segunda-feira

CAPÍTULO XVI

"É Preciso Ver os Anjos"



Redentor das Pedras
Fevereiro de 1968


Sara estava terminando de fazer as malas. Decidiu que levaria só o necessário, o resto e as lembranças, deixaria para traz. Agnes, sentada à cama enxugava uma lágrima; segurava nas mãos uma caixa de madeira:

- Se vai mesmo partir, deve levar isso com você – disse ela à sobrinha.

Sara apanhou a caixa e abriu-a. Dentre outras coisas, havia o anel de sua mãe, a plaqueta prateada com a tesourinha em relevo que Ingrid havia ganhado de Dionísio, além de muitas fotografias que ela mesma havia tirado.
Ela hesitou por um momento, depois retirou a fotografia da mãe em frente ao grupo escolar e devolveu o resto à tia:

- Vou ficar só com isso.
- Mas aqui está o anel que foi de sua mãe, o retrato a lápis que você fez no dia...
- Não ficarei com nada que me lembre aquele dia – disse Sara duramente.

Agnes suspirou e abraçou a caixa junto ao peito:

- Não vê a hora de deixar Redentor, não é mesmo? – perguntou ela.
- Esperei muito por esse dia.
- Prometi à sua mãe que não a impediria de partir... Mas agora me dá um nó na garganta vê-la ir embora – disse Agnes chorosa.
- E também me prometeu que não ia chorar – cobrou-lhe Sara
- Chorar é bom – disse Agnes – Lava a alma das angústias. Você devia experimentar. Nem chorou a morte de sua mãe e eu sei que estava sofrendo muito.
- Chorar não leva a nada.
- Talvez devesse esperar mais um pouco antes de partir... É tão despreparada, só tem dezoito anos! – argumentou Agnes.
- Esperar o que, tia Agnes?... Não há mais nada para mim aqui. Em outro lugar, posso voltar para escola. Quem sabe, estudar belas artes... Mas primeiramente vou arrumar um emprego.
- Já tem um emprego. Dirigiu tão bem os negócios de sua mãe todos esses anos – insistiu Agnes – E depois a cidade está melhorando. Já temos agencia de correio, cartório, muitos comércios... Está crescendo rápido.
- Ora, tia Agnes, eu quero muito mais do que isso!... Quero um diploma, uma profissão de verdade. E além do mais esse lugar me traz péssimas recordações. Não poderia ser feliz aqui.

Sara fechou a mala e colocou-a num canto perto da porta.

- Você já resolveu o que vai fazer com a casa? – perguntou Agnes.
- Resolvi aceitar a proposta daquele homem.
- O tal Antônio Munhoz? Mas ele quer pagar uma ninharia por ela! – protestou Agnes.
- É melhor do que nada. Vou abandoná-la de qualquer maneira, ninguém quis se instalar aqui. Sabe como essa gente é supersticiosa. E depois não posso esperar que ele pague um preço justo, nem mesmo possuo escritura do cartório de registros de imóveis.
- Quando irá vê-lo?
- Hoje à tarde – informou Sara – Tia Agnes, não achou estranho ele dizer que não conheceu mamãe?
- Achei. Ele é um lojista de São Martinho. Ingrid costurou muito tempo para ele. Você deve lembrar-se dos belíssimos vestidos de noiva...
- Sim, eu me lembro... Mamãe tinha mãos de fada – disse Sara com brilho nos olhos.
- Quem irá substituí-la na direção da confecção?
- A Dona Iracema ficará na direção dos costureiros no novo salão que está sendo construído. Ela está mais bem preparada e também é sozinha, tem mais tempo livre. Só visita o Joaquim no sanatório aos domingos, será bom para ela.
- Pobre Joaquim...
- Pobre da minha mãe que foi a maior vítima desse lugar!

Naquela tarde, Sara recebeu Antônio Munhoz na cozinha com uma xícara de café. Agnes também estava lá.

- Bem, eu acho que está tudo acertado – disse o homem – Vou lhe fazer o pagamento.
- Não pode pagar um pouco mais? – interveio Agnes – Como sabe, minha sobrinha vai deixar a cidade e precisa recomeçar.
- Lamento muito, Irmã, mas é só o que vale... Na verdade, só estou dando uma gratificação a ela por me ceder a posse do lugar, uma vez que não tem nada legalizado... E depois, só me interessa mesmo o terreno.
- O que vai fazer com a casa? – perguntou Sara.
- Pretendo demoli-la – respondeu ele – Não vejo como aproveitá-la no negócio que pretendo iniciar aqui.

Sara levantou-se da mesa e deu alguns passos. Deslizou suavemente os dedos pelos troncos rústicos que compunham as paredes da casa. Quantas lembranças... Quantos momentos felizes, outros pungentes; quantos momentos meramente vividos eles foram testemunhas...

- Alguma dúvida, senhorita? – perguntou o homem.
- Não, nenhuma dúvida – disse ela voltando à mesa – Onde mesmo que o senhor quer que eu assine?
- Bem aqui nessa linha – apontou ele.

Sara pegou a caneta e assinou onde ele havia indicado sem mesmo ler o que estava escrito.

- O que são esses papéis? – quis saber Agnes.
- Trata-se de uma seção de direitos... Pura formalidade – disse ele ao acaso – Então a senhorita vai para a Capital?
- Não. Eu vou para São Paulo.

Agnes fechou os olhos numa prece.

- Não tem medo? – perguntou o homem – Afinal uma mocinha sozinha em São Paulo é sempre um risco...
- Viver é um risco.

O homem foi embora e Agnes voltou para o convento. Sara preparou uma refeição rápida e se enfiou na cama; pretendia dormir cedo. Um longo dia a aguardava ao amanhecer. Agnes ficou de pegá-la logo pela manhã, bem cedo, para levá-la para a estação ferroviária e queria estar pronta quando a tia chegasse. Contudo, o sono não vinha; estava ansiosa demais para dormir. As quatro da manhã ainda estava acordada e decidiu se por de pé a fim de aprontar-se para a viagem.
Na estação, Agnes abraçou e beijou afetuosamente a sobrinha:

- Acha que tem dinheiro suficiente?
- Mais do que suficiente, não se preocupe.
- Promete-me que vai escrever contando tudo?
- Sim, eu prometo, mas, por favor, não chore mais... Quero levar uma lembrança boa desse momento.
- Tem razão, querida, vou rezar muito por você... Está levando o endereço do pensionato para moças que apanhou com aquele vendedor viajante?
- Estou.
- Se algo sair errado, vai voltar para cá não vai?
- Vou – mentiu. – Mas nada vai sair errado, eu vou ser feliz, pode apostar.
- Eu sei que vai, meu bem... Vem visitar-me algum dia?
- Antes do que você possa imaginar. Você é a única coisa boa que ainda possuo. Quando a saudade estiver insuportável, eu virei. – prometeu ela subindo no trem.

Sara acomodou-se junto à janela, deu um último olhar para a tia, e levantou a mão num aceno de adeus. A locomotiva começou a mover-se rumo ao desconhecido. No entanto, estranhamente, não estava com medo. Sentia uma deliciosa sensação de bem estar; como se algo muito importante estivesse à sua espera para ser encontrado. Ainda não sabia o que era, mas iria descobrir.

A imagem da velha locomotiva difundia-se no horizonte tornando-se cada vez menor. Agnes enxugou o rosto e enfiou a mão no bolso do hábito para apanhar a chave do furgão de Ingrid que a sobrinha havia deixado para ela. Encontrou um maço de notas de dinheiro. O valor do dinheiro representava mais da metade do que Sara conseguiu juntar com suas economias e a venda da casa. Ela havia colocado no bolso da tia quando se abraçaram na despedida. No meio das notas, um breve bilhete:

“Queria muito lhe dar um presente que traduzisse todo meu amor e gratidão por você. Ma sei que não tem apego às coisas materiais, então eu desisti. Use o dinheiro para realizar algo realmente desejável para você como lembrança de mim”

Afetuosamente,

Sara.


Agnes comprimiu fortemente o pedaço de papel entre seus dedos e levou junto ao peito. Um pressentimento fê-la enrijecer por dentro. O pressentimento de que não mais voltaria a ver Sara novamente.


5 comentários:

  1. sempre com grandes expectativas esperando os próximos capítulos..
    uma ótima semana.
    beijos

    Beeta

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  2. quanta emoção!!
    sempre aqui!!
    beijos

    beeta

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  3. Enfim vou respirar... rsrsrs Essa sensação de suspense, expectativa pelo que vem por aí... Estou adorando a historia... Se precisar comprar pra ver o final da história, farei com prazer, só exigiria que fosse autografado rsrss.
    Mera opinião. Não perca essa oportunidade querida Bia!
    Bjusss

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  4. Que ansiedade. Sara mudando de vida está mais calma que a gente!
    Abç, até o XVII.
    Adh

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  5. Continua o suspense e a minha grande expectativa.
    Espero com ansiedade novo capítulo.
    Manuel Aldeias

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco