quarta-feira

CAPÍTULO IV

"É Preciso Ver os Anjos"




Leo montou seu escritório, mas fechou um ano depois. Amontoou as instalações num guarda-móveis e começou a trabalhar em casa na elaboração de pequenos projetos. Sem referencia e sem telefone, visitava pessoalmente as empresas e construtoras recrutando clientes. Entretanto, eles ficavam cada vez mais escassos e não acharam outra saída a não ser se mudarem novamente para um apartamento de quarto e sala.

Depois do primeiro aniversário das gêmeas, Sara decidiu começar a pintar. Vendeu em segredo um par de brincos que Leo havia lhe presenteado quando soube da gravidez e comprou telas, tintas, pincéis e alguns livros de artes plásticas para estudar; o talento ela já possuía. Armou seu cavalete ao lado da prancheta do marido no meio da sala de estar, e começou a colocar em prática idéias há muito armazenadas. Produzia em média, dois trabalhos por semana e passou a assinar S.V. Romanelli. Temas simples como: O troco tortuoso de uma árvore, ou cenas do cotidiano, tal como um garoto empinando uma pita, por exemplo, tornavam-se preciosos elementos que ela retratava com extrema sensibilidade e o poder que possuía de ver com olhos de artista.

Plinio vendia seus trabalhos na Praça da República nos finais de semana, mas as propostas de preços às vezes, eram tão baixas que mal dava para cobrir os materiais. Apesar disso, em certas ocasiões achava extremamente prazeroso trabalhar em casa ao lado de Leo; eles conversavam, riam, trocavam opiniões e vez por outra, as gêmeas apareciam multicoloridas de tinta a óleo.
Sara pintou um quadro das gêmeas sentadas num tapete florido como estudo; gostou tanto do resultado, que decidiu emoldurar e pendurá-lo na parede para decorar a sala do pequeno apartamento.

Plinio veio procurá-la numa tarde de domingo acompanhado de um homem. O mesmo homem, que o cercara na saída do prédio de Sara e lhe oferecera ajuda para carregar os quadros. Ele pediu para desembrulhar e examinar os trabalhos e ofereceu levar Plinio até a praça. Antes de se despedirem, disse que voltaria com uma proposta. Plinio prontamente contou a Sara o ocorrido, mas ela pareceu não dar muita importância. Agora, porém, o tal homem estava sentado à sua mesa da cozinha saboreando uma xícara de chá com torradas enquanto falavam de negócios:

- Prefiro que trate tudo com Plinio – dizia ela – Afinal, foi ele quem o trouxe até mim, senhor...
- João. Meu nome é João.
- Como dizia Seu João, não seria justo com o Plinio se tratasse diretamente comigo. Pago uma pequena comissão a ele pela venda dos quadros e...
- Oh, eu entendo, perfeitamente!... Acho isso muito justo e uma atitude nobre de sua parte – elogiou-a – Agora mais do que nunca seus trabalhos me interessam. Tratarei dos preços com ele sem problemas.
- É algum tipo de Marcham, Sr. João?
- Digamos que sim. Por enquanto, posso lhe garantir que não se arrependerá se pintar somente para mim. Saberei recompensá-la muito bem – assegurou-lhe ele – ...E não estarei fazendo-lhe nenhum favor, é possuidora de um talento que há muito eu não via.
- Nem sei como lhe agradecer...
- Pois então não agradeça, apenas pinte – disse ele – Mas deixe que suas emoções dirijam suas mãos. Permita que cada pincelada reflita um pouco de você, do que lhe vai à alma... Faça com que cada observador possa desvendar um pouco de seus segredos e sonhos. Procure uma linguagem própria através da arte e conte sua história.
- Não sei se entendi exatamente o que quer dizer – disse ela timidamente.
- Estou dizendo para deixar a ansiedade de fora e não se poluir tentando cair no gosto popular. Apenas seja você mesma.
- Isso que acaba de dizer... É a segunda vez que alguém me diz isso.


Dias depois, Plinio procurou por Sara à noite em seu apartamento, estava eufórico. Mal entrou e lançou para o alto um maço de notas de dinheiro. As notas voaram e depois caíram em zig-zag pousando sobre as mobílias.

- Não é maravilhoso! – exclamou Plinio – Seu João ficou com todos os quadros e ainda por cima pagou em dinheiro!
- Mas é muito dinheiro!! – exclamou Sara – Por quanto vendeu os quadros? Não está explorando-o, está?
- Claro que não, Sara!... Foi ele quem avaliou seus trabalhos.
- Eu não entendo...
- Ora, meu bem, ele afirmou que você tem talento – disse Leo – E depois, é óbvio que ele está revendendo seus quadros por muito mais do que isso.
- Não sei não...
- E tem mais – disse Plinio – Ele quer ficar com o quadro das gêmeas e fez uma oferta irrecusável.
- Das gêmeas?... Mas por que justamente esse?
- Sei lá, deve ter gostado – disse Plinio.
- É que... não pintei para vender, gosto tanto dele...
- Não tem que vender se não quiser – interveio Leo – Deixe-o onde está.
- Você é quem sabe – disse Plinio dando de ombros – Mas ele me disse que está disposto a pagar ainda mais por esse.

Sara retirou o quadro da parede, deslizou suavemente os dedos pela tela.

- Elas são tão parecidas com mamãe... Os mesmos olhos verdes atentos, a mesma cor dos cabelos... Ela iria adorar as netas, tenho certeza...
- Ainda poderá pintar outro, caso decida vende-lo – argumentou Plinio.
- Isso seria impossível – disse ela – Um trabalho nunca é igual a outro, é único. Nunca conseguirei reproduzir a essência desse momento novamente.

Ela colocou o quadro nas mãos de Plinio:

- Mas o dinheiro é mais importante agora. Pode vendê-lo.
- Tem certeza? – perguntou ele.
- Sim, eu tenho. Com esse dinheiro vai dar para saldar as dívidas, restituir nosso crédito... Vida nova, em fim!

Durante dois anos consecutivos, Sara vendeu tudo que produziu para o mesmo homem. Não era nada fácil para ela cuidar das gêmeas, dos afazeres domésticos e ainda pintar. Sem contar, que tinha que sair às ruas com sua máquina fotográfica, ver as pessoas e observar fatos e coisas para buscar inspiração. Trabalhava desde o raiar do sol até altas horas da madrugada, mas o dinheiro era muito bem vindo. Com ele saldaram todas as dívidas, compraram um automóvel e até mesmo um terreno. Leo começou a trabalhar no projeto da casa a ser construída e tudo parecia perfeito. Ele até mesmo chegou a propor que tirassem férias para poderem viajar a passeio:

- Podemos ir ao Paraná visitar sua tia. Sei o quanto sente saudades dela – sugeriu ele.
- Tenho tanta saudade que às vezes chega a doer.
- Então está decidido, iremos no mês que vem.
- Não! – contestou ela veementemente – Não enquanto não conseguirmos nossa casa. Dessa vez não vai me convencer do contrário.

Contudo, conseguiu convence-la que tinham que deixar aquele minúsculo apartamento e mudar-se para uma casa ampla, num bairro antigo das imediações:

- Pense bem, Sara – disse ele na ocasião – Lá será muito melhor para trabalharmos. A casa possui dependência de empregada nos fundos que podemos adaptá-la num estúdio e produziremos muito mais.
- Eu achei o aluguel muito caro, Leo – argumentou ela – Estamos bem instalados aqui, podemos esperar um pouco mais...
- Você chama isso de bem instalados? – retrucou ele – Olhe para as meninas!... Não tem espaço para brincar. E você? Volta e meia tem que lagar o trabalho para socorrê-las antes que se intoxiquem com tintas ou solventes!...

Foi o que bastou para convencê-la. Mudaram-se na mesma semana, mas Leo não ficou por muito tempo trabalhando em casa com ela. Poucos meses depois, inaugurou seu novo escritório, dessa vez maior e mais requintado. Sara ainda insistia com ele para que voltasse a enviar currículos às construtoras na tentativa de conseguir uma colocação. No entanto, ele tinha a argumentação na ponta da língua:

- Estou há muito tempo fora do mercado, meu bem... Quem vai querer contratar-me? O melhor é continuar como profissional liberal. E depois estou sentindo algo novo no ar. Sei que vai ser tudo diferente dessa vez. Estou cheio de novas idéias.

