sexta-feira

CAPÍTULO VIII

"É Preciso Ver os Anjos"



No decorrer dos dias, Ingrid teve que se desdobrar entre as tarefas domésticas, a escola e a elaboração de moldes e modelos de roupas infantis. Trabalhava desde o nascer do sol até a madrugada, e não raro, virava noites em claro colocando os moldes em cima dos tecidos e cortando-os. Ao amanhecer, distribuía às mulheres e dava-lhes orientações de como costurar. Ficou combinado que as mulheres que não tinham máquinas de costura se encarregariam dos acabamentos finais, como barras, alinhavos, pregar os botões, etc. Ingrid revelou-se criativa e talentosa. Sem ficar presa ao convencional, elaborava modelos exclusivos e graciosos, com um toque pessoal. Perfeccionista, acompanhava os trabalhos das mulheres para que a costura saísse impecável.

Ao final de duas semanas, estava exausta e perdera alguns quilos, mas a emoção que sentira ao ver as primeiras peças prontas, passadas e empilhadas, era indescritível! Ponha o coração em tudo que fizer.

Estava tudo pronto para voltar à São Martinho e tentar vender as peças. Voltar à São Martinho... voltar a ver Frei Henrique. Afastou imediatamente estes pensamentos. Tinha tomado uma decisão e não voltaria atrás: Nunca mais o veria para o seu próprio bem. Já bastava o que havia sofrido nessa vida! Ele agora habitava no seu passado e povoava os seus sonhos. E ficaria bem guardado lá, onde era o seu lugar. Você não pode impedir que um pássaro voe por sobre sua cabeça, mas pode impedir que ele construa um ninho sobre ela– um ditado popular bem apropriado.

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- Não posso acreditar Agnes, que vendi tudo e ainda trouxe mais encomendas! – comemorava Ingrid na chegada.
- Que maravilha! – exclamou Agnes.
- Que ótimo, mamãe! Posso ver os tecidos que você trouxe? – perguntou Sara.
- Só se me prometer ajudar com os novos moldes – chantageou Ingrid.
- Só se me prometer um vestido novo – retribuiu a chantagem. – Não estreei uma roupa nova desde que chegamos aqui.

Ingrid olhou para filha, ela havia crescido tanto... Suas roupas estavam curtas e justas demais. Um aperto no coração quase a fez chorar. Sara era seu braço direito; fosse qual fosse a tarefa que estivesse executando, lá estava a filha, sempre solícita, disposta a colaborar. Dava sua contribuição por pequena que fosse, e, na maioria das vezes, não era tão pequena assim. Realizava coisas que só um adulto era capaz de realizar, e Ingrid dividia-se entre o orgulho e a compaixão que nutria pela filha.

O vestido novo de Sara seria o primeiro desta nova série:

- Você vai ter o vestido mais bonito e mais cobiçado desta cidade!

Ingrid convocara uma reunião com as mulheres e ficara acertado que elas receberiam um salário pelas costuras no mesmo valor que ela estipulara para si própria. O restante dos lucros seria convertido em mais matéria prima, para irem aos poucos, ampliando o negócio. Ela pretendia, também, reservar um pequeno fundo para investir em aprimoramentos que aumentaria a produção. Algumas casas possuíam energia elétrica puxada das minas, mas a grande maioria ainda não. As máquinas eram movidas à pedais, o que atrasava em muito a entrega das encomendas. Sem contar que se tornava quase impossível costurar no período noturno. Todas essas coisas eram prioridades a serem resolvidas; mais adiante, as mulheres passariam a receber, além do salário, uma porcentagem em forma de comissão pela produção. Planejava comprar, além dos motores para as máquinas já existentes, outras, modernas e mais ágeis, para que todas pudessem produzir mais e com melhor qualidade.

O salário que as costureiras recebiam, embora pequeno, passou a fazer uma enorme diferença para quem nada tinha. Por isso mesmo, Ingrid passou a ser vista pelas mulheres da cidade como uma espécie “Líder Protetora.” Volta e meia, lhe traziam problemas a serem resolvidos, não só o que dizia respeito às costuras, mas toda sorte de problemas familiares:

- Dona Ingrid, minha filha não quer me ajudar com as costuras e meu marido vive dizendo que eu não ligo mais para ele... Que ele não gosta de ser sustentado por mulher nenhuma – reclamou uma das mulheres certa vez.
- Falarei com ele durante a aula noturna. Fique tranqüila que tudo vai se resolver – dizia ela pacientemente.
- A senhora é uma santa... Não sei o que seria da gente se não fosse a senhora e a irmã Agnes...

Tudo caminhava como o planejado até então. Estaria perfeito, se não fosse o fato de que a cada dia que passava, Ingrid sentia-se mais e mais cansada. Andava com olheiras e emagrecera muito. Se pelo menos tivesse alguém que me substituísse na escola... Não posso parar com as aulas... não agora que as crianças tomaram gosto pela escola. Não tenho coragem... O que farei? E ainda tinha o curso noturno com os adultos. Sara estava sendo de grande ajuda substituindo-a em alguns dias da semana, mas não permitiria que ela fizesse mais do que isso. A escola precisava de uma professora. Uma professora de verdade. Agnes trouxe a solução numa tarde. A solução e uma revelação surpreendente.

Ingrid estava cortando tecidos na comprida mesa de madeira bruta que construíra, quando a irmã chegou acompanhada de outra freira:

- Espere só para ouvir a novidade que eu tenho para você – Agnes exibia um sorriso irradiante.
- Novidades?... Eu adoro novidades! – brincou Ingrid
- Madre Terezinha recebeu correspondência oficial do Bispo da diocese da Capital – informou Agnes – Na carta ele diz que não só aprova minhas obras assistenciais, como também me libera de certas responsabilidades no convento... Não é maravilhoso?
- Maravilhoso?... É fantástico! – comemorou Ingrid abraçando a irmã. – Oh, Agnes, fico tão feliz por você!
- E ainda tem mais: a carta cita o pároco da paróquia de São Martinho, Frei Henrique é o nome dele...
- Quem??... Qual o nome mesmo que disse? – Interrompeu Ingrid sentindo o rosto queimar.
- Frei Henrique – repetiu Agnes – ...Ele escreveu ao bispo intercedendo ao meu favor. Disse em sua carta, que conhecia pessoalmente o meu trabalho e apoiava totalmente... Imagine só, Ingrid!...Que belo mentiroso é esse Frei!
- Um mentiroso maravilhoso...
- Acha possível que os boatos sobre as minhas divergências com Madre Terezinha tenham chegado à São Martinho? – perguntou Agnes.
- É possível - disse o mais natural que pode.
- Você tem estado sempre por lá, conhece esse tal Frei?
- Eu?... não... Claro que não! – Uma mentira sempre traz outra.
- Se não estivesse tão atarefada no momento, iria pessoalmente agradecê-lo – lamentou-se Agnes.
- Talvez um dia faça isso – Ela não queria nem cogitar esta possibilidade.
- Eu não posso ir – disse Agnes num repente – mas você pode!
- Não!!...
- Porque não? Tem mesmo que ir... Escreverei uma carta de agradecimento e você levará até ele...
- Não posso fazer isto, Agnes! – contestou prontamente, e depois percebeu que exagerara – Quero dizer... não haveria tempo... Eu vou e volto sempre num atropelo e...
- O que iria atrapalhar? – interrompeu Agnes – É só procurá-lo na paróquia e lhe entregar a carta... Não pode me negar isso!

Ingrid sabia que de nada adiantaria discutir o assunto agora, mesmo porque a irmã não entenderia nada, uma vez que não sabia de suas razões. O melhor que tinha a fazer no momento era concordar e depois pensaria em algo.

- Está bem. Pode escrever a carta que eu a levarei.

Nesse momento Agnes notou que a freira que a acompanhava ainda estava ao seu lado:

- Que displicência a minha! Ficamos aqui tagarelando e eu esqueci-me completamente de lhe apresentar a irmã Maria Luiza.
- Já nos conhecemos do convento – esclareceu Ingrid – Como vai irmã?
- Bem, obrigada – disse a freira.

Irmã Maria Luiza era jovem, aparentava vinte e poucos anos. Tinha um rosto meigo que lembrava o rosto de uma criança.

- Irmã Maria Luiza era normalista antes de entrar para o convento – continuou Agnes – Não foi nada fácil, mas conseguimos uma licença especial para ela lecionar às crianças no seu lugar.
- Se me der mais uma boa notícia hoje, Agnes, meu coração não vai aguentar!
- Sabia que ia gostar. Ela só não poderá substitui-la no curso noturno – disse Agnes.
- Eu me ajeito com os adultos – disse Ingrid – Só em saber que as crianças ficarão em tão boas mãos, causa-me um grande alívio.
- Estou providenciando mais duas professoras – informou Agnes – E terá que aguentar mais uma boa notícia, sim: Sara concluirá o primário... e quem sabe, o ginasial!


Agnes escreveu a carta ao Frei Henrique naquela mesma semana e entregou a Ingrid. Por fora do envelope estava escrito: De: Irmã Agnes Vankovsk – Redentor das Pedras. Para: Frei Henrique – Pároco designado da cidade de São Martinho. Era uma carta em aberto, mas Ingrid não ousaria ler, pelo menos enquanto não fosse absolutamente necessário; e ela não tinha certeza se saberia julgar quando seria ou não necessário. Segurou por alguns momentos o envelope nas mãos e depois o guardou na sua bolsa. Viajaria dali a dois dias, e até lá, tinha que decidir o que faria à respeito. Por hora, havia outras coisas em que pensar. Com a irmã Maria Luiza na escola as coisas tinham melhorado e muito, mas ainda não era o bastante. As encomendas haviam aumentado muito e estava cada vez mais difícil viajar com pacotes e mais pacotes, sem dizer que, a cada volta, trazia mais tecidos. Planejava também, expandir os negócios para outras cidades das redondezas que ficavam mais distante que São Martinho. Ela refletiu muito sobre o assunto e concluiu que só havia uma solução e falaria com Agnes, imediatamente:

- Tenho um pedido a lhe fazer... Ou melhor, dois.
- Pode começar pelo primeiro. – disse em tom de brincadeira
- Quero que me empreste o furgão de vez em quando.
- O furgão?! Mas nem mesmo sabe guiar!
- Esse é o segundo pedido: Você vai me ensinar.
- Não está falando sério, está? – perguntou Agnes, depois reparou nos olhos excitantes da irmã e concluiu – Eu acho que esta.
- Veja bem, Agnes, com o furgão, poderia levar mais peças prontas e trazer mais tecidos... E depois, seriam somente duas vezes por mês, não te atrapalharia em nada...
- Não pode aprender guiar num dia e viajar no outro. Não é tão fácil assim... Eu por exemplo, levei anos para sair de Redentor... E depois, você é uma mulher, o que iriam pensar? Você sabe como é esse lugar.
- Você também é uma mulher – protestou Ingrid.
- É diferente! – retrucou Agnes.
- E o que tem de diferente?... Ah!... Não é preciso responder, eu sei! Você é freira e eu sou uma mulher sozinha, sem marido! – ironizou enfaticamente.
- Não!... não foi isso que eu quis dizer... Perdoe-me se não fui capaz de me expressar direito. Eu só acho que não é nada fácil para uma mulher pegar a estrada num furgão velho e ainda por cima, sem licença para dirigir...
- Eu já pensei em tudo isto – disse Ingrid retomando o controle – Não estou pensando em viajar de imediato. Sei que leva tempo, mas você me conhece, sabe que aprendo as coisas com facilidade e...
- Disso, não tenho a menor dúvida – Interrompeu Agnes.
- ... Além do mais, pretendo tirar licença para guiar em São Martinho e começarei a fazer aulas na próxima viagem, o que acha?
- Eu acho que está esquecendo um detalhe muito importante – argumentou Agnes – Como tirará licença se não tem mais documentos? Você deixou sua bolsa no automóvel que pegou carona na primeira vez que foi à São Martinho, lembra-se?

Como pude esquecer-me disto?

- Eu já pensei nisto, também – era só uma mentirinha inocente – Vou escreve à embaixada da Hungria na Capital e pedir segunda via – Respirou aliviada por ter sido rápida no raciocínio.
- Bem, se for assim, não vejo nada de errado – ponderou Agnes.
- Então, vai me ensinar?
- Pensei ter ouvido dizer que faria aulas.
- E farei. Mas se você me ensinar, aprenderei mais depressa e terei menos gastos. Vai me ensinar? – insistiu ela.
- Quando começamos?
- Hoje mesmo.

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Ingrid estava em pé, do lado de fora do balcão da auto-escola de São Martinho. Estava ali há uns vinte minutos e ninguém se aproximava para atendê-la; demonstravam não tomar conhecimento de sua presença. Como ela não ia embora, um homem calvo e gordo gritou lá de dentro:

- Não queremos comprar nada não, “Dona.”
- Não estou vendendo nada – declarou com firmeza na voz – Estou aqui para matricular-me e tirar carteira de motorista.
- Como é que é? – perguntou o homem entre risos geral.

Ela permaneceu inalterável. Não moveu nem um único músculo da face.

- É isso mesmo que o senhor ouviu – disse ela mantendo a postura e a cabeça bem levantada – Quero matricular-me.

O homem caminhou até ela, espichou-se o mais que pode por traz do balcão e disse quase roçando com os lábios em seus ouvidos:

- Nesse caso, vai ter que procurar outro lugar, porque aqui não damos aulas para mulheres.

O sangue ferveu-lhe nas veias. Até quando teria que sofrer discriminações por ser uma mulher? Isso tinha que acabar! Ela só queria sobreviver com decência e dignidade, só desejava ser respeitada como pessoa antes de qualquer outra coisa... Malditos sejam todos os homens!... Nem todos.

- Em primeiro lugar – disse furiosa – eu não sou “Dona”, eu sou “Senhora”. Em segundo, pode, por favor, ler o que está escrito naquela placa lá fora?

Ingrid pronunciara as últimas palavras pausadamente e uns dois tons acima do que estava habituada. Mas o homem definitivamente não entendera sua real intenção e exibia um ar vitorioso:

- Não sabe ler? – era mais uma afirmação do que uma pergunta – Se não sabe ler, não pode tirar carteira...
- Eu sei ler – interrompeu-o – Estou desafiando-o a lê-la em voz alta para mim.

O homem atinava que espécie de jogo era aquele. Aquela maluca queria desmoralizá-lo na frente de seus empregados, mas não ia conseguir. Ele era muito mais inteligente que qualquer mulherzinha metida à besta.

- Está pensando que sou analfabeto, é isso? Pois eu vou ler letra por letra pra Don... Pra Senhora - enfatizou com deboche a palavra “senhora” – Está escrito: “Há va-gas pa-ra au-las de vo-lan-te ” Está satisfeita agora? – perguntou entre risos dos demais.
- Está informando o sexo? – perguntou Ingrid calmamente.
- Como assim?
- Está informando se a aula é para homens ou mulheres? – repetiu ela, a pergunta.
- Não...
- Neste caso, o senhor vai ter que aceitar minha matrícula, caso ao contrario, irei ao jornal local e pagarei com prazer uma matéria denunciando como enganoso, o seu estabelecimento. E o senhor, como bom comerciante que é, sabe que um escândalo dessa natureza, não é nada bom para os negócios, não é mesmo?... Pode, por gentileza, me passar o formulário?

Ela iniciou as aulas no mesmo dia. Ficou aliviada ao saber que o gordo não seria seu instrutor; para tal, ele designou outro senhor que se mostrou, até certo ponto, gentil e paciente. Ingrid notara que ele ficava um tanto embaraçado, pois por onde passavam, as pessoas olhavam e cochichavam entre si, mas isso não a incomodava nem um pouco. Queria sim, ficar atenta a tudo que ele explicava e tirar o maior proveito daquela hora de aula.

Quando deixou a auto-escola e se dirigiu para o hotel, Ingrid deu a volta por de traz da Praça Central para não passar em frente a Igreja de Frei Henrique. A carta de Agnes ainda estava em sua bolsa, porém, ainda não havia decidido o que fazer com ela. Não sabia o que Agnes havia escrito, mas obviamente, de alguma forma, ele saberia que ela não havia falado nada à irmã que se conheciam. Como explicaria isso a ele? Como explicaria o fato de não ter dito nada à Agnes, mesmo depois de saber o que ele havia feito por ela? "Senti-me atraída pelo senhor e não podia contar a ninguém... sabe como é, o senhor é um padre e... " Meu Deus, o que farei? Não posso deixar de entregar a carta... Devo isto à Agnes... Já sei! Vou esperar ele fechar a igreja e depois colocarei embaixo da porta... É exatamente isto que farei.

Ingrid lembrou-se que naquele dia, quando ele acordou-a no banco, disse que tinha que fechar a igreja; eram por volta das vinte e duas horas. Ela aguardou no hotel até esse horário e depois saiu rumo à praça. O hotel onde habitualmente ficava hospedada situava-se a uns três quarteirões da praça e as lojas, onde negociava, ficavam todas aos arredores. Por todos esses meses, ela tinha tomado todo o cuidado para não passar pela praça e sempre olhava nos lugares por onde andava, na certeza de não encontra-lo. E agora, sentia-se como se o destino lhe tivesse pregado uma peça, e caberia a ela dribla-lo.

Ela estava diante da porta frontal da igreja, abriu a bolsa e retirou a carta. Agachou-se para introduzi-la por debaixo da porta.

- Ingrid!... É você? – a voz vinha de traz – O que faz aí agachada?

Ela levantou-se num único impulso.

- Oh! Frei!... O senhor me assustou...
- Desculpe-me... Não foi minha intenção.

Ela se sentia uma perfeita idiota e sabia que estava corada, o que a fazia sentir-se ainda pior.

- O que faz aqui uma hora dessas? – perguntou ele.
- Tenho... Trouxe uma carta de minha irmã para o senhor... Ia colocá-la debaixo da porta... O que um padre fazia na rua àquela hora da noite?
- E porque não me trouxe durante o dia?
- É que estive tão atarefada... – Era uma meia-mentira –... Volto amanhã cedo para Redentor e não podia deixar de entregar a carta de agradecimento de Agnes...
- Sim, mas não vamos ficar conversando aqui fora. Venha tomar uma xícara de chá comigo. Ia mesmo preparar uma para relaxar... Ando com insônia... Até saí para caminhar um pouco.
- Não posso – disse prontamente – Já e tarde e eu tenho que acordar cedo amanhã.
- Mas uma xícara de chá não leva nem dez minutos – argumentou ele conduzindo-a até a casa.

Ele colocou a chaleira com água no fogo e arrumou duas xícaras na mesa.

- Mais açúcar? – perguntou ele
- Assim está bom, obrigada. Essa é a última vez. Depois não o verei mais.
- Onde está hospedada?
- No Max Hotel.
- É perto daqui. Depois eu a acompanharei até lá – ofereceu-se.
- Oh, não!... Não é necessário. Estou habituada a andar à noite pelas ruas – percebeu de imediato a tolice que acabara de dizer –... Não foi isso que eu quis dizer... É que dou aulas noturnas para os adultos e...
- Eu sei, Ingrid, entendi o que quis dizer – afirmou ele – O que acha que eu sou, um machista preconceituoso?
- Não, naturalmente que não... Eu sei que é diferente.
- Diferente de quem?
Do resto do mundo.
- Dos machistas preconceituosos.

Ingrid tomou um gole de chá. Ficaram por alguns momentos calados como se ambos estivessem pensando no que falariam a seguir. Ela decidiu romper o silencio:

- Porque escreveu ao Bispo intercedendo por Agnes?
- Achei que era o mínimo a fazer por um gesto tão grandioso – disse ele simplesmente.
- Foi uma atitude generosa, afinal o senhor nem a conhece.
- Mas não podia ficar omisso diante de tudo que você me contou: da dedicação, da luta dela para amenizar um pouco o sofrimento daquelas pessoas. Espero ter interferido no parecer do Bispo.
- E interferiu bastante. Ele até o citou na correspondência oficial – informou ela – Sua opinião pesou muito. Agnes foi dispensada de algumas de suas funções no convento para dar continuidade à sua obra... E com todo o apoio do Bispo.
- Fico feliz por ela.
- Tenho certeza que sim.
- E fiquei feliz por você, também. Soube que está fazendo grandes negócios por aqui.
- Nisto, também tem o teu dedo.
- Porque não veio me contar?
- Deduzi que o senhor acabaria sabendo – disse em tom de brincadeira.
- Não é a mesma coisa.
- Eu venho sempre correndo – desculpou-se – Dois dias tem sido pouco para entregar as encomendas e fazer novas compras.
- Imagino. Deve ser difícil para você viajar com tantos pacotes.
- É muito difícil – concordou ela – Mas pensei numa solução. Agnes vai me emprestar o furgão. Fiz aula de volante hoje à tarde.
- Não me diga! – admirou-se – Você sabia que em toda São Martinho não há uma mulher se quer que saiba guiar?
- E o que o senhor acha disto? – Sentiu medo da resposta.
- Acho uma pena. Mas as pessoas da cidade não pensam da mesma forma.
- Pude avaliar essa tarde – disse ela – O proprietário da auto-escola não queria aceitar minha matrícula.
- E o que o fez mudar de idéia?
- Disse que iria ao jornal denunciá-lo numa matéria escandalosa.

Ele rio alto.

- E faria isso?
- Não sei... Acho que não.
- Ah! Ingrid!... Se você soubesse o quanto admiro essa sua coragem... sua obstinação. Está sempre vencendo obstáculos, preconceitos, a fim de atingir um objetivo. Vai conseguir, eu sei que vai!

Aquelas palavras estavam repletas de ternura. Ingrid sentiu um arrepio a percorrer-lhe o corpo e pensou que estava mais do que na hora de ir embora.

- Obrigada. Agora tenho que ir... está ficando tarde – disse ela levantando-se. A carta de Agnes ainda estava em suas mãos – Oh, a carta!... Quase me esqueço de entregá-la.

Ele pegou-a e fez menção de abri-la.

- Com licença, eu vou...
- Não! – enfatizou, ela – Quero dizer... Tenho mesmo que ir agora. O senhor poderá lê-la depois.
- Passe por aqui de vez em quando e me conte as novidades.
- Passarei. Obrigada pelo chá e por tudo mais.
- Deus a acompanhe, filha.
“Filha”
- Fique com Deus o senhor, também.

Ingrid deixou a casa paroquial torcendo para que não houvesse ninguém pelas ruas. De dia me vêem guiando um automóvel, à noite saindo da casa do padre. Mais um pouco e serei expulsa desta cidade!

Frei Henrique aprontou-se para dormir, apanhou a carta e recostou-se em sua cama para lê-la. Era uma carta simples com poucas linhas de letras bem caprichadas:

Caro amigo.

Permita-me chamá-lo assim: de amigo. Rogo a Deus que esta vá encontrá-lo gozando de perfeita paz e saúde.

O objetivo desta carta, não é, se não, um único intuito de expressar os meus mais sinceros agradecimentos pelo seu gesto de extrema bondade e compreensão para com minhas humildes obras assistenciais, em Redentor das Pedras, cidade em que sou ordenada do Convento da Ordem das Irmãs Carmelitas Maria Imaculada Conceição.

É com imensa satisfação, que partilho convosco a alegria que agora sinto, de ter recebido parecer favorável de Sua Santidade, O Bispo dessa Ordem.
Não tenho conhecimento de como, e através de quem, chegou até voz as noticias de minha luta para fazer o que julgo correto, porém, presumo que o senhor o saiba.
Assim sendo, peço-lhe gentilmente que transmita, desde já, o meu apreço.


Gostaria imensamente de visitá-lo pessoalmente, mas a falta de disponibilidade no momento me impede, infelizmente, de fazê-lo. É provável que esta lhe chegue às mãos através de minha irmã carnal, Ingrid Vankovsk, sei que apreciará conhecê-la.


Que Deus esteja convosco, abençoando-o em sua plenitude, a produzir cada vez mais frutos do espírito.

Um forte abraço:
Irmã Agnes Vankovsk


Frei Henrique dobrou a carta e recolocou-a no envelope. Recostou a cabeça no travesseiro e pôs-se a olhar o teto. Refletia no seu conteúdo. No rosto, uma expressão denotando ambigüidade e inquisição; nos lábios, um tênue e delicado sorriso, quase imperceptível.

Um comentário:

  1. belo romance, li a primeira parte e me sinto já envolvido com ele...
    volto em breve para ler tudo
    abs

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco