quinta-feira

Capítulo XIII

"É Preciso Ver os Anjos"


O sol já brilhava alto no céu quando ela avistou a placa indicando a cidade: REDENTOR DAS PEDRAS – 3 Km. Tomou a estrada de interligação à direita e seguiu em frente. Repentinamente uma cidade se abriu diante dela: imensa e movimentada.
                  
Sara parou o carro ao meio fio. O primeiro pensamento foi de que havia errado o caminho, talvez se distraíra ao volante e não seguira corretamente a indicação da placa. Um homem ia passando em direção ao ponto de ônibus e ela resolveu se informar:

-  Por favor senhor, preciso chegar até uma cidade chamada Redentor das Pedras...
-  A senhora já está nela.
-  Não pode ser... A cidadezinha que eu me refiro é um lugarejo...
-  Moça, eu moro aqui há quinze anos e sei que não existe outra Redentor a não ser essa.
-  Mas eu não estou vendo o Convento das Irmãs Carmelitas...
-  A cidade cresceu muito. Não dá mais para ver daqui, mas ainda está lá bem atrás daqueles prédios – disse o homem apontando ao longe.

Sara se deu conta então de que o homem falava a verdade. Custou a acreditar que aquele lugar era o mesmo do seu passado. É certo que muitos anos haviam se passado, porém, não era tempo suficiente para tamanha transformação.

-  Como posso chegar até o convento?
-  A senhora não precisa atravessar o trânsito da cidade. Volte para a estrada e siga por mais uns seis quilômetros adiante e logo verá à sua direita a indicação do convento. É só seguir em frente.
-  Obrigada.

Sara saltou do carro e caminhou até a frente do alto portão em arco. Antes de tocar a campainha, leu a pequena placa colocada logo abaixo com o seguinte aviso:

Favor só tocar
Das 8:00 às 11:h e
Das 13:00 às 17:00 h.
Deus os abençoe.

Ela achou graça da ingenuidade das freiras. Seria mesmo possível que alguém respeitasse aqueles horários, ou todos que por ali passavam davam uma apertadinha?
                  
Consultou seu relógio de pulso: Ainda faltam quinze minutos – pensou desapontada – Não sou eu quem vai desrespeitar o aviso.
                  
Ela voltou para o carro, acomodou-se no banco e pôs-se a olhar para as janelinhas lá no alto. Será que tia Agnes ainda ocupava o mesmo quarto?... O que estaria fazendo nesse exato momento? Mais um pouco e estariam uma nos braços da outra. Se ela chorar, acho que não vou suportar o remorso.

O som de sinos badalando ecoou forte ao simples leve toque de dedo. A noviça apareceu momentos depois. Tinha ares de secretária, com óculos dourados e ovais:

-  Bom Dia – cumprimentou Sara.
-  Em que posso ajudá-la? – perguntou a moça.
-  Eu sou Sara Vankovsk Romanelli, procuro por minha tia, Agnes Vankovsk. Pode avisá-la que cheguei, por favor?

A moça abriu os portões silenciosamente e fez um sinal para que Sara a acompanhasse; conduziu-a  até o salão redondo:

-  Aguarde um momento, por favor. Vou pedir à Madre Conceição que a receba.

Minutos depois, ela estava de volta para conduzir Sara até o gabinete da madre superiora. Tratava-se de uma mulher idosa, porém de porte altivo e inteligente. Ela levantou-se cordialmente quando Sara entrou.  Depois indicou uma poltrona.

-  Sente-se, por favor, Dona Sara – disse ela gentilmente – Vou pedir que nos sirvam um refresco enquanto conversamos.
-  É muita gentileza, mas na verdade eu...
-  Tem feito um calor terrível por esses lados – disse ela e fez um sinal para a noviça.
     
A moça saiu e fechou a porta deixando-as a sós.

-  Como já deve ter sido informada, eu sou a sobrinha de Irmã Agnes...
-  Para nós ela era Madre do Socorro nesses os últimos anos. Recebeu esse nome desde que se tornou Superiora na ordem...
                 
Sara surpreendeu-se:

-  A senhora disse “era”?... Tia Agnes não está mais aqui? Onde posso encontrá-la?...
-  Lamento, mas não há outra maneira de lhe dar essa triste notícia... Sua tia faleceu há quatro meses. Tentamos avisá-la por contato telefônico, mas o número havia mudado. Enviamos telegrama para o único endereço que tínhamos, mas o telegrama voltou... Sabíamos que era a única pessoa da família e não medimos esforços para...

A Madre ainda falava, mas Sara já não podia ouvi-la. O chão parecia ter fugido de repente debaixo dos seus pés e ela mergulhava num abismo infinito. Não!... Tia Agnes não!... Oh! Meu Deus, eu nuca saberei... Nunca saberei!... E depois a escuridão.
                  
Ela recuperou os sentidos e se deparou deitada no sofá do gabinete. Madre Conceição dava-lhe algo forte par cheirar, uma outra freira segurava um copo com um líquido turvo e tentava fazer com que ela bebesse. Inúmeras outras freiras estavam ao redor.

-  Se sente melhor? – perguntou a Madre.
-  Onde... onde a sepultaram?... Levem-me até lá...

Madre Conceição segurou-a pelo braço e levou-a até um pequeno jardim nos fundos do convento. A sepultura era simples, como ela mesma. Um canteiro de margaridas miúdas e amarelas fora plantado por toda extensão; estava florido e viçoso. As cores das flores cintilavam à luz do sol, e na cabeceira, uma lápide pintada de branco com apenas os dizeres: “Ao pó voltarás”
                  
Sara pediu a Madre que a deixasse sozinha. Não soube por quanto tempo permaneceu ali em pé, apenas olhando. Depois, mansamente desceu ao chão e sentou-se. Tocou primeiro as flores, depois a lápide, a terra fofa... E elas vieram. A princípio, afloravam tímidas, sem alarde, não se faziam notar. A não ser pela pequena gota equilibrando-se sobre a pétala de uma flor, Sara não saberia de imediato. Mas quando se tornaram uma torrente, não teve mais dúvidas: As lágrimas que ela imaginava não possuir derramavam-se todas de uma só vez. Ela nunca imaginara que pudesse ser tão doloroso e confortador ao mesmo tempo. Os soluços foram ficando mais e mais violentos que lhe pareciam explodir o peito. Mas não tentou reter o choro e nem poderia. Chorou pela tia, pela mãe, por D. Emília e por ela mesma. Chorou até a exaustão, e então se levantou e foi embora.
        
Guiada por fortes emoções, ela entrou na cidade e pegou a avenida principal. Não sabia ao certo o que buscava, somente se deixava levar pelo inconsciente. Parou o carro diante do lugar que lhe pareceu ser onde morava com a mãe, mas não tinha certeza.  Procurou algum indício, algum detalhe, que a fizesse lembrar a casa de troncos, mas só o que viu foram galpões industriais que tomavam uma vasta área de terreno e com um enorme pátio ao centro. O motorista de um caminhão baú fazia manobras para alinhar a traseira diante do portal de um dos galpões, e logo começou a ser carregado com feches de calças jeans.
Um homem jovem de camisa branca e gravata escura estava com uma prancheta nas mãos. Andava de lá para cá, gesticulando, parecia apressar os empregados. Sara ligou o motor do carro, mas antes de sair, leu a placa no alto do portão principal: MUNHOZ & MUNHOZ E CIA LTDA.
                   
Seguiu um pouco mais e reconheceu o posto de saúde de Leopoldo, agora CLÍNICA DE OBSTETRÍCIA DESCONHECIDA MADONA. Estava mudado de fato, bem reformado e ampliado, mas o corpo antigo havia sido preservado. Sara estacionou o carro e decidiu entrar. Permaneceu parada junto à entrada por alguns segundos e logo avançou em direção à recepção. A sala estava repleta de mulheres gestantes, outras, não aparentes. Umas acompanhadas de seus maridos, outras sozinhas sentadas em poltronas de couro folheando revistas.
                  
A recepcionista olhou-a como quem está pronta a resolver qualquer questão, mas Sara se fixava num ponto logo atrás dela.

-  É lindo, não é mesmo? – perguntou a moça.
-  Desculpe-me... O que foi que disse?
-  O quadro... É maravilhoso, não acha?
-  Bem, eu... para falar a verdade, ainda estava analisando-o.
-  Contam que quando Dr. Walter Lacerda comprou a Clínica, encontrou esse quadro no porão e se encantou por ele. Ele mandou restaurá-lo e pendurou-o aí nessa parede depois da reforma do prédio. Até mesmo mudou o nome da clínica por causa dele.
-  Deve ter mesmo gostado dele...
-  Ele dizia que lhe trazia sorte.
-  Era para alegrar os doentes – disse Sara num sussurro.
-  O que disse?
-  Disse que alegra o ambiente.
-  Ah, sim, eu concordo com a senhora, mas não é só isso. Essa Madona construída em formas geométricas, não lhe parece transmitir algum tipo de poder enigmático?
-  Deve ser o poder que só as mães possuem.
-  Talvez seja isso mesmo...  E essas cores então?  Nunca vi ninguém combiná-las tão bem!... Mulher de alma colorida essa tal Sara Vankovsk.
-  Ainda não era uma mulher... Era só uma menina.
-  Como sabe disso?
-  Eu... Não importa, já faz tanto tempo.

Em seguida deixou o lugar apressadamente, não se sentia disposta a falar do passado com uma estranha.

A moça fez sinal para dois rapazes parados no corredor. Um deles carregava uma câmara fotográfica do tipo profissional.

-  Ainda estão atrás de uma boa matéria para o jornal? – perguntou ela.
-  É tudo que estamos precisando no momento – respondeu um deles – por isso mesmo, ficaremos plantados aqui até conseguirmos fotografar o bastardinho do prefeito.
-  Esqueça esse bebê e sigam aquela mulher – disse ela apontando para Sara que acabara de entrar no carro.
-  E quem é ela?
-  Eu não sei, mas algo me diz que se descobrirem terão uma história e tanto!        

Sara rodou por toda a movimentada cidade olhando tudo. No lugar das minas, fora construído um tipo de parque turístico todo planejado. Na entrada, uma placa chamava a atenção dos visitantes para o rosto de Cristo esculpido na rocha. Meu avô ainda está lá embaixo sendo pisado por todas essas pessoas. Pareceu-lhe tão absurdo o fato de que nada, nem um único vestígio, se quer, testemunhava que sua mãe havia passado por alí. Ela, que fora a semente germinadora de todo aquele progresso, e que não poupara nem mesmo a própria vida para isso, estava esquecida. Olhava nos rostos das multidões e não conseguia ver nada, além de gente comum, indo e vindo, entrando e saindo das lojas de confecções carregando pacotes de compras. Estava verdadeiramente impressionada com a quantidade de indústrias e lojas de confecções que viu.
                  
Ainda visitaria mais um lugar antes de deixar a cidade definitivamente. Retornou para o centro e ao buscar um atalho, deparou com um parque arborizada todo cercado numa esquina a poucos metros de onde era a casa de troncos. Havia balanças e gangorras e crianças brincavam barulhentas e alegres. Então se lembrou subitamente do lugar. Olhou mais atentamente para o prédio ao lado e leu: COLÉGIO EDUCANDÁRIO MARIA IMACULADA CONCEIÇÀO. A modesta escolinha onde a mãe havia alfabetizado toda a população de Redentor, agora era um prédio suntuoso e imponente. Tratava-se de uma escola para crianças de famílias bem afortunadas e pertencia ao convento! Sara sentiu-se invadida por um sentimento estranho ao seguir o caminho. Era um misto de tristeza e decepção.
                   

Ela deu um leve toque no portão e entrou. A primeira coisa que viu foi a igrejinha de Frei José, agora a capela do CIMITÉRIO PÚBLICO DE REDENTOR DAS PEDRAS. Deu algumas voltas e logo achou o que estava procurando. Um senhor trajando um terno preto e de cabelos grisalhos estava parado diante do túmulo de sua mãe. Havia rosas vermelhas e frescas depositadas cuidadosamente num vaso. Sara caminhou de mansinho pelo gramado e aproximou-se dele:

-  O senhor a conheceu? – perguntou.
-  Sim, muito bem. Foi uma mulher e tanto.
-  Vem sempre aqui?
-  Todos os dias à vinte e oito anos.
-  Por que faz isso?
-  É uma maneira de mantê-la viva na minha memória. Sinto-me próximo a ela quando estou aqui.
-  Eu o invejo por isso.

Ele virou-se e ela pode ver seu colarinho de padre.

-  Também a conheceu? – perguntou um tanto intrigado.
-  Ela era minha mãe.

Os olhos dele encheram-se de alegria:

-  Sara!... Mal posso me conter em contentamento! Não deve lembrar-se de mim, eu sou Frei Henrique, fui amigo de sua mãe...
-  É claro que eu me lembro do senhor. Foi o substituto do Frei José um pouco antes de eu partir... Como vai Frei?
-  Eu vou bem, com a Graça de Deus, e você?
-  Também estou bem... Apesar de tudo.

Ele meneou com a cabeça:

-  Deve estar dizendo isso por causa de Agnes... Eu sinto muito pela sua tia, Sara.
-  Obrigada Frei.
-  Quando chegou à cidade?
-  Hoje pela manhã, mas já estou indo embora.
-  Não antes de ir a um lugar comigo.
-  Um lugar?
-  Isso mesmo. É muito importante, Sara. Conto-lhe tudo no caminho.


O escritório tinha um aspecto limpo e leve de quem não acumula coisas desnecessárias. Ficava num prédio modesto de quatro andares numa rua tranquila e afastada do centro. Depois de serem anunciados, foram conduzidos a uma sala, onde deviam aguardar por alguns minutos. Logo depois, um homem de meia idade entra empurrando uma cadeira de rodas; nela, estava sentado um velho. Sara descobriu tratar-se de um velho pela sua postura meio encurvada, pois ele usava luvas e uma máscara estranha, parecia feita de um material que lembrava borracha. Tinha dois pequenos orifícios para as narinas e outro, um pouco maior, para a boca.
                   
O homem de meia idade fez as apresentações:

-  Eu sou o Dr. Bruno Peixoto e esse é o meu pai, Dr. Anselmo Peixoto. Ele não pode ver ou falar, mas ouve muito bem. Trabalhamos em dupla desde que me formei em direito. Eu sou o seus olhos, suas pernas e seu porta-voz. Mas ele ainda é o cérebro aqui – disse o homem batendo levemente no ombro do pai.

O velho levantou a mão direita num cumprimento.

-  Eu era muito jovem ainda, mas me lembro vagamente de ouvir minha mãe falar a respeito dele – disse Sara – O Frei me adiantou algumas coisas, mas gostaria que o senhor me pusesse a par dos fatos.
-  Pois bem, serei o mais objetivo possível – disse ele – Sua mãe, juntamente com um jovem médico dessa cidade, procurou por meu pai para moverem uma ação de usucapião de algumas terras que ocupavam nas propriedades de certo Major Dantas, de São Martinho. Meu pai aceitou o trabalho e sofreu um atentado criminoso logo depois. Atearam fogo em seu escritório, mas felizmente a maioria das provas que ele juntara contra o Major, e principalmente contra seu aliado, o próprio prefeito de São Martinho, estavam a salvo em nossa casa.   
-  Provas? – perguntou Sara.
-  Sim, provas. A fim de colher dados para juntar aos autos, meu pai acabou por descobrir uma infinita lista de crimes tais como, corrupção, extorsões, subornos, assassinatos e até abuso de menores praticados pelo prefeito e seus comparsas.
-  Mas pelo que me lembro isso não adiantou muito, uma vez que ele cometeu suicídio ainda naquela época – disse Sara.
-  Mas possibilitou que meu pai reabrisse o processo de usucapião anos mais tarde, quando deixou o hospital – replicou Dr. Bruno – Além do mais, ele fez a denúncia e todos os demais envolvido foram punidos. Estabeleceu-se um marco na história da cidade de São Martinho, D. Sara. O antes, e o depois desses acontecimentos.
-  Pelo menos isso – disse ela.

Nesse momento, Dr. Anselmo sinalizou agitadamente com as mãos.

-  Meu pai está dizendo que devo ir direto ao que interessa – traduziu o filho – ...Perdoe a impaciência do meu pai, D. Sara. Ele tem estado ansioso desde que descobrimos que sua mãe tinha uma herdeira legítima, a senhora. E agora que está aqui, não pode conter-se.
-  Eu posso imaginar – disse Sara pensando no que mais ele teria ainda para dizer.
-  Continuando, – disse ele – reaberto o processo de usucapião, ele se arrastou por anos, até que recentemente tivemos o parecer favorável em última estância. Então, nos mudamos para cá e procuramos por todos os posseiros envolvidos e seus herdeiros, e regularizamos a situação das terras. No caso de sua mãe, nossas investigações nos levaram até sua tia no convento, que havia falecido há poucos dias; e de lá até frei Henrique. Desde então, estamos tentando localizá-la para regularizarmos os três últimos processos que restaram.
-  Três?
-  Sim, três. Da casa onde moravam, da escola e do posto de saúde. Todos processados em nome de sua mãe.
-  Mas me lembro de ter assinado uma sessão de direitos quando vendi a casa antes de seguir para São Paulo...
-  Sem nenhuma validade – informou Dr. Bruno – Tinha apenas dezoito anos, e sua data de nascimento foi falsificada para parecer emancipada.
-  Está querendo dizer-me que sou dona daquela confecção, da escola e da clínica? – perguntou.
-  Não é tão simples  assim – informou-lhe ele – Não entregarão as propriedades facilmente, mas estão dispostos a um acordo.
-  Um acordo – repetiu Sara – Que tipo de acordo?
-  Bem vantajoso, posso lhe assegurar.

Sara levantou-se e deu alguns passos pela sala, pensativa. Depois, voltou a sentar-se:

-  Esse... Como era mesmo o nome dele?... Antônio Munhoz, ainda vive?
-  Sim, está bastante velho, mas ainda é vivo – falou Frei Henrique pela primeira vez – Ele foi eleito o primeiro Prefeito de Redentor, e anos depois, se elegeu mais duas vezes. Atualmente, seu filho caçula ocupa a prefeitura.
-  E como fica no caso da escola, uma vez que agora ela pertence ao convento? – quis saber Sara.
-  O procedimento é normal como todos os outros. A Comissão da Diocese foram os primeiros a propor o acordo – esclareceu Dr. Bruno.
-  Sua tia foi contra a aquisição da escola desde o início, Sara – informou frei Henrique – A decepção foi grande quando o convento decidiu demolir a velha escolinha e construir aquele prédio no lugar. Mais ainda quando os alunos foram transferidos para outras escolas na periferia.
-  E porque o convento não construiu sua própria escola ao invés de adquirir aquela?
-  Por causa da excelente localização. Dificilmente iriam encontrar na cidade outro lugar mais valorizado – esclareceu o Frei.
-  Tia Agnes deve ter mesmo ficado muito decepcionada com tudo isso...
-  Mesmo porque, era ela que ainda dirigia aquela escolinha. E fazia-o com muita dedicação.

Dr. Bruno fitava-a aguardando um pronunciamento.

-  Eu já decidi o que vou fazer a respeito de tudo isso – declarou ela – Primeiramente, colocarei meu advogado em contato com vocês, e juntos desejo que consigam o melhor acordo possível referente à indústria de confecção e a clínica.  A escola, não! Essa eu a quero de volta – disse taxativa.
-  Não posso lhe assegurar que teremos êxito – disse-lhe Dr. Bruno.
-  Pois eu posso apostar que sim! – afirmou ela – Ou eu muito me engano, ou a direção do convento não enfrentará uma batalha judicial comigo; decidirão por devolvê-la. Não estarão dispostos a correr o risco de que fatos do passado venham à tona.  E isso é um ponto a nosso favor
     
Nesse momento Dr. Anselmo levantou o polegar direito.

-  Meu pai concorda com a senhora, D. Sara.
-  Ótimo! – exclamou ela – Bem, continuando, uma vez em posse do dinheiro, quero que descontem seus honorários, e o resto seja  repassado de maneira total diretamente às mãos de Frei Henrique como forma de doação. Referente à escola, desejo que seja destinada a alunos pobres com ensino gratuito, também sob a direção do Frei. E isso é tudo.

Fora do prédio, a caminho do estacionamento, Frei Henrique, tocou-a no braço carinhosamente:

-  Foi um ato de extrema generosidade, Sara. Mas não estou nem um pouco surpreso, pois conheço suas origens.
-  Não foi o senhor mesmo quem disse que mamãe, pouco antes de morrer, lhe pediu que cuidasse dos menos favorecidos desse lugar, e que até hoje vem fazendo isso?
-  Disse.
-  Eu só fiz cumprir o desejo dela.

Quando eles entraram no carro:

-  Quer almoçar comigo, Sara?
-  Eu ia lhe fazer o mesmo convite, mas antes preciso de sua ajuda. Desejo encomendar uma lápide para o túmulo de mamãe com uma reprodução de sua fotografia. Sabe onde posso conseguir isso?
-  Acho que sei de um lugar.

                  
O lugar parecia um ferro velho abandonado. Ficava numa estrada de rodagem, longe da cidade. Foi um custo chegar até o pequeno cômodo, que servia tanto de moradia como de escritório, tamanha era a quantidade de sucatas jogadas pelo chão. A figura quase macabra de um velho veio atendê-los e Sara tomou um susto, mas conteve-se. Ele tinha o olho esquerdo de vidro mal colocado e de forma rudimentar. Enquanto se movia em direção a eles, arrastava, com muita dificuldade, uma perna mecânica:

-  Podem falar – disse ele.
-  Eu... gostaria de encomendar uma lápide, talvez de bronze, para o túmulo de minha mãe.
-  Vou mostrar alguns modelos para a “Dona”. Vai escrever alguma coisa?
-  Sim, eu vou escrever numa folha de papel para que copie – disse Sara.
-  Tem que escrever com letra bem grande por que eu não enxergo direito. Um acidente de caminhão me levou um olho e uma perna... Desde então larguei a estrada e moro aqui sozinho... Isso não quer dizer que não trabalho bem, eu sou o melhor por essas redondezas!

Sara apanhou um bloco de papel em sua bolsa e começou a escrever.

-  Pode reproduzir uma fotografia? – perguntou ela.
-  Vou ter que mandar fazer esse trabalho fora, vai custar um pouco mais – disse ele.
-  Tudo bem. Deixo a cidade hoje, mas o Frei se encarregará de pegar a encomenda e fazer o pagamento.

Ela entregou ao homem a folha de papel, juntamente com a fotografia que tirara da mãe em frente à escola. Dava para ler nitidamente o nome “Ingrid Vankovsk”, atrás. Ele esticou ao máximo seu braço para poder ler o que Sara havia escrito e examinar a fotografia.

-  Disse que era sua mãe? – perguntou.
-  Sim, era. A conheceu?
-  Não... nunca a vi antes.
                  

Depois que eles saíram, o velho abriu uma gaveta, lenta e hesitadamente. Apanhou um documento de mulher amarelado pelo tempo. Comparou os nomes e as fotografias. Então um rapazote apareceu na porta gritando por ele:

-  Seu Miguel! Seu Miguel!
-  O que é moleque imprestável!
-  O carregamento ainda não chegou, posso esquentar minha marmita agora?
-  Vá pra casa! – ordenou ele – Tranque tudo e traga minha garrafa de cachaça.
-  Aconteceu alguma coisa?
-  Aconteceu... há muito tempo.
-  O que o senhor tem? Está doente?
-  Não. Eu já morri.


                  
Frei Henrique escolheu um restaurante aconchegante que servia comida caseira. Sentaram-se junto à janela e pediram o prato do dia.

-  Está com fome? – perguntou o Frei
-  Para falar a verdade, ainda não comi nada desde que cheguei.
-  Como soube do falecimento de Agnes?
-  Não soube. Só vim saber quando cheguei ao convento. Foi um tremendo choque.
-  Eu acredito.
-  Estou  me sentindo péssima, Frei – confessou ela – Na verdade, eu não vim atrás de Tia Agnes, vim em busca do meu passado. E quando recebi a notícia de seu falecimento tudo que eu consegui pensar foi que, com ela, foram enterradas todas as minhas esperanças de saber a verdade. Agora estou me sentindo uma egoísta...
-  Não é egoísta. É seu direito saber.
-  Fala como se soubesse... Sabe alguma coisa a respeito do meu passado? –  perguntou esperançosa.

Ele entrelaçou os dedos nervosamente:

-  Tudo que sei sobre seu nascimento está bem guardado pelos inquebrantáveis segredos da confissão, Sara... Eu lamento muito, mas não posso...
-  Oh, não! Essa não! – exclamou em desespero – Todas as chances que eu tenho de saber, parecem fugir de minhas mãos como um pássaro assustado... Parece uma maldição!... Será que terei de conviver com o fato de que nunca saberei?
-  Talvez não – disse ele – Talvez não tenha se esgotado todas as possibilidades.
-  O que quer dizer com isso?
-  Esteve no convento, não esteve?... Não lhe entregaram os pertences de Agnes?
-  Pertences?... Tia Agnes não possuía nada além de suas vestimentas, seu anel... Espere um pouco!...  Está querendo me dizer que ela deixou algo que responde as minhas perguntas?
-  O que posso lhe dizer é que era o desejo de Agnes que tomasse posse de seus pertences depois que ela se fosse... Porque não volta ao convento?
-  É o que farei agora mesmo! – disse ela levantando-se.
-  Primeiro termine seu almoço – insistiu Frei Henrique.
-  Não Frei, não posso esperar mais – falou decidida – Não avalia como é decisivo para eu nesse momento saber a verdade.
-  Eu posso avaliar mais do que imagina – disse ele – Desejo que você a encontre, pois é merecedora dela.

Ela beijou ternamente a mão do Frei:

-  Obrigada por tudo.
-  Ainda nos veremos algum dia? – perguntou ele.
-  Estaremos em contato – prometeu, e dessa vez iria cumprir.
-  Vá com Deus, filha.
-  Fique o senhor com Ele.


Sara apanhou a caixa de madeira com mãos trêmulas e reconhece-a de imediato. Agora lhe parecia pequena demais para conter tantas respostas. Sensação estranha pensar que tão vil objeto, pudesse reter tanto poder. O poder de transformar toda uma vida, e quem sabe, tantas outras também.

-  Pretendíamos entregá-la logo, mas a senhora deixou o convento sem que pudéssemos notar – justificou-se a noviça.
-  Não tem importância. Agora está comigo – disse Sara e despediu-se.

No carro, sentada ao volante, depositou a caixa no colo e abriu devagar. Dentro, além dos objetos que havia recusado levar consigo quando deixou Redentor, havia os dois anéis, uma cruz de madeira presa à um cordão, e um pequeno caderno parecendo um diário; estava caprichosamente encapado com papel de seda amarelo. Ela segurou-o entre as mãos e levou-o junto ao peito. Está aqui – pensou aliviada – Finalmente acabou.
                  
Depois, colocou tudo de volta à caixa e seguiu viagem.

2 comentários:

  1. Prezada Bia, olá!
    Pelo jeito o final da história se aproxima. Fiquei um pouco intrigado com o vácuo entre o final do capítulo anterior, quando Sara tentava falar por telefone com D. Emília e de repente começa este capítulo em Redentor das Pedras. Será que pulei algum pedaço? Grande abraço, a história continua empolgante!
    Adh

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  2. aguardo ansiosamente, o prox capítulo.. =DD
    bjos

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Obrigada pela leitura e pelo comentário.
Digam-me com sinceridade se estão gostando, ou não do romance. Críticas serão sempre muito bem vindas.

A todos dedico o meu carinho!
Bia Franco