A ela não restava alternativa a não ser apoiá-lo. Só queria vê-lo feliz, como ele a fazia feliz, apesar de tudo.

E apesar de tudo, as coisas desmoronaram novamente. Seu João, o homem que comprava todos os seus quadros, desapareceu como que por encanto, sem deixar pistas. O escritório de Leo, ainda não estava rendendo lucros, e sem o dinheiro dos quadros, só faziam acumular dívidas.

- Não dá mais para segurar, Leo, temos que vender o terreno – decidiu ela tristemente.
- E o Seu João, ainda não conseguiu contatá-lo?
- Não, não há como localizá-lo – falou desanimada – Não sabemos nada dele. Nem mesmo seu endereço ou sobrenome, sempre pagou em dinheiro.
- Eu sempre o achei meio esquisito – disse ele – Avaliava seus quadros além do normal e nem ao menos dizia o que fazia com eles.
- Está insinuando que meus trabalhos não têm qualidade? – perguntou ressentida.
- Não! – negou ele veementemente – ...É só que eu tenho outra teoria. Acho que estava apaixonado por você. Pensa que eu não notei a maneira que ele te olhava?... Vai me dizer que também não notou?
- Não diga bobagens Leo!... Um senhor tão alinhado, tão distinto...
- Um velho sedutor, isso sim é o que ele é.

Sara soltou um assopro de impaciência.

- Não é hora para crises de ciúmes – repreendeu-o – É hora de decidirmos o que vamos fazer de nossas vidas!

Eles venderam o terreno, o carro, as instalações do escritório e saldaram as dívidas. Sara deixou de pintar e começou a montar peças de bijuterias para vender. Leo, mais uma vez, voltou a trabalhar em casa. Ao final do contrato de locação, eles entregaram a casa e voltaram a morar num minúsculo apartamento.
Aquele ano foi, talvez, o mais terrível; exceto pelas gêmeas, que cresciam fortes e saudáveis e pelo imenso amor que sentiam um pelo outro, viviam sem motivação. O dinheiro era escasso e as perspectivas também. Claudine finalmente casou-se com Alberto naquele ano e a carreira dele ascendia a cada dia. Leo costumava dizer a Sara que todas as portas se abriam para quem tinha pai rico e influente, e nisso ela tinha que admitir, ele estava certo.

O tempo foi passando numa velocidade vertiginosa e nada, ou quase nada mudara em seus destinos. Um destino recheado de altos e baixos, feito uma gangorra acelerada. Viviam de lá para cá como marionetes manipuladas por um operador louco.
Quando as gêmeas completaram dezoito anos, prestaram vestibular para a universidade e foram aprovadas. Nátali escolheu o curso de direito, e Nicole, psicologia. Sara comentou com Claudine sobre a escolha das meninas:

- É incrível, Claudine, como elas são tão idênticas fisicamente e tão diferentes na personalidade, nos ideais...
- Elas são maravilhosas – disse Claudine – Se o Júnior não fosse tão mais jovem, poderíamos casá-lo com uma delas. Ele só teria um sério dilema pela frente: a escolha entre uma e outra.

Com as filhas na universidade, Sara ansiava por mais segurança financeira, apesar de que nos últimos anos, as coisas haviam melhorado um pouco. Leo havia encontrado um antigo colega da universidade e se unido a ele em seu escritório já montado. Patric se revelara mais do que sócio, era amigo e companheiro. Para Sara, ele só tinha um defeito, se é que poderia classificar dessa maneira: tinha uma cabeça sonhadora, tal qual a do marido. Sara sempre tivera medo dessa particularidade de Leo; mas tinha ainda mais da ambição. Não era uma ambição pelo dinheiro, tão somente. Era o desejo incontrolável de possuir coisas fora de seu alcance. Os mesmos desejos e sonhos que os impulsionaram para baixo por todos esses anos.


3 comentários:

  1. Fiquei assim suspensa...com água na boca esperando o final... A tua história prendeu-me até ao fim.Sou tua seguidora!
    Beijo
    Graça

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  2. Aguardando as próximas emoções!!! Bjusss

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  3. Bons dias!
    De fato é isso, a história nos prende mesmo!
    Até o próximo capítulo, bjão,
    Adh

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco