sexta-feira

CAPÍTULO XIV

"É Preciso Ver os Anjos"





12 de agosto de 1964.



Logo pela manhã, Ingrid notou algo de estranho no ar. Havia uma movimentação diferente na casa. Primeiro foi Agnes, que passou por lá rapidamente, mal falou com ela e foi procurar por Sara. Depois foi Leopoldo que esteve no portão e nem entrou para vê-la.
Ela não comemorava um aniversário desde que chegara ao Brasil, o último ainda fora na Hungria e ela tinha mais ou menos a idade de Sara. Emocionou-se ao perceber que a filha estava preparando uma festa surpresa para ela e decidiu entrar no jogo. Fingia estar concentrada no trabalho, mas na verdade, estava pensando na roupa que usaria.

No final da tarde, estava tudo pronto. Sara escondera os enfeites embaixo de sua cama e só faltava executar a última parte do seu plano: afastar a mãe de casa para que ela e Dionisio pudessem decorar o salão e a tia trazer o bolo e os doces. Dionisio iria logo após, com o furgão de Agnes, buscar os convidados em duas ou mais viagens.

Sara apontou no salão como se viesse do portão:

- Mamãe...
- Sim?
- Dionisio esteve aqui ainda pouco... Trouxe um recado de Leopoldo. Ele quer falar com você lá no posto.
Tão cedo!... Ainda nem me arrumei.
- Tudo bem – disse ela – Mas primeiro vou tomar um banho rápido. Fez tanto calor hoje... Nem parece que estamos no inverno.

Enquanto isso no posto de saúde, Joaquim entregava uns envelopes a Leopoldo. Continham resultados de exames de laboratórios.

- Estão todos aqui? – perguntou Leopoldo.
- Sim, senhor.
- Como foi no dentista?
- Tudo bem. Dona Margarida colocou dentadura.
- É mesmo?... E ela gostou?
- Acho que sim. Rio tanto na volta que a dentadura até caiu da boca.

Leopoldo não pode deixar de rir. Achou graça na maneira dele relatar o episódio, mas Joaquim continuava sério, e parecia-lhe agora mais do que de costume.

- Aconteceu alguma coisa Joaquim?

O homem tirou o chapéu. Parecia acabrunhado.

- Aconteceu uma coisa em São Martinho... o Doutor Advogado, aquele que o senhor mais dona Ingrid contrataram pra...
- Sim, o Anselmo, o que tem ele?
- O escritório dele pegou fogo... Foi à noitinha... Ele já devia ter ido embora, mas ainda estava lá.
- Oh, meu Deus!...

Leopoldo debruçou a cabeça sobre a mesa. Tinha a sensação de estar num infindável pesadelo.

- E... como ele está?
- Disseram que tá muito queimado lá no hospital... Que não escapa não.
- Quem disse?
- O pessoal do laboratório.
- E o que mais eles disseram?
- Bem, “tão” dizendo por lá que não foi acidente, não. Um bêbado que ia passando, jura que viu dois homens entrando no escritório do doutor pouco antes do fogo começar... Mas quem vai acreditar em conversa de bêbado?
- Tem razão. Quando aconteceu?
- “Onteonte”.
- Joaquim... quero lhe pedir um favor... Como sabe, hoje é o aniversário de Ingrid e Sara preparou uma festa surpresa para ela.
- Ah, sim, eu sei. Nos lá de casa também vamos à festa... Meu Dionisio até mandou fazer um presente pra ela na Capital... Coisinha simples.
- Não conte nada a ela. Não podemos estragar tudo que a menina preparou com uma notícia tenebrosa dessa. Amanhã, quando tudo voltar ao normal, eu mesmo conto.
- O senhor tem razão. Dona Ingrid vai ficar pra morrer.

Joaquim cruzou a porta da saída no mesmo instante em que Ingrid estacionou o furgão. Cumprimentaram-se e ela entrou a procura de Leopoldo:

- Você queria falar comigo?

Leopoldo notara de imediato que ela estava mais bem arrumada do que o de costume, mas resolveu fazer exatamente como combinara com Sara:

- Quero sim – disse ele – Venha ver uma coisa.

Ele levou-a até o jardim dos fundos.

- São os meus gerânios – disse Leopoldo agachando-se entre os canteiros – Olha como ficaram feios de repente. Acha que estão doentes?
- Como posso saber?... Você o médico aqui!

Leopoldo ficou imóvel, olhava-a numa atitude de quem não esperava aquela resposta. Ingrid explodiu numa gargalhada!

- Do que está rindo? – perguntou ele com ar de desentendido.
- Da sua falta de imaginação. Francamente, Leopoldo!... Gerânios doentes?
- Foi só o que me ocorreu... Quando soube?
- Hoje pela manhã. Mas não se preocupe, não vou estragar a surpresa de Sara – prometeu ela – Que tal um Hóóóóóóó!! bem efusivo?

Ingrid fazia gestos e caretas hilariantes, mas pareceu-lhe que Leopoldo estava diferente, meio distante. Ela assumiu um ar sério:

- Está com algum problema?

Ele pensou por um momento.

- É claro que sim! Meus gerânios estão doentes.


Ingrid estava realmente surpresa. Nunca vira nada tão lindo em toda sua vida! A porta larga e alta da entrada do salão, estava coroada com arranjos de flores silvestres brancas e amarelas. A primeira impressão que teve era de que estava sozinha, tamanho era o silencio. A única iluminação no salão vinha das velas de um grande bolo retangular em cima da comprida mesa de costura, agora coberta com uma toalha branca; pétalas de rosa estavam espalhadas em toda sua extensão. Forçando um pouco a vista, descobriu ao fundo e no alto, letras coloridas e recortadas dependuradas em um barbante, preso de uma parede à outra. Estava escrito: FELIZ ANIVERSÁRIO INGRID.

Alguém ascendeu as luzes e todos entoaram numa só voz o parabéns-à-você. Ingrid permaneceu ali, parada na porta, olhos emocionados, um terno sorriso nos lábios. Sabia que lembraria daqueles momentos enquanto vivesse. Sara se aproximou dela, trazia nas mãos uma cartolina branca enrolada e presa por um laço de fita.

- Feliz aniversário, mamãe – cumprimentou a menina entregando-lhe o presente.
- Obrigado querida... O que é isso?
- Abra e veja.

Ingrid soltou o laço e desenrolou a cartolina.

- Oh!... Mas é o meu retrato!
- Sempre quis desenhar você.
- Está lindo!... Não sou tão bonita assim...
- Eu copiei daquela fotografia que tirei de você.
- Não podia me dar um presente mais singelo!

Leopoldo aproximou-se com as mãos para traz:

- E esse é o presente de todos nós aqui de Redentor – disse ele solenemente entregando-lhe uma caixinha aveludada.

Ingrid tomou-a e foi abrindo bem devagar como se quisesse saborear cada momento. O que viu deixou-a sem fala. Era uma brincadeira do pessoal – pensou a princípio – Mas não, era real.

- É o meu anel! – exclamou sem sombras de dúvidas ao olhar para aquele par de esmeraldas – Como é possível?... Eu vendi em São Martinho!
- Nós o compramos de volta – esclareceu Leopoldo – Queríamos devolvê-lo a você, pois sabemos do valor inestimável que ele representa. E lhe devíamos isso.
- Parece um milagre! – disse ela com olhos reluzentes – Não imaginam como foi difícil separar-me dele...

Repentinamente, ela fechou a caixinha e devolveu-a a Leopoldo:

- Não posso aceitar – disse ela terminantemente – Não seria justo para com Agnes. Ela também deu o seu anel. Ficarei feliz da mesma forma se este ficar com ela...

Ingrid olhou para Agnes e se surpreendeu ao ver que a irmã exibia sorridente um anel idêntico ao seu.

- Acha que nós esqueceríamos de Agnes? – perguntou Leopoldo – Compramos o dela também.
- Como conseguiu depois de todos esses anos? – surpreendeu-se – Deve ter dado um trabalhão juntar os dois... Só vocês mesmo para nos prepararem essa surpresa!
- Não foi difícil – disse Leopoldo – Para lhe ser franco, foi até muito fácil. Os anéis ainda estavam em poder do joalheiro e sentiu-se aliviado quando disse que desejava comprá-los de volta.
- Como assim?...
- Ele descobriu tarde demais quando pediu avaliação a um perito, que as esmeraldas eram na verdade turmalinas. Pedras perfeitas e de muita beleza, porém de pouco valor comercial.

Todos caíram em gargalhadas.

- Seja sincera conosco, Ingrid, você sabia, não sabia? – perguntou Leopoldo.
- Digamos que eu apenas suspeitava – declarou maliciosamente –... Mamãe nunca teria dinheiro suficiente para nos presentear com jóias tão valiosas.
- Você o enrolou direitinho – disse Leopoldo – Não imagina com que satisfação me vendeu os anéis!
- Não deviam ter feito isso – disse emocionada – Aquele sovina deve ter explorado vocês... Agnes e eu não...
- Ora Ingrid, devemos aceitar o presente – interveio Agnes – O joalheiro concordou em receber o mesmo valor que pagou a você e todos colaboraram, não pesou para ninguém.
- Tem razão, Agnes. Só não esperava algo assim tão significativo... Não encontro palavras para expressar toda a emoção que estou sentindo. E o quanto me fizeram feliz com essa festa, esses presentes... Não sei se sou merecedora de tanto carinho...
- Mas ainda não acabou – disse Leopoldo – Dionisio também tem um presente para você.

O rapaz se aproximou tímido e entregou a ela outra caixa, esta um pouco maior. Dentro uma pequena placa prateada com uma tesourinha dourada em relevo. Estava escrito: A Cidade da costura presta uma pequena homenagem para uma grande mulher: Ingrid Vankovsk – Redentor Das Pedras, 12 de agosto de 1964.

- Obrigada Dionisio.

Não conseguiu dizer mais nada. Lágrimas quentes escorriam-lhe pelas faces e dessa vez, eram de felicidade.

Sara pegou-a pela mão:

- Bem, agora que você já inundou o salão, vamos cortar o bolo que Leopoldo vai tirar as fotografias.

Mais tarde quando todos saboreavam o bolo e conversavam animadamente, Ingrid apanhou seu xales e saiu para olhar a noite. O clima estava agradável apesar da suave brisa que ondulava seus cabelos.
Sara sentiu falta da mãe e saiu à sua procura. Foi achá-la à frente do quintal, recostada na parede do salão.

- O que está fazendo aí sozinha? – perguntou a menina.
- Nada demais. Só estava aqui olhando o céu.
- Você gosta de olhar o céu, não é mesmo, mamãe?
- Ele é bom conselheiro.
- Como assim?
- Faz com que pareçamos seres em miniaturas e nos coloca no devido lugar. Obriga-nos a despir-se de toda vã vaidade, e nos leva a refletir na sabedoria de Deus.
- Você diz coisas tão esquisitas às vezes...
- São coisas verdadeiras. Vai entendê-las quando for mais velha.

Sara abraçou-se à mãe.

- Quero lhe contar uma coisa – disse ela – Eu também gosto de olhar o céu. Gosto de ver os anjos.
- Anjos!?
- Sim, anjos. Eu posso vê-los às vezes desde que eu era bem pequena. Voam aos milhares pelo céu.
- Sara! O que está dizendo?
- Você não acredita, não é mesmo?
- Não sei o que dizer...
- Não estou mentindo. Eu juro.
- E como são eles?
- Não são bebês como aparecem nos vitrais lá do convento. São figuras adultas.
- E o que mais?
- Eles são brilhantes como o sol e possuem asas enormes.
- Pode vê-los agora?
- Sim. Estão começando a chegar.
- E você pode ouvi-los, quero dizer, falam com você?
- Não, eu apenas os vejo voando lentamente entre as nuvens. Parecem nos espionar.

Ingrid segurou a filha pelos ombros e fitou-a fundo nos olhos:

- Sara minha querida, tem certeza do que está me contando?
- Não acredita que isso possa ser possível, não é mesmo? Acha que sou louca?
- É claro que não, meu amor, és privilegiada!... Tem um coração puro e é por isso que os vê. Contou isso à mais alguém?
- Só para tia Agnes.
- Fez bem. Não deve contar isso a mais ninguém. Somente se for necessário, promete?
- Prometo. Mas quando será necessário?
- Eu não sei. Mas alguma coisa me diz que você saberá.

As duas ficaram abraçadas, caladas e felizes sob a magia daquele céu estrelado. Não saberiam dizer quanto tempo se passou até ouvirem o estrondoso relinchar de um cavalo saltando por cima da cerca de ripas e postando-se diante delas. Assustadas, elas recuaram. Ingrid instantaneamente passou Sara para trás de si. Todos correram para fora para saber o que se passava.

O cavaleiro montado tinha uma aparência assustadora; colocou-se diante de todos, troteava desordenadamente com o cavalo numa atitude ameaçadora. Trazia uma espingarda presa à cela e um revólver no cinturão. Ingrid entregou Sara à Agnes e avançou alguns passos:

- O que faz aqui em minha casa? – perguntou.
- A Dona deve ser a tal gringa mulher-macho, tô certo? – perguntou o homem com um sorriso debochado.

Ingrid sentiu o sangue ferver, mas algo lhe disse que tinha que manter a calma ou colocaria todos em risco:

- Quem é o senhor e o que faz aqui? – tornou a perguntar.
- Trouxe um aviso do Seu Prefeito “Coroné” Ferreira: Ele quer todos vocês fora dessas terras até amanhã ao meio-dia e é o último aviso! – disse ele em tom ameaçador.
- Ele não pode fazer isso! – protestou ela.

Leopoldo aproximou-se e tocou levemente em seus ombros:

- Calma, Ingrid. Se perdermos o controle, perderemos a razão – ponderou – Eu falo com ele.

Leopoldo se colocou a frete de todos para dirigir-se ao homem:

- Tenório, eu sei que se lembra de mim. Porque não apeia do cavalo e vamos conversar lá dentro?
- O menino me desculpe, mas o “Coroné” disse que o senhor não é mais filho dele, portanto o aviso serve para o senhor também.
- Nesse caso, volte para São Martinho e diga ao Coronel que sabemos que essas terras não lhe pertencem mais. Que estamos agindo dentro da lei e não vamos aceitar ameaças – concluiu Leopoldo.

O homem soltou uma gargalhada atroz.

- Quem foi que falou em lei aqui? – indagou ele presunçosamente – O “Coroné” é a lei por essas bandas. Ele manda e todo mundo obedece!

Nesse momento, Ingrid sentiu que tinha que reagir, não podia mais se deixar intimidar. Alguém tinha que dar um basta à tirania daquele homem monstruoso:

- Não aqui em Redentor! – revidou ela enfurecida – Não temos Coronel e tão pouco estamos sob as ordens do prefeito! Não nos submeteremos aos seus delírios egoístas de poder e não sairemos de nossas casas!... Esse é o meu recado que deve levar ao seu patrão.
- A Dona falou bonito – debochou ele – Mas vai, deixar as terras, sim... Até amanhã ao meio-dia!
- E se não sairmos? – perguntou ela em tom desafiador.
- Nesse caso, tenho ordens para agir... Doa a quem doer!
- Vai incendiar a cidade como fizeram com o escritório de Anselmo? – perguntou Leopoldo impulsivamente.

Ingrid lançou-lhe um olhar perplexo:

- O que está dizendo? – perguntou ela, mas ele não lhe deu ouvidos, continuou se dirigindo ao cavaleiro:
- ... Não vão permanecer impunes para sempre pelos seus crimes, Tenório. Nem você, nem o meu pai que o protege. Quando ele cair do pedestal em que se encontra agora, não quero estar na sua pele!

O homem tornou a gargalhar e saiu galopando. O pânico começou a tomar conta de todos. Tinham permanecido calados até então, agora falavam todos ao mesmo tempo alvoroçados. Ingrid chamou-os para dentro, afim de acalmá-los. Tinha que utilizar toda sua capacidade de raciocínio nesse momento e tinha que fazer isso com rapidez:

- Silêncio, por favor! – pediu ela – Quero que ouçam com atenção. A situação é delicada, mas acho que podemos solucioná-la pacificamente. Peço a todos que voltem para suas casas e não saiam de lá por nenhum motivo. Escalarei dois homens para que avisem aos outros do que está se passando. Encontraremos-nos amanhã, bem cedo no pátio da escola e decidiremos juntos o que faremos. Agora vão... E que Deus esteja com vocês!

Ingrid escolheu cuidadosamente entre eles, dois homens que ela julgava os mais apropriados para a tal função. Depois disso, Joaquim aproximou-se dela:

- Dona Ingrid, vou até em casa pegar o meu cavalo e seguir o rastro dele. Acho que não está sozinho, temos de saber quantos eles são.

Ela pensou por um momento, depois:

- Pode ter razão... Acha que consegue?
- Acho que sim.
- Tome cuidado para não ser visto e não se aproxime muito. Vou esperá-lo aqui.
- Tudo bem. – disse ele saindo apressadamente.
- Joaquim espere! – chamou ela – Deus te proteja!

Ingrid pediu à Agnes que levasse Sara consigo para o convento. Quando se achou sozinha com Leopoldo, quis saber acerca de Anselmo. Leopoldo relatou o que ouviu de Joaquim.

- Foi uma imprudência o que eu falei... Ninguém tem provas de nada – disse Leopoldo.
- Disse que um homem viu...
- Um bêbado, Ingrid, quem acreditaria?
- Eu acredito, e você?
- Também.
- Então basta. Não precisamos de mais provas... Como está Anselmo?
- Mal... Muito queimado no hospital.
- Maldito! Maldito! Mil vezes Maldito!

Ela esmurrava a mesa incessantemente. Só parou quando viu o sangue jorrar. Leopoldo não tentou impedi-la; caminhou até uma prateleira, apanhou um retalho de tecido branco e com ele envolveu a mão ferida dela. Depois, ficaram ali em silencio entre restos de bolo e doces, papeis de bala e pétalas de rosas. Cenário eloquente de felicidade; estavam unidos na mesma dor.

Joaquim chegou mansamente para não assustá-los e bateu levemente à porta.

- Sou eu, Joaquim.
- Entre – disse ela abrindo a porta – Conseguiu ver alguma coisa?
- Estão acampados lá pros lados das minas.
- Quantos São?
- Uns quinze eu acho.

Ingrid puxou o ar com violência:

- Oh, meu Deus!... E todos devem estar armados!
- Não deu pra ver direito apesar da lua grande, mas acho que sim – falou Joaquim. Ele enrolava nervosamente a aba do chapéu – Eu tenho uma arma... Vou pegar lá em casa e fazer vigília...
- Não Joaquim, por favor! – pediu ela prontamente – Nada de armas, nada de violência. Quero que me prometa que não tocará em arma de fogo. Eles não atirarão em pessoas desarmadas... Promete-me?
- Prometo – disse ele um tanto relutante.
- Agora vá ficar com sua família. Encontraremos-nos na escola tão logo amanheça.

Joaquim saiu e Ingrid cogitou com Leopoldo se não teria sido melhor manter Joaquim por perto, tinha medo do temperamento rude dele. Era imprescindível manter tudo sobre controle até acharem uma saída. Saída essa, que ela e Leopoldo buscavam desesperadamente.

- O que faremos? – perguntou Leopoldo.
- Não sei... Não temos para onde levar toda essa gente. Por outro lado, não podemos arriscar deixá-las aqui e correr o risco... Ainda têm as mulheres, as crianças...
- Encontraremos a solução quando o dia amanhecer – disse Leopoldo tentando acalmá-la, mas nem mesmo ele acreditava nisso.
- E se fôssemos tentar negociar mais calmamente com esse tal Tenório? – cogitou ela – Ele é o chefe do bando, não é?
- De nada adiantaria, Ingrid... Eu conheço o Tenório, cumpre ordens do Coronel como um cão adestrado.
- Então eu irei até o Coronel! – declarou determinada.
- Eu iria agora mesmo com você se tivesse a mínima esperança que ele nos receberia, mas não é o caso... E depois, não há tempo para isso.
- Mas pode ser a nossa única saída!... Ele não quer só as terras, quer vingar-se de mim, quer evidenciar sua supremacia humilhando-me, reduzindo-me a pó para poder pisar com suas botas...

Ela parecia feita de pedra, estava pálida, gelada. Leopoldo preocupava-se com ela, entretanto não podia alimentá-la com falsas esperanças. Estava entre o desejo de ampará-la e o dever de ser honesto.

- Não permita que a amargura te domine, Ingrid...
- Não estou amarga, estou vencida. Ele quer que eu me renda ao seu poder e é exatamente isso que eu vou fazer. Vou até lá e pedir perdão de joelhos. Rastejarei, se for preciso... Deixarei que saiba que ele venceu... Ele venceu!

Leopoldo estava aturdido mediante a decisão dela. Até onde seria capaz de ir para proteger aquela gente? Era uma guerreira forte e corajosa, entretanto, estava disposta a dobrar-se perante o inimigo para proteger outras vidas, sem se importar consigo mesma. Enganara-se ao dizer que estava vencida. Esse era mais um ato de bravura do que de derrota. Ele tinha que confessar-se covarde e egoísta diante disso, pois no meio de tudo, só um pensamento apavorava-o: O de perdê-la par sempre.

- Se essa é sua decisão, estou pronto para ir com você, mas se não voltarmos a tempo? – perguntou ele – Mesmo que saíssemos agora, dificilmente estaremos de volta antes do meio-dia.

Ela foi até a janela e abriu-a, e depois se voltou para Leopoldo:

- O dia não tarda a amanhecer. Iremos até à escola, reuniremos a todos e os conduziremos até o convento. Lá estarão protegidos até retornarmos e os jagunços pensarão que deixaram a cidade.
- Pensa mesmo que Madre Terezinha concordará com isso?... Sejamos honestos, Ingrid, a Madre nunca se importou com essa gente...
- Terá que se importar agora!... Mesmo porque não pretendo informar-la de antemão. Não lhe darei chance de recusa.
- E se eles saquearem e queimarem as casas?
- Temos que estabelecer prioridades e a prioridade no momento é a vida daquelas pessoas. O resto é o resto.

Os dois chegaram à escola. Muitos já estavam lá, outros foram chegando. Ingrid buscou um lugar de destaque para que todos pudessem ouvi-la. Falou com cautela, porém com determinação. Tentava a todo custo mantê-los unidos e pacíficos, entretanto os acontecimentos tomariam rumos totalmente inesperados.

Ingrid estava concluindo seu raciocínio:

- É por isso que Leopoldo e eu chegamos à conclusão de que o convento é o lugar mais seguro para levá-los...
- A senhora vai nos desculpar, Dona Ingrid, mas nós não vamos fazer o que a senhora está pedindo...

Joaquim furava a multidão em direção a ela:

- ... Quando chegou aqui, a senhora nos deu trabalho, nos deu esperança e vontade de viver. Tudo que temos devemos à senhora, mas não somos maricas para ficarmos escondidos, ainda temos nossa honra... As mulheres e as crianças, tudo bem, mas nós os homens, decidimos que vamos barrar a entrada deles na cidade... Vamos defender tudo que a senhora nos ajudou a construir com nossas vidas, se não tiver outro jeito. E daqui só sairemos mortos!

Dizendo isso, Joaquim se dirigiu à porta, seguido por todos os homens. Ingrid entrou em pânico. Tinha que detê-los a qualquer custo!

- Esperem!... Não façam isso!... Esperem!

Ela gritava em vão. Os homens saíram em marcha em direção à estrada que levava às minas.

- Vamos atrás deles, Leopoldo, temos que evitar esse confronto!

A uns três quilômetros das minas, comandados por Joaquim, eles pararam e deram-se os braços formando uma barreira humana. Ingrid e Leopoldo tentaram por todos os meios fazê-los mudar de idéia e voltar. Tudo inútil. Estavam irredutíveis.

- O que nos resta fazer agora? – perguntou Leopoldo abatido.
- Rezar. Rezar e esperar.

Já passava do meio dia e os homens ainda continuavam ali, agora sentados no chão, vencidos pelo cansaço. A espera era enlouquecedora. Talvez tenham desistido – pensava Ingrid – Queriam somente nos assustar... É isso, eles não virão.

A ansiedade a fazia delirar. Pensou ouvir o galopar de cavalos ao longe; aguçou os ouvidos para certificar-se de que não passava de fruto de sua imaginação, mas tão rápido quanto seu pensamento, os homens se puseram de pé.

- Agora! – gritou Joaquim – Lá vêm eles!

Tudo aconteceu num piscar de olhos. Os homens se posicionaram lado a lado fechando a passagem. Os cavaleiros se aproximavam cada vez mais veloz. Quando estavam a uns cem metros de distância, Joaquim sacou do revólver a atirou para o alto, na intenção de assustar os cavalos e fazê-los parar. Os cavalos relincharam, ergueram suas patas dianteiras à pino derrubando alguns cavaleiros. A rajada de tiros veio a seguir: Certeira. Impiedosa. Os homens corriam em todas as direções tentando se proteger. Corpos caiam crivados de balas, os cavaleiros uivavam gritos de guerra num ritual macabro de comemoração.
Leopoldo gritava, pedia, implorava para que parassem, mas parecia não ter fim. Ingrid viu o momento exato em que uma bala atingiu em cheio a cabeça de Dionisio a poucos metros de distância. O rapaz tombou instantaneamente na relva verdejante da beira da estrada.

- Naaaaaaaao!! – gritou ela em desespero enquanto corria em direção ao rapaz.

Primeiro foi o impacto que a jogou ao chão, depois uma dor intensa, e a seguir, a escuridão.

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Ingrid ouvia vozes como num sonho:

- Com está ela Leopoldo? – Era a voz de Agnes.
- Consegui controlar a hemorragia, mas a situação ainda é crítica.
- Vai resistir, não vai? – A voz de Agnes soava chorosa.
- A bala não se alojou dentro dela, mas atravessou-a. Atingiu o pulmão direito e pode ter atingido outros órgãos, não tenho como saber sem uma radiografia. Temos que levá-la para o hospital imediatamente...
- Não vou à parte alguma – disse ela repentinamente.

Abriu os olhos lentamente, as imagens enevoadas aos poucos foram ficando claras. Estava na sala de curativos do posto de saúde.

- Graças a Deus recuperou os sentidos, minha Irmã!... Que susto levamos! – exclamou Agnes aliviada.
- Não deve falar, Ingrid. – recomendou Leopoldo – Não gaste suas energias, perdeu muito sangue. Vamos levá-la para o hospital em São Martinho...
- Já disse que não vou à parte alguma.
- Mas é necessário!... Não posso cuidar de você aqui. Há o risco de uma infeção...
- Você cuidou de Sara, pode cuidar de mim... Sara... Onde está ela?
- No convento com Irmã Maria Luisa, ainda não sabe de nada – informou Agnes.
- Não quero que me veja assim... Não conte a ela, não agora... espere um pouco... – Ela soltou um gemido de dor.
- Vou pegar a ambulância e levá-la agora – disse Leopoldo com determinação.
- Não permitirei que me levem à força... Morrerei antes de chegar lá... E isso é uma promessa.
- Não adianta, Leopoldo – falou Agnes num suspiro – Eu a conheço, não conseguiremos levá-la. Tem que cuidar dela aqui mesmo.

Leopoldo tomou a mão de Ingrid entre as suas:

- Então ouça, Ingrid, tente não ficar agitada. Não pense em nada. Vou lhe dar um sedativo...
- Não! – protestou ela – Não quero dormir, tenho tanto a fazer...

Ela fechou os olhos por um momento, tentou respirar profundamente como que buscando forças dentro de si, mas o ar era escasso:

- Tenho que saber... Quantos morreram?
- A maioria foi atingida de raspão, já cuidamos deles e...
- Quantos? – insistiu ela.
- Doze – respondeu Leopoldo baixando a cabeça, amargurado. A primeira vista, ela não esboçou nenhuma reação frente aquela notícia.
- Agnes... Pode fazer uma coisa por mim? – perguntou ela.
- Sim, querida.
- Providencie para que sejam sepultados aqui...
- Aqui? Mas não temos cemitério...
- ... há o terreno nos fundos da igreja. Fale com Frei José... Aqui é o lugar deles... Não poderão mais ser expulsos.
- Farei isso.
- Leopoldo... deixe-me sozinha com minha irmã por alguns momentos... por favor.

Leopoldo acabara de tirar a temperatura dela e estava subindo. Medicou-a através do soro e saiu relutante. Sentia-se péssimo, impotente. Não só pelo estado dela que ele pressentia ser grave, mas diante sua determinação e recusa de ir para o hospital. Mesmo que mortalmente ferida numa cama, ainda era a mais forte que todos ali.

- Agnes, – começou ela depois que a porta fechou – tenho um pedido urgente a fazer-lhe... Quero que vá imediatamente à São Martinho buscar Frei Henrique.
- Aquele da carta?... Disse que não o conhecia...
- Não tenho tempo para explicações agora. Vá e traga-me ele o mais rápido possível... É muito importante.
- Irei depois que lhe preparar uma canja. Precisa se alimentar...
- Não há tempo para isso... Pedirei a Leopoldo que trate disso depois... Agora vá. Vá depressa!

Agnes partiu em busca do Frei. Estava com o coração apertado. Rezava pela vida da irmã. Temia não chegar a tempo.

No posto de saúde, Leopoldo lutava com os recursos que possuía para diminuir a dor e a febre. Ministrava-lhe doses maciças de antibióticos a fim de controlar a infecção, que ele sabia já instalada. Mas ela parecia perder as forças, a cada instante, um pouco mais. Não restava mais nada a fazer, a não ser, ficar ao lado dela até que o tempo se esgotasse.

- Leopoldo...
- Não fale.
- Tem que manter viva por mais um pouco...
- Não diga bobagens, vai viver cem anos, esqueceu?
- Nos dois sabemos que não.
- Vai, sim. Somos ou não somos uma dupla?
- Somos mais do que isso... Somos irmãos.
- Se tivesse a tua coragem lhe diria tantas coisas...
- Precisou de muita coragem para não dize-las.
- Fui tão óbvio assim?
- Vi você naquela noite no meu quarto do hotel.
- Perdoe-me... Traí sua confiança... Apaixonei-me...
- Nunca me disse, respeitou nossa amizade... Foi um cavalheiro.
- Não deve mais se esforçar.
- Não me deixe dormir – pediu ela com os olhos pesados.

Agnes chegou com Frei Henrique as três da madrugada. Leopoldo ouviu quando Agnes estacionou o furgão e saiu do quarto para recebê-los.

- Como está ela? – perguntou o Frei ansioso.
- Mal – respondeu Leopoldo com olhos úmidos – Já fiz tudo que podia... Não há mais esperanças... A infecção se generalizou. Agora é uma questão de horas.

Agnes deixou a sala em soluços.

- Eu vou entrar – anunciou o Frei.

Ingrid estava serena. Os cabelos soltos ondulavam suaves ao redor do rosto. Ele estudou-a por alguns segundos. Era tão linda, tão jovem e cheia de vitalidade. Quantas coisas grandiosas ainda poderia realizar? Será que daqui a alguns anos ainda se lembrariam dela? Ou a sua marca se apagaria feito vento em areia fofa?

Ele segurou sua mão, abaixou-se e beijou-a de leve nos lábios. Ela abriu os olhos e sorriu para ele:

- Que bom que veio...
- Não se esforce. Não precisa dizer nada, apenas ouça-me...
- Tenho que falar...
- Vou deixar o sacerdócio, já decidi... Eu a amo, meu lugar è ao seu lado.
- Não... não há mais tempo para nós... tivemos os nossos momentos. Mandei chamá-lo por que quero que faça exatamente o contrario. Deve transferir-se para cá, auxiliar Agnes a cuidar deles... Promete que fará isso por mim?
- Sim, eu prometo.
- Promete-me também que consolará Agnes?
- Prometo – disse ele. Já não conseguia mais conter as lágrimas –...Contei à ela sobre nós... tive que contar.
- Fez bem. Agora, – disse ela soltando-se das mãos dele – Vai ter minha confissão, afinal.

Levou cerca de uma hora para que ela concluísse, de pausa em pausa, sua confissão. Quando terminou, estava fraca e exausta, entretanto, sentia como se um pesado fardo caísse por terra aos seus pés.

- ... E essa é a minha história. Acha que Deus me perdoará por isso?
- Vou rezar para isso – confortou-a – Mas não se torture tanto... Às vezes fazemos coisas por não enxergarmos outra saída.
- Eu tinha outra saída... Fui covarde... Agora não tenho mais tempo para reparar o erro.

Ela levou a mão ao peito como se quisesse prender a vida por mais um pouco. Então procurou pelos olhos dele:

- Eu pensava ter conhecido o amor, mas estava enganada... Você é o único homem que eu amei em toda minha vida.
- Eu sei.
- Prestarei contas por mais esse pecado.
- Eu também.
- Não... você, não, eu o seduzi.
- Você estava certa. Deixei propositadamente a porta aberta naquela noite... Sempre deixava quando sabia que estava na cidade.
- Eu já sabia disso, mas devo confessar que estou feliz que tenha me contado... E lhe asseguro que nenhuma outra mulher no mundo se sentiu tão desejada quanto estou me sentindo. Agora, chame-me Agnes, por favor.

Agnes lavou o rosto, soou o nariz e foi ao chamado da irmã.

- Agnes, que tumulto é esse que estou ouvindo?
- Há uma multidão rezando por você lá fora – informou ela.
- Ajude-me a sentar e penteie meus cabelos – pediu Ingrid – Já amanheceu?
- Está amanhecendo – respondeu Agnes disfarçando o choro.
- Esteve chorando?
- Não...
- Não seja boba... Sabe que não pode mentir para mim. Eu estou em paz, não quero vê-la choramingando pelos cantos.

Agnes deslizava o pente pelos cabelos sedosos da irmã. Quando terminou, Ingrid perguntou:

- Estou bonita?
- Está linda!
- Vá buscar Sara – pediu ela – Antes, tenho três recomendações a fazer-lhe: A primeira é que seja cuidadosa ao contar para ela. A segunda é que não se esqueça que me fez um juramento... Não contará nada a ela sobre o passado. Nunca!
- Mas Ingrid, ela fará perguntas quando for adulta... Não acha melhor nós duas juntas contarmos a ela que...
- Não! Você mentirá a ela se for necessário. Mentirá para protegê-la.
- E a terceira recomendação? – perguntou Agnes.
- Não tentará impedi-la de partir, se assim desejar. Espere só que ela atinja a maioridade... Não é necessário pedir para que cuide dela, não é mesmo?
- Você mesma fará isso, querida – Não segurava mais as lágrimas que rolavam sem parar.
- Já lhe disse que é minha irmã predileta?
- Já.
- Então não tenho mais nada a dizer. Vá buscar Sara.

Sara entrou sozinha no quarto. Ingrid notou de repente que ela não era mais uma criança. Transformara-se numa moça linda, alta, corpo delgado, pernas bem torneadas. Possuidora de traços fisionômicos bem definidos, mas ao mesmo tempo suaves e meigos. Parecida com o pai – pensou Ingrid enquanto ela caminhava em sua direção. Percebeu imediatamente que a filha estava assustada.

- Mamãe... está machucada! Porque não me contaram antes? – protestou ela.
- Está tudo bem, agora, meu bem.

Ingrid esforçava-se além de seus limites para parecer bem disposta.

- Está tão pálida... Parece tão abatida. Não estão escondendo nada de mim, estão? – perguntou com ar desconfiado – Não sou mais criança para ser enganada.

Ingrid sentiu o coração apertado.

- Sente-se aqui e me abrace – pediu Ingrid – Não quero que se preocupe comigo, eu vou ficar bem. Vou estar sempre com você... Acredita nisso?
- Se você está dizendo... É que estou tão assustada...
- Eu sei meu anjo... Eu sei. – Ingrid engoliu várias vezes para disfarçar o nó em sua garganta – Deixe-me olhar para você... Está se tornando uma bela moça.

Ela pôs-se a afagar os cabelos da filha. Um tímido sorriso surgiu em seus lábios.

- O que foi? – perguntou Sara.
- Estava aqui pensando... Se um pintor fosse pintá-la, certamente usaria a mesma cor de tinta nos olhos e nos cabelos.
- Não me pareço com você – lamentou a menina.
- E gostaria de parecer?
- Gostaria de ser como você.
- E como é que eu sou? – quis saber Ingrid.
- Ah... É inteligente, esperta... É adorável!

Se não estivesse sentindo tanta dor, Ingrid se desmancharia em risos... ou em lágrimas.

- Sabe o quanto eu a amo, não sabe?
- Eu também amo você, mamãe.

Ingrid desejou permanecer ali, abraçada à filha, pela eternidade afora, mas já começava a ter lampejos de inconsciência e parecia estar perdendo a visão.

- Ainda... não lhe agradeci pela festa maravilhosa que me preparou...
- Você merece – disse a menina – No ano que vem, prepararei uma ainda mais linda... Com um bolo de três andares e...
- Querida! – interrompeu Ingrid.
- O que foi?... Está sentindo alguma coisa?
- Não... só estou com sono. Pode me ajudar a deitar?

Sara acomodou a mãe à cama e ajeitou o travesseiro:

- Está confortável assim? – perguntou a menina.
- Sim, meu bem... Obrigada. Diga a Leopoldo que venha falar comigo... Depois vou dormir um pouco.
- Descanse bastante – recomendou a filha – Leve o tempo que levar, estarei ai fora aguardando.

Ela beijou a face da mãe e saiu. Ingrid pensou: Está acabado.

Leopoldo entrou logo em seguida e se pôs junto dela. Estava ainda com os olhos vermelhos. Ingrid mal conseguia mover-se agora. A dor era imensa.

- Ascenda a luz – pediu ela.
- Já está acesa.
- Que pena!... Gosto de olhar nos olhos das pessoas quando tenho um pedido especial a fazer.
- E o que quer pedir-me de tão especial? – perguntou ele com voz mansa.
- Leopoldo... Sabe o que tem que fazer, não sabe?
- Do que está falando?...
- Eu já terminei. Agora temos que abreviar o tempo.
- Ingrid!... Não diga bobagens!...
- Não é bobagem... É o mais certo a fazer... Não vou aguentar que isto se arraste por horas... dias, talvez.
- Não posso Ingrid!... Por favor... não faça isso... Vou fazê-la dormir...
- Dormir apenas não... tem que ser... algo mais forte.
- Não sabe o que está dizendo, está delirando só pode ser...
- Será o nosso segredo... Eu lhe juro – disse num sorriso débil.
- Não me peça o impossível... Não poderia conviver com isso pelo resto de minha vida...
- Conviverá com a certeza que fez o melhor... por mim.
- Eu nunca teria coragem de...
- Não espere que eu acredite nisso! – disse ela bruscamente –... Nunca conseguiu me enganar. Não é um covarde, eu sei que não é – soltou um gemido plangente.

Ele calou-se. Afastou-se dela e sentou-se numa cadeira distante uns três passos. Cobriu o rosto com as mãos e chorou mansinho para não se fazer ouvir.
Ingrid chamava por ele entre um gemido e outro. Eram mais agudos agora. As palavras fragmentadas, a respiração cortada.

Ele aproximou-se por fim, tomou a mão dela entre as suas e disse:

- Vou lhe aplicar um analgésico.

Com passos dementes, Leopoldo caminhou em direção ao armário, onde guardava os medicamentos. O curto trajeto lhe pareceu a coisa mais custosa a fazer em toda sua vida. O tempo: pequeno demais para se declarar vil sentença.

Ao alcançá-lo, abriu-o vagarosamente, parecia querer esticar o tempo. Apanhou o pequeno frasco de rótulo amarelo e segurou-o na palma da mão. Permaneceu imóvel por alguns instantes, apenas olhando-o fixamente. Estava perturbado por um intenso combate interior.
A seguir, recolocou-o de volta e apanhou outro.

Ingrid faleceu cinco minutos depois enquanto dormia.


4 comentários:

  1. OI BIA GOSTEI DA PARTE QUE LÍ DO TEU ROMANCE. VÁ EM FRENTE.PARABENS UM FINAL DE SEMANA BEM LEGAL PARA VC. ABRAÇOS CELINA

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  2. tão emocionante...
    bom final de semana!

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  3. Prezada...
    Ainda estou triste pelo falecimento de Ingrid. Até o próximo capítulo...
    Abç,
    Adh

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  4. Olá, querida Bia
    E por falar em conflito interior:
    Venho propor-lhe algo no meu post de hoje...
    Conto com sua participação amiga.
    Excelente semana,cheia de ricas bênçãos!!!
    Abraços fraternos

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco