqui sozinha por um momento?
- Aonde vai?
- Aonde vamos – corrigiu Sara se afastando rapidamente.
- E aonde vamos? – perguntou D. Emília.
- Vamos ver a cidade – gritou Sara – Ela clama por nós, não pode ouvi-la?

Feliciano estava na garagem cuidando dos carros. Sara entrou afoita:

- Prepare o carro de D. Emília – pediu ela – Vamos sair!

Ele parou atônito.

- Mas o carro de D. Emília não sai da garagem a dezesseis anos...

Mas Sara não pode ouvi-lo, já ia longe apanhar D. Emília. Tinha que prepará-la para o passeio.

A tarde fora extremamente agradável, Sara conduziu Feliciano à todos os lugares importantes da cidade. Começaram pelo centro e depois aos bairros mais tradicionais de São Paulo. Atravessaram por inteiro a Avenida Paulista.

- O que é aquilo, Sara? – perguntou D. Emília.
- O que?
- Aquilo que parece uma pequena cabina vermelha.
- Ah!... É um banco vinte e quatro horas. As pessoas sacam dinheiro ali.
- Não são muito pequenas para um banco?

Sara riu jovialmente:

- Tem tanto a reaprender!
- Vou perguntar ao Salgado se temos essa coisa no nosso banco em Miami.
- A senhora tem um banco??
- Não, só algumas ações de um... Coisa à toa.

De volta à mansão, D. Emília trazia um brilho faiscante no olhar, entretanto demonstrava cansaço. Sara colocou-a na cama para que repousasse um pouco.

- Está confortável? – perguntou.
- Estou ótima – respondeu ela – Sara... Tem um cigarro aí?
- O que foi que disse?
- Ora, não se faça de desentendida, eu sei que anda fumando escondida no banheiro ao lado. Eu também quero experimentar. Ascenda um para mim.
- Não posso fazer isso, é um vício horrível!... Se nunca fumou antes, não deve começar agora.
- Eu já estou velha demais para deixar de fazer qualquer coisa... Além do mais, que diferença isso pode me fazer?

Sara hesitou por alguns momentos.

- Está bem, mas não deve tragar. Só encha a boca com a fumaça e solte em seguida, combinado?
- Eu nuca fiz nada pela metade em toda minha vida e não pretendo começar agora. Vai ensinar-me a tragar, sim! – afirmou determinada.

Sara ascendeu dois cigarros, deu um a ela e passou a ensiná-la a puxar a fumaça:

- Bem devagar para não engasgar – recomendou Sara – Nas primeiras vezes, irá sentir uma leve tontura, depois passa... Eu ainda não acredito que estou fazendo isso!
- Relaxe Sara, não é tão grave assim.

D. Emília levou desajeitadamente o cigarro á boca e puxou profundamente a fumaça: uma, duas, três vezes.

- E então? – perguntou Sara.
- Parece bom. O quarto todo está girando...
- É melhor parar.
- Sabe de uma coisa?... Os atos de rebeldia sempre me atraíram. Faremos juntas outros atos como esse.
- Podemos chamá-los de M.P.C.I. – sugeriu Sara.
- E o que é um M.P.C.I.?
- Momentos Para Coisas Impróprias.
- Eu gostei.



7 comentários:

  1. Uma história bem contada que prende a atenção...Voltarei para ler a continuação.
    Beijo
    Graça

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  2. Oi, Bia.
    Ensinar uma velha senhora a fumar, essa foi inesperada! E você sabe sustentar um suspense, hem? Muito legal isso, além de irresistível...
    Até o próximo capítulo!
    Adh

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  3. Um beijo e o meu deserto


    DESERTO

    Vou caminhando pelo deserto
    Ando e ando e é só areia...
    Areia, areia e nada mais...
    Estou cansada...
    Os meu lábios estão secos...
    Muito secos...
    E eu no meio do deserto...
    Só te queria ter...
    Para beijares os meus lábios...
    E me tirar a sede...
    E espero-te para acalmar...
    A minha ânsia....
    A minha sede...
    E o meu desejo...
    Desejo louco de te ter...
    De te poder tocar...
    E finalmente ser feliz...

    LILI LARANJO

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  4. Passei por aqui Ótimo findi !

    Beijos Meus !

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  5. Adoraria mal poder acreditar ouvir a sonora gargalhada de D. Emília.
    Para quem anda triste ela deve ser demais!

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  6. Bia querida sempre com novas surpresas! Aguardando as próximas emoções.... Bjusss

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  7. Não consigo parar de ler.. muito bom.. estou aqui de volta acompanhando.. uma história muiito boa.. Parabéns!!

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco