segunda-feira

CAPÍTULO IV

"É Preciso Ver os Anjos"



Monte Bonito - Paraná.
1959


- Sara, aproxime-se, por favor.

A menina deixou seu lugar e caminhou até a mesa da professora. Estava um tanto corada e apreensiva.

- Porque não fez o desenho? – Perguntou a professora – Sua cartolina está em branco. Não quer participar do concurso?
- Não senhora.
- Por que não? Seus desenhos são os melhores da classe. Não compreendo que não queira participar.
- A senhora pediu que desenhássemos nossas famílias e...
- Isso mesmo. Tem que desenhar todos os membros da família com seus respectivos nomes e de preferência, que estejam fazendo alguma atividade juntos. Esses trabalhos, Sara, mostrarão a importância da família na vida de uma criança; principalmente na idade escolar.
- Eu sei... Só que...

Subitamente, um sorriso iluminou o rosto da menina.

- D. Aurélia, a senhora pode me dar só meia cartolina?
- E por que quer só meia cartolina? – Perguntou admirada, a professora.
- É que... bem... Assim, não ficaria tão vazia.
- Não entendi, Sara.
- E que somos somente eu e minha mãe e não teria muito que desenhar.

A professora sentiu compaixão por aquela bela menina de olhos brilhantes e bochechas rosadas.

- Não posso lhe dar meia cartolina, é contra o regulamento do concurso. Contudo, tenho certeza, que você fará um belo desenho. – O que mais poderia dizer-lhe?

Sara apanhou a cartolina e voltou para seu lugar. Olhava fixamente para o papel em branco e num repente começou a desenhar. Havia arrumado uma saída: dividiu a cartolina em quadrinhos e dentro de cada um, representou cenas diferentes. Desenhou ela e a mãe passeando, brincando, fazendo as refeições e até dormindo juntas: exatamente como era na vida real.
Ela ficou com o primeiro lugar.

Sara era assim: inteligente, doce, sensível e determinada. Podia-se apostar que era feliz, exceto por um fato: as outras crianças tinham pai, irmãos, avós, e ela não. Não que lhe faltasse carinho, a mãe lhe cobria de afeto e lhe proporcionava, dentro do possível, todas suas vontades. Ela retribuía ajudando nos afazeres domésticos e tirando boas notas na escola. Somente sentia-se diferente das outras crianças e não conseguia entender por que isso a deixava triste, de vez em quando. Nem podia dizer que sentia falta do pai, pois não se sente falta de algo que nunca teve.
Quando perguntava pelo pai, sempre ouvia da mãe respostas vazias, e em seguida, mudava de assunto.

Uma vez quis saber:

- Onde está o meu pai?
- Não está conosco, e isso é tudo que você precisa saber, meu bem.
- Ele morreu?
- De certa forma sim.

Como alguém podia morrer “de certa forma”? Tudo era muito confuso para ela, mas, não gostava de aborrecer a mãe com tantas perguntas. Notava que ela ficava triste toda vez que perguntava pelo pai. Talvez ele tenha mesmo morrido – Pensava.
Estava com nove anos nessa época e aos seis havia descoberto a morte pela primeira vez. Tito, seu cachorrinho, teve uma morte repentina. Ficou tempo agachada ao lado do animalzinho para ver se ele se mexia, e só depois chamou pela a mãe. Se ela tivesse visto o pai morto, como viu o Tito, talvez entendesse.

Dos avôs nada sabia, a não ser que haviam morrido quando ela era muito pequena. Ainda tinha tia Agnes - esta, estava viva. Era freira e Sara só tinha estado com ela uma única vez, num dia de Natal, mas, gostava dela. Foi bom aquele Natal quando tia Agnes, a irmã mais moça de sua mãe, viera visitá-las. A não ser pelo fato das duas ficarem cochichando o tempo todo, tinha gostado muito. Certo dia, Sara ouviu parte de uma conversa entre as duas; estava atrás da porta entreaberta:

- Você já contou a ela?
- Não.
- E quando pretende contar?
- Não pretendo.
- Você tem que contar a Sara, Ingrid... Não é o tipo de coisa que possa esconder por uma vida toda. Ela vai acabar te questionando e...
- Já questionou.
- E o que disse a ela?
- Somente o que ela deve saber: que somos eu e ela e nada mais!
- Sara é inteligente, determinada... Respostas evasivas não irão satisfazê-la por muito tempo... Descobrirá toda a verdade, cedo ou tarde.
- Não descobrirá a menos que uma de nos duas conte a ela. Não há mais ninguém na face da terra que possa fazer isso, a não ser eu e você.
- Não somos as únicas pessoas envolvidas, Ingrid...
- As outras não existem para ela. Por isso, te ponho sob juramento: nunca contará nada a ela, caso eu morra antes de você... Diga, Agnes!... Quero que você jure!
- Deus do céu, Ingrid! Porquê tem tanto pavor que Sara venha a conhecer a verdade?
- Não aguentaria seu olhar de reprovação... Já basta o que sofri com papai!
- Ela jamais te julgaria, mas, talvez esteja certa... Quando adulta, vasculharia o mundo à procura do... Não quero pensar no que sofreria nas mãos daquela gente.
- Estou esperando seu juramento.
- Eu juro. E que Deus me perdoe por isso!

Elas pararam de falar. Sara sentiu medo, um medo terrível que não sabia explicar e nem sabia do quê. Saiu correndo dali para o quintal e permaneceu lá escondida. Só voltou quando já era quase noite e nunca mais perguntou nada à mãe.

As festas de fim de ano foram embora e tia Agnes também. As duas voltaram à mesma rotina de sempre: Ela ia à escola pela manhã, enquanto a mãe cuidava da casa. À tarde, Sara fazia o dever de casa enquanto a mãe dividia-se entre a costura e a revisão do dever. Nos finais de semana, as duas inventavam longos passeios pelas redondezas da cidade. À noite, dormiam abraçadas depois de uma fervorosa oração em voz alta. Tudo estava perfeito, até que um acontecimento mudaria para sempre, o destino das duas:

Sara voltava da escola; era o primeiro dia de aula do ano letivo. Estava elegantemente vestida no seu uniforme escolar: saia pregueada azul-marinho, blusa branca e gravatinha borboleta. Os cabelos presos num rabo-de-cavalo com um laço de fita de cetim. Pisava de mansinho para que a poeira da rua de terra batida não sujasse suas meias, imaculadamente brancas. Gastava quase quarenta minutos no trajeto da escola à casa, mas ela não se importava. Seguia, espionando os jardins das casas vizinhas, à procura de uma rosa, uma margarida, que fosse, e que estivesse ao alcance de suas mãos. “Ainda vão apanhá-la roubando flores, Sara” – dissera a mãe certa vez, mas o que ela mais gostava, era trazer uma flor escondida nas costas, para surpreendê-la com o presente.

O sol do meio-dia ardia forte no céu daquele verão e Sara tinha especial motivo para estar feliz. Nessa época do ano, as costuras da mãe praticamente dobravam e ela sempre ganhava um brinquedo novo com o dinheiro extra que sobrava. Sabia que ao chegar a casa encontraria a mãe cantalorando à máquina de costura, a casa impecavelmente limpa, a roupa secando no arame do quintal; e o almoço ainda quente em cima do fogão. A mãe nunca almoçava antes dela, pois gostavam de sentarem juntas à mesa. Sara lhe contava os acontecimentos da escola; a mãe ria dos seus comentários perspicazes. Conversavam sobre mil pequenas bobagens.
Já podia avistar a casinha branca ao longe; reconhecia-a rapidamente pela elegante palmeira plantada bem junto à cerca. Forçou a vista para tentar reconhecer o automóvel parado diante da casa. Estava acostumada com as freguesas de sua mãe entrando e saindo o dia todo, e algumas vinham de automóvel trazidas pelos seus maridos. Mas esse era diferente de todos que já tinha visto: era comprido demais, preto demais. Um homem com um chapéu esquisito estava em pé parado junto à porta traseira; segurava a porta aberta. Uma mulher estava saindo de sua casa, vestia roupas iguais as que ela tinha visto nos figurinos de sua mãe, com luvas, chapéu e tudo. Agora a mulher estava entrando no automóvel. O homem fechou a porta, deu a volta para o outro lado, sentou-se ao volante e foram embora.

Sara apertou o passo na curiosidade de criança. Um medo súbito – aquele mesmo medo que ela sentia, mas não sabia do quê, a fez caminhar mais e mais depressa. Já estava correndo quando entrou pela casa à procura da mãe:

- Mamãe!... – chamou Sara.
- Estou aqui, querida – a voz vinha do quarto. A menina se aproximou. Ainda estava ofegante.
- Está chorando?
- Não... É só um cisco no olho...
- Logo nos dois?

Ingrid enxugou os olhos, soou o nariz, e virando-se para a filha, perguntou o mais suavemente que pode:


- Sara, sentiria muito se tivesse que deixar a escola para irmos morar em outro lugar?
- Não preciso deixar a escola e já temos onde morar.
- Sei disso, meu bem – disse a mãe escolhendo as palavras com cuidado– Somente estou perguntando se seria muito difícil para você, caso seja necessário morarmos em outro lugar...
- Não quero morar em outro lugar, gosto daqui, e você disse que também gostava...
- Claro que gosto daqui! – afirmou – Mas há momentos na vida, que temos que tomar certas decisões e nem sempre nos deixam felizes, entretanto, são necessárias. Você entendeu meu bem?
- Não. Não entendo porque temos que ir embora se gostamos daqui.

Ingrid conhecia a personalidade bem definida da filha, apesar da pouca idade. “Ah! Como se parece com papai” - costumava escrever nas cartas à Agnes. Sabia que ela não desistia facilmente de um objetivo; possuía opiniões firmemente estabelecidas, fosse na escola, com amigos ou em casa. Seu temperamento beirava à teimosia, no entanto, era generosa e nutria pela mãe um amor incondicional; era exatamente nisso que Ingrid apostava. Ela tinha absoluta certeza que Sara acataria, sem choramingar, qualquer que fosse sua decisão, pois era, acima de tudo, obediente. Mas, uma dor pontiaguda espetava-lhe o peito só de imaginar a filha infeliz. Por essa razão, buscava aflitivamente uma maneira de não parecer que a estava forçando a nada que a deixasse triste. E tinha que fazê-lo sem ter que revelar a verdade.

- Sara, querida, sente-se aqui.

Ela enlaçou a filha, acariciava-lhe os cabelos enquanto falava:

- Quero que saiba que eu jamais faria algo que a tornasse infeliz caso haja outras escolhas... Acredita em sua mãe, não acredita?
- Claro que sim, mamãe!
- Neste caso, quero que ouça o que vou lhe dizer: se tomei esta decisão, é por que é a melhor a ser tomada no momento para nós duas. Se formos, talvez não sejamos tão felizes quanto somos hoje, mas, se ficarmos seria ainda pior... Mais do que isso não posso te dizer, pois não tem idade suficiente para entender. Só te peço que confie em mim. Porém, há algo que posso lhe prometer: estaremos sempre juntas; não importa o que venha acontecer.

Seguiu-se um breve e angustiante momento de silêncio:

- E onde vamos morar? – Perguntou a menina, por fim.
- Em Redentor das Pedras.
- Redentor das Pedras?... Mas você disse à tia Agnes que aquele lugar é horrível!
- É o lugar onde você nasceu... Não gostaria de conhecer o lugar onde nasceu?
- Gostaria de conhecer, não de morar.
- Poderá ver tia Agnes, você gostou dela... Além do mais, pode ser que não esteja tão ruim agora. Quando saíamos de lá, você era só um bebezinho, já faz nove anos. Não sabemos como está agora, pode ter melhorado, é uma possibilidade...
- E quando teremos que partir?
- Amanhã bem cedo.
- Amanhã?... Tão rápido!...

Ingrid continuou a organizar as costuras, como se não tivesse notado uma lágrima aflorando nos olhos da menina. Mas tinha que ir em frente. Tinha tanto o que fazer nas próximas horas e não podia perder mais tempo. Tenho que aprontar as costuras começadas, devolver os tecidos das que estão por fazer, ir à escola de Sara, e... Que mais tenho que fazer, ainda?

- Mamãe...
- Hum...
- Quem era aquela mulher naquele carro esquisito?
- Só alguém que eu conheci... um dia.

Sara soube, naquele momento, que estavam indo embora por causa daquela mulher.

Foi uma tarde agitada para mãe e filha. Ingrid costurou até a noitinha; separou as encomendas, empacotou e denominou-as. Juntou os tecidos que ainda não havia cortado e pediu a uma vizinha que entregasse tudo. Sara auxiliou-a nessa tarefa e tantas outras: distribuiu aos vizinhos os mantimentos que não poderia levar na viagem; e os poucos pertences que elas possuíam, colocou em duas pequenas maletas. Ela também soltou os dois periquitinhos que a mãe lhe havia comprado numa feira e despediu-se deles:

- Adeus Lilica, adeus Leleco. Se vocês acharem o caminho, a gente se encontra em Redentor das Pedras, se não acharem, fiquem morando aqui mesmo na minha goiabeira. Vou deixar um pouco de semente espalhadas pelo quintal. Depois vocês têm que aprenderem a serem livres e conseguir a própria comida. Tenho que soltá-los, porque a minha mãe disse que temos que ir embora... Não sei bem por quê. Ela disse que eu não posso levá-los, mas nunca me esquecerei de vocês, e quero que vocês nunca se esqueçam de mim... Nunca!

Naquela noite, Sara quase não dormiu. Pode ouvir os passos agitados da mãe pela casa. Era a primeira vez em toda sua vida que estava sozinha na cama de madrugada, e sentiu medo; um medo que já lhe era peculiar.

Quando amanheceu, se aprontaram para viagem. Sara ficou preparando os lanches que levariam, enquanto Ingrid foi à escola tratar da transferencia da menina. Preferiu fazer isso sozinha, pois não queria submeter a filha à emoção da despedida.
Enquanto aguardava na sala da diretora, recordou-se do comentário que a professora de Sara lhe fizera em certa ocasião:

- Sara possui uma inteligencia prodigiosa. Absorve tudo numa velocidade da luz. Deve investir no aprendizado dela. Acredito que terá um futuro brilhante.

E, no entanto, ela estava ali para pedir sua transferencia sabe-se Deus para onde... Até onde podia lembrar-se, Redentor das Pedras não tinha escolas. Os filhos dos mineiros, ou ficavam analfabetos, ou iam estudar em São Martinho, cidade mais próxima, que ainda assim, ficava a uns oitenta quilômetros de distância e não havia meio de transporte. Ingrid tinha vaga lembrança de umas poucas crianças, cujos pais conseguiram alojá-las com os colonos de uma fazenda, e assim, puderam frequentar a escola. Mas, tão logo eram alfabetizadas, voltavam para as minas, juntando-se aos pais no árduo trabalho de extrair o carvão.

- Senhora Ingrid Vankovsk? – Perguntou a diretora.
- Sou eu.
- Aqui está a transferencia de Sara – disse a diretora estendendo-lhe o papel – Lamento muito que tenha que deixar a escola. Sara é realmente uma criança adorável... É uma de nossas melhores alunas.
- Sei disso... e fico muito orgulhosa.

Cada palavra da diretora transfigurava-se em punhais que iam cravando-lhe diretamente ao coração.

- Ela possui especial talento para o desenho e a pintura, deve incentivá-la. Talvez iniciá-la em uma escola de artes e...
- Ah, sim! Farei isso... com certeza – Queria encerrar aquela conversa o quanto antes –... Se não há mais nada, agora tenho que ir. Estamos um pouco atrasadas e Sara está me esperando...
- Por que ela não veio se despedir?
- Não quis vir – mentiu – Sara não gosta de despedidas. É muito emotiva e além do mais, não vamos para tão longe assim... Poderá vir visitar os amiguinhos, nas férias... Será divertido.
- Claro!... Peça a ela que nos escreva contando as novidades. Para onde mesmo, estão indo?
- Redentor das Pedras – disse Ingrid e se arrependeu no mesmo instante.
- Esperamos que façam uma boa viagem – disse a diretora gentilmente.
- Obrigada. Sou-lhes grata por tudo que fizeram por Sara e... até algum dia.
- Até.

E quando Ingrid já havia saído:

- Redentor das Pedras?!... Nunca ouvi falar!

Elas pegaram as malas e trancaram a casa. Sara deu uma última olhada para o quintal, onde morava sua goiabeira; tantas vezes, tinha subido nos seus galhos e fingido que era uma princesa no alto de um castelo... Olhou mais atentamente e viu o casal de periquitos alojados em um dos galhos, juntinhos a olhar para ela. Adeus Lilica... Adeus Leleco... Adeus goiabeira....
As duas desceram a rua em direção à estrada, onde apanhariam o único ônibus que transportava os passageiros dos bairros periféricos ao centro da cidade. Quando chegaram à estação ferroviária, Ingrid comprou as passagens, passou as malas pela roleta, e só então, voltou para tomar a filha pela mão. Foi nesse momento que ela viu, do outro lado da rua, a limousine preta parada no meio fio atraindo a curiosidade dos transeuntes. No banco traseiro, uma mulher elegantemente vestida, lançava-lhe um olhar frio e vitorioso.

Ingrid puxou Sara quase violentamente e entraram pela estação. Estavam deixando para traz mais do que a casa, os móveis, os amigos. Estavam abandonando os sonhos, os ideais de um futuro melhor e o dia-a-dia tranquilo. Mas ainda tinham uma à outra. E isso era o que realmente importava.


4 comentários:

  1. Nossa...
    Fiquei completamente inerte, absorvido pela história.
    E agora me pergunto que terá feito Ingrid tomar tal decisão??

    Beijos!! Adorável história.

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  2. Adorei a tua historia ,virei visitarte .
    Bj

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  3. Olá Bia!

    Amei esta história.
    Gosto muito mesmo da forma como escreve, envolvente e cativante até ao último minuto.
    Voltarei para ler como termina este enrredo.

    Beijinhos

    Na Casa do Rau

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  4. Bia querida! Li o primeiro e o segundo capítulo, mas o terceiro não abre. Algum problema?
    Bjusss

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